domingo, 25 de dezembro de 2011

Pequena história paulistana de Natal

São Paulo. Cercanias do natal. Voltava para meu refúgio, pensando na vida e no que ainda precisava resolver para a viagem de fim de ano até o Sul, quando o típico barulho na janela do ônibus despertou minha atenção. Chuva – uma rajada forte, violenta, do tipo que aparece quase de surpresa para jogar São Paulo no caos. Companheira de todos os atrasos e engarrafamentos, alguém poderia dizer. Vinha eu tão distraído que nem imaginei que pudesse chover – e é claro que não trazia comigo nenhum guarda-chuva nem nada do tipo. Ou seja, assim que eu saísse daquele ônibus, estaria à mercê do poder inclemente da Natureza – ou, falando sem poesia, ia tomar um belo de um caldo.

Pensei rapidamente nas minhas chances de fuga e concluí que a melhor coisa seria descer uma parada depois do originalmente previsto. Nesse caso, além de me proteger embaixo do teto da parada de ônibus, mais amplo do que o de onde geralmente desço, teria a chance de me esconder no toldo de uma padaria logo à frente, caso a coisa continuasse preta como estava. Não era o plano mais infalível do mundo, mas era o que tínhamos para o momento, de modo que o segui à risca. Fui até a parada, desci rapidamente para não me molhar e ali fiquei, totalmente ilhado, já que a chuva estava pesada e não tinha jeito de que ia aliviar de jeito nenhum. Situação complicada, essa – próximo do abrigo definitivo, mas sem a menor perspectiva de conseguir chegar até ele naquelas condições. Nessas horas, sempre penso que deveria arranjar um guarda-chuva para mim um dia desses – mas nunca gostei de carregar guarda-chuva, além de ser patologicamente acomodado, então vou levando e pensando com meus botões que desta vez passa, que na próxima oportunidade eu compro um, sim Deus, eu prometo. Sempre em vão. Deus já deve ter se acostumado, a essa altura.

Fiquei sozinho na parada até que duas mulheres chegaram, um pouco apressadas e conversando alto entre si. Pararam debaixo da parada de ônibus, fecharam seus guarda-chuvas e ficaram ali, retomando o fôlego enquanto esperavam o ônibus que as levaria para casa. Imagino, pela semelhança física e pela diferença de idade, que fossem parentes, talvez mãe e filha; uma senhora com o rosto emoldurado pelos primeiros cabelos brancos e uma moça de vinte e poucos anos, ambas de pele negra, roupas simples e o ar de dignidade despreocupada típico das pessoas humildes que nada devem a ninguém. A mais jovem, aliás, era uma moça muito bonita – cheia daquela beleza que, por não encaixar nos padrões que tentam jogar todos os dias para cima de nós, acaba sendo assumida por muitos como beleza menor, ou como se nem beleza fosse. Era bonito o modo como ela sorria enquanto falava, um sorriso de dentes perfeitos e de uma alegria despretensiosa e sem disfarces. Era bonito o modo como ela prendia o cabelo em um pequeno coque logo acima da nuca, e era bonito o pescoço que surgia pela gola da blusa cor de vinho que aquela moça vestia. Era bonita a cintura que às vezes se revelava entre a mesma blusa cor de vinho e o jeans sem cinto que a moça usava, e e era bonita a maneira como ela se inclinava de leve para ver se o ônibus vinha de trás da curva da rua. E eu confesso que fiquei ali, admirando discretamente aquela beleza que talvez nem se soubesse bonita, um pequeno e agradável consolo no meio daquela metrópole encharcada de trânsito, de chuva e de solidão.

Ficaram as duas ali talvez uns cinco minutos, rindo e conversando, até que o ônibus chegou e as levou para algum lugar longe do meu mundo e da minha vista. Fiquei de novo sozinho. Passei com certeza uns dez minutos mais ali, sozinho, as pilhas do mp3 player gastas, ouvindo apenas o som da chuva e o compasso repetitivo dos meus pensamentos. Até que alguma coisa me ocorreu, um impulso repentino me disse para dar uma olhada para trás, para os assentos de ferro cobertos de gotas de chuva. E o que eu vi? Um guarda-chuva. Um guarda-chuva enorme, vermelho e chamativo – que logo reconheci como o guarda-chuva da moça bonita que até menos de quinze minutos havia estado ali, naquela parada de ônibus, alegrando um pouco meus olhos enquanto esperava condução para a casa. Aparentemente, a moça o deixou ali por algum motivo qualquer, talvez para que o excesso de água escorresse, talvez para ajeitar alguma coisa nas suas roupas ou pegar algo na bolsa ou qualquer coisa do tipo. E, na pressa de subir no ônibus, o esqueceu atrás de si, deixando-o deitado entre os assentos pronto para ser útil a algum anônimo da cidade. Mais especificamente, para mim.

Hesitei um pouco, admito. Me pareceu coincidência demais, um guarda-chuva enorme daqueles, esquecido em cima de uma fileira de assentos em um momento em que chovia tanto naquela área da cidade. Em um dos cantos do tecido, estava o logo do Shopping Pátio Paulista, além de uma mensagem alusiva ao 455º aniversário de São Paulo. Estaria quebrado? Peguei-o e testei rapidamente: uma das pontas estava solta, mas fora isso funcionava perfeitamente. Ninguém em sã consciência deixaria intencionalmente para trás aquele guarda-chuva só por causa disso. Pensei um pouco, medi os prós e contras da situação, e não deu para disfarçar um sorriso quando finalmente decidi aceitar a gentil oferta do Destino, abrir o guarda-chuva e encarar, agora totalmente protegido da tormenta, o caminho de volta para o lar.

Ainda não me decidi se foi a moça quem, sem saber, me deu um singelo presente de Natal, ou se foi a cidade de São Paulo que, por meio dela, resolveu mandar um sinal de que vai com a minha cara. Na verdade, podem ser as duas coisas ao mesmo tempo, por que não? Seja como for, fiquei sinceramente muito agradecido, e fui embora desejando Feliz Natal para a moça bonita da parada de ônibus, para a cidade de São Paulo e para todos os que amo, amei e ainda virei a amar. Imagino que o espírito natalino seja isso, no fim das contas.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Maratona

Lançaram sobre ele leões e ciclopes, cobras e terremotos, inundações, enxofre, correntes e maledicências. Sobre seus ombros, depositaram o fardo doloroso das culpas e lamentos de Leviatã. Sobre ele desabou Absinto, e contra ele investiram os guerreiros de mil legiões, dispostos a feri-lo com suas lanças e dilacerar sua carne com tenazes. O Olimpo criou os mais terríveis tormentos para puni-lo: negou-lhe água, luz, abrigo, alimento, sono, afago e consolo. Deixou que ele andasse nu diante das chamas da intriga e do frio da indiferença, acompanhado apenas pelo som do escárnio dos que o odiavam sem sequer o conhecer.

A tudo isso, o Humano respondeu com silenciosa insistência. Não recuou; seguiu andando, passo após passo, sem gemer, sem hesitar e sem temer. A cada passo, seu destino parecia mais distante; mesmo assim, andava com a convicção daqueles a quem nada pode deter. Porque o que nele vivia estava além da vida, e Maratona seria cruzada de ponta a ponta, contra tudo e contra todos. Até o fim.

sábado, 10 de dezembro de 2011

And now there's only one left to remind how it could have been


Houve um tempo em que os da minha espécie se juntavam para uivar em direção à Lua. Vínhamos de todos os lados, banhados pela noite, convocados pela lua cheia para a grande celebração. Uivávamos para agradar a lua e gritar em direção a ela toda nossa satisfação em existir. Eram momentos intensos, que eu saboreava com a alegria inconsciente dos que estão em seu lugar, entre os seus. Éramos muitos, éramos inteiros, éramos belos e cheios de vida. O mundo nos sorria, e sorríamos de volta.

Hoje, ando só. Dos meus, nunca mais tive sinal. Temo que tenham partido, ou então que tenham sido vencidos e subjugados até a extinção. Fui deixado para trás, em meio a seres que se dizem meus iguais, ainda que não guardemos nenhuma semelhança. Busco algum sinal de reconhecimento, algum sobrevivente, um olhar que entenda meu olhar: ninguém me sorri de volta. Por instantes, chego a duvidar de tudo, achar que nada jamais existiu e que eu mesmo sou alguma espécie de ilusão. Mal consigo disfarçar a ânsia e o desespero.

Às vezes, ainda saio para ver a lua cheia: me junto a eles, os que tomaram o lugar da minha espécie, e tento uivar junto com eles, como quem acerta o passo em uma dança que desconhece. Por instantes, quase me convenço de que nada mudou. E fecho os olhos, lembrando de tempos mais felizes, saboreando os poucos instantes antes que a ilusão seja quebrada e reste apenas o desconsolo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A esquina

Desde que morreu, apegou-se de forma especial àquela esquina. De lá viu dores e milagres, lágrimas e triunfos, vidas que iam e vinham alheias a sua silenciosa e invisível presença. Testemunhou a chegada das estações, a incerteza dos equinócios, o sol que surgia indeciso entre nuvens cinzas de concreto e chuva. Viu coisas que foram e não voltaram, viu pessoas que nunca se permitiram ir, presenciou inúmeras histórias lindas ou terríveis que nenhum cronista observou e nenhuma pena jamais registrará. Assistiu tudo em silêncio, às vezes com uma sombra de sorriso, outras com a lembrança de uma lágrima correndo pelo rosto desencarnado. Saudoso da vida, pôs a contemplar a vida que não mais era sua, que jamais lhe tinha pertencido, mas que o fascinava com a tênue memória do que tinha sido e do que talvez, em um sonho absurdo de cadáver, talvez ainda pudesse acontecer.

Quando cansou-se, ergueu-se da calçada e foi-se embora.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A Balada do Homem sem Perspectivas


Era uma vez um Homem que, de uma hora para a outra, percebeu-se sem Perspectivas. Foi uma consciência muito repentina, e tão inesperada que pegou o Homem completamente de surpresa. Naquele instante inicial, sua reação foi de choque, quase de terror; sentiu-se indefeso, exposto ao ridículo como alguém que sonha estar nu em um escritório ou em sala de aula. Tratou de esconder sua falta de Perspectivas como pôde, disfarçando-a com sorrisos e frases de efeito, enquanto procurava um lugar no qual pudesse ficar sozinho e contemplar essa estranha e inesperada ausência.

Por mais que tentasse, foi incapaz o Homem de lembrar exatamente quando e como, no fim das contas, havia perdido suas Perspectivas. Teria ele, talvez, as esquecido dentro do ônibus, enquanto ia ou voltava do trabalho? Deixado alguma moça bela e perigosa levá-las consigo, entre beijos em uma pista de dança ou entre lençóis de uma cama de motel? Teria o Homem vendido suas Perspectivas em troca de uma casa bonita, um carro novo, um pouco de conforto, fins de semana livres, uma noite de sono? Ou talvez suas Perspectivas teriam simplesmente ido embora, cansadas de não servirem para nada, chateadas com a omissão do Homem, com sua falta de interesse e consideração? Essa última ideia, em especial, enchia o Homem de medo; pois se suas Perspectivas tinham o abandonado por vontade própria, de nada adiantaria procurá-las, pois elas se recusariam a voltar. Terrível, aquela sensação. De qualquer modo, não sabia o Homem como havia se dado a perda de suas Perspectivas, e por dias e dias ficou a remoer essa ausência, tentando entender onde havia errado, buscando de novo e de novo respostas para uma pergunta que sequer era capaz de formular com clareza.

Depois de algum tempo, conformou-se o Homem a não ter mais Perspectivas, e voltou aos poucos ao convívio dos seus, tentando ao máximo portar-se como antes, ver as coisas como antes, agir como se nada tivesse se perdido pelo caminho. Mas era difícil: uma vez percebendo que não tinha Perspectivas consigo, ficava o Homem incapaz de agir como antes, quando as tinha por perto ainda que não as notasse. Além disso, a convivência com as pessoas, antes tão agradável, tornava-se para ele amarga, cinzenta, quase uma tortura dependendo do dia e da situação. Via pessoas cercadas de Perspectivas que as ignoravam quase completamente, outras inclusive já sem nenhuma Perspectiva a seu lado, e vê-las totalmente alheias provocava no Homem calafrios de ódio. Por que, em nome de Deus, não conseguia o Homem ser como aquelas pessoas, ignorar totalmente o fato de não mais ter Perspectivas, viver dias sem significado com a alegria dos que simplesmente não se importam? E os que tinham Perspectivas, e as cultivavam, esses enchiam o Homem de um desconsolo que beirava a depressão. Pois aqueles Homens e Mulheres lembravam a ele que talvez tivesse perdido as suas Perspectivas para sempre, algo que sentia ter sido valioso e agora temia nunca mais poder recuperar. Aquelas pessoas, que andavam felizes ao lado de suas Perspectivas, tinham sido mais sábias e atentas do que ele próprio, e ao Homem pesava como chumbo a dor dessa constatação.

O outono virou inverno, o inverno reacendeu-se na primavera, a primavera ardeu em chamas no verão – mas para o Homem sem Perspectivas tudo era a mesma coisa, todos os dias eram cinzentos, todas as horas arrastavam-se dolorosamente rumo a um futuro que nada mais era do que uma extensão insossa do presente. Convencido pela próprio tristeza de que jamais reencontraria suas Perspectivas, entregava-se o Homem a uma Vida sem viver, a uma espera amarga pelo último suspiro, torcendo talvez para que a névoa dos dias nublasse sua consciência e o fizesse esquecer, enfim, que um dia Perspectivas haviam estado presentes em sua existência. Esqueceu muitas coisas, nesses dias que passaram sem que ninguém os tivesse contado – mas foi incapaz o Homem de ignorar completamente aquele espaço vazio dentro de si, por mais que o tentasse preencher com o que quer que parecesse adequado no momento. Tentou anestesiá-lo com bebida, apagá-lo com distrações eletrônicas, esquecê-lo nos braços e carícias de mulheres sem nome. Tentou cansar-se, desgastar-se, exaurir a si mesmo até que nada restasse, até que pudesse apenas jogar-se na cama e dormir por um longo tempo, dormir uma vida inteira, acordar renovado e esquecido de tudo que não estava certo em si e no resto do mundo. Mas por maior que fosse o sono, sempre acabava despertando – e, por mais que dormisse, nunca havia sido o suficiente.

Até que um dia, andando silencioso por uma rua cheia de som e vazia de harmonias, o Homem sentiu algo diferente. Não soube precisar, naquele exato instante, o que o havia atingido – foi algo fugaz, uma lufada de vento, o suave toque de uma Mão que escondeu-se antes que ele pudesse vê-la ou agarrá-la. De onde teria vindo? Foi para o Homem um momento febril; era como algo novo e ainda assim conhecido, uma sensação de reencontro indefinida e que pressionava seu peito com tanta força que deixava-o quase sem ar. Olhou para os lados, para os rostos indiferentes ao seu redor, e entendeu que, fosse o que fosse aquela sensação, era apenas sua: ninguém mais a percebia e, portanto, só ele poderia decifrá-la. Fechou os olhos, atendendo a um conselho vindo de algum lugar geralmente silencioso dentro de si: cheirou o ar, ouviu os sons da tarde, sentiu o vento suave contra as partes descobertas de seu corpo.

Então, decidiu-se. Andou em passos rápidos, sem saber para onde, sem calcular, movido apenas pelo impulso e pela urgência. Atravessou a rua, dobrou a esquina, viu uma porta, entrou. Demorou alguns segundos para perceber onde estava; não era um lugar extraordinário à primeira vista, e por algum tempo não conseguiu notar nada de especial à sua volta. Então, em um súbito raio de consciência, a Mão o tocou uma vez mais; o Homem voltou-se rápido, e então ele viu. Teve medo, mas respirou fundo, sustentando o olhar, deixando até escapar algo próximo a um sorriso de satisfação. A Perspectiva diante de si, porém, não devolveu o sorriso. Sem grosseria, mas com firmeza, agarrou o Homem pelo braço e apenas disse: vamos lá, mexa-se, estamos perdendo tempo.

Publicado originalmente em 31 de outubro de 2009

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O livro

Uma vez, perguntei para o meu pai quem é que escrevia aquele Livro. Que Livro, perguntou meu pai. O Livro da Vida!, respondi, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Meu pai riu e não respondeu.

Ainda faço essa mesma pergunta a mim mesmo, todos os dias. Não sei se há uma resposta. Mas a pergunta me parece tão bela que deve ser repetida, dia após dia, até que surja a solução. Ou, ao menos, o fim da dúvida.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Um bom fiscal e a pausa para um cigarro

Quinta-feira à tarde. Já estava há vários minutos esperando pelo ônibus e observava sem muita concentração as pessoas que cruzavam de um lado a outro da avenida. De repente,uma delas se deteve de modo meio ridículo no meio da rua, agachando-se desajeitadamente para pegar algo que naquele momento eu não conseguia entender o que fosse. Demorou um pouco, o suficiente para que alguns carros passassem velozmente - mas o homem não parecia dar a menor importância ao caráter meio arriscado de sua situação, concentrando todo o seu intelecto naquela tarefa um tanto fora de propósito de juntar do chão aquela qualquer coisa que havia encontrado. Mas só quando ele finalmente se levantou, trazendo entre os dedos a bagana de cigarro que juntara do asfalto, pude entender melhor as circunstâncias daquela cena tão estranha.

Devia ter uns trinta anos, talvez um pouco mais, e pude perceber em um golpe de olhar os traços físicos e gestuais da Síndrome de Down. Vestia um abrigo verde humilde, mas limpo, e cobria sua cabeça totalmente careca com um boné azul bastante velho e desbotado. Terminou desajeitadamente de atravessar a rua e deteve-se no ponto de ônibus, não muito próximo de mim, mas em um ponto onde me era fácil observá-lo. Ficou ali, movendo-se de lado a lado como quem está num navio que balança, fumando o cigarro que catou do chão com uma sofreguidão impressionante. Não estava de modo algum saboreando as tragadas ou apreciando o sabor da nicotina: era uma ação determinada, quase mecânica, na qual até as breves pausas para tomar fôlego pareciam uma interrupção absurda e altamente indesejada. Não retinha a fumaça, que escapava abundante pela boca em cada tragada. De fato, não me parecia uma atividade executada com prazer ou mesmo com maior conhecimento de causa; a ideia era, simplesmente, acabar com o cigarro o mais rápido possível. Quando finalmente o consumiu até o filtro, jogou fora o que dele restou com o mal-disfarçado alívio de quem cumpriu um dever inadiável mas consideravelmente penoso, alheio aos olhares dos que, como eu, serviam de platéia para aquela pequena e estranha vitória.

Por alguns momentos, deve ter se sentido aliviado por ter se livrado do cigarro do único jeito que lhe parecia aceitável; logo depois, porém, colocou as mãos nos bolsos, voltou o olhar para o chão, e confesso que fiquei tocado com a expressão de puro desconsolo que tomou conta do seu rosto. Era como se, tendo acabado o cigarro, não restasse a ele mais nenhum dever a cumprir, nenhuma coisa para a qual pudesse ser útil - como se pesasse dolorosamente em sua alma a consciência de que, no fim das contas, não prestava para mais nada. Como o espetáculo fascinante de um deficiente mental fumando compulsivamente já tinha acabado, imagino que ninguém mais olhasse para ele naquele momento além de mim - e durante alguns momentos fui testemunha daquela profunda tristeza, aparentemente tão sem sentido mas que, com toda a certeza, dizia respeito a coisas que desconheço e cujos efeitos não posso pretender compreender plenamente.

Foi a passagem de um ônibus que operou a mudança final no ânimo daquele homem. Quando o veículo passou, com seu barulho de rodas e embreagens e escapamento e portas automáticas, o rosto do homem se ergueu, e sua expressão iluminou-se, ainda que de modo temporariamente confuso. Recordava algo, logo percebi. De repente, avançou rapidamente até a beira da calçada, ficando bem perto da parte de trás do veículo que estava prestes a partir - e, voltando-se para o local onde deveria estar o motorista e o cobrador, ergueu o punho direito com firmeza, fazendo um sinal de positivo com a mão enquanto o ônibus ia embora.

Demorei a entender o que se passava. Acho que só quando ele fez o sinal de OK para o terceiro ou quarto ônibus finalmente associei seu movimento ao dos fiscais de linha, que em suas pranchetas registram o ir e vir dos coletivos e das gentes da grande cidade. Deve ter visto um deles em uma de suas viagens de ônibus, tomando notas e acenando para os motoristas. Como naquela parada não havia nenhum deles, talvez tenha pensado que poderia preencher o espaço vazio até que alguém viesse retomá-lo. Como não tivesse prancheta, ficou a fazer sinais de positivo, de modo muito sério, sem nem mesmo uma sombra de sorriso no rosto. Não mais estava desapontado, mas novamente se via tomado por uma responsabilidade, a qual cumpria com silenciosa e atenta dedicação. Duvido que algum dos motoristas e cobradores aos quais acenou tenha respondido ao cumprimento, mas para ele isso não fazia diferença - a conexão que os unia ia muito além da cortesia e da camaradagem, podendo perfeitamente se manter por longo tempo sem o apoio nem de uma e nem de outra.

Não vi se o homem fez sinal de positivo para o ônibus no qual finalmente embarquei, minutos depois - o ângulo de visão não me permitia enxergar, e de qualquer modo estava entretido tentando encontrar moedas para pagar a viagem. Mas gosto de pensar que tenha cumprido com zelo e eficiência sua nova tarefa. E me agrada ainda mais imaginar que algum dos homens para os quais acenou tenha retribuído seu gesto, reconhecendo com um sorriso ou um menear de cabeça o bom serviço prestado por aquele novo profissional. Seria um gesto pequeno, quase insignificante, mas que teria lançado um pouco de luz naquela tarde nublada de Porto Alegre - e oferecido talvez um breve consolo a mais uma das tantas almas sem esperança desta cidade.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

~ sem título ~

pulsando no meio da chuva
esse coração não existia ainda.
oculto.

homem vivo no mercado
a cada novo luto
pulsando no meio da manhã.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Sobre as trilhas

As memórias são rearranjadas, formam novos enredos, novos traçados e cenários. Há uma cidade que jamais existiu, formada das ruas que andei e das coisas que vi além dos olhos e rumo à lembrança. Dos caminhos pelos quais fui e voltei, mas também dos que só foram e não voltaram e dos quais sempre volto sem jamais ter me permitido ir. Trilhas que sempre sigo, pintadas com cores vívidas e inatingíveis. Ruas que podem ser belas ou terríveis, mas que sempre desembocam na mesma esquina, na mesma praça, no mesmo reencontro. Caminhos que levam para casa.

Há uma cidade que jamais existiu, formada das ruas que andei e das coisas que vi e senti. Uma síntese dos caminhos pelos quais fui e voltei, mas também dos que só foram e não voltaram e dos quais sempre volto sem ter me permitido ir. Trilhas que sempre sigo, levando a lugar algum, mas principalmente a mim mesmo.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Relato de um sonho sobre um trem

Era uma estação de trem, ou ao menos era para ser uma estação de trem, imagino. Eu estava lá, mas não tinha nenhuma idéia de como diabos eu tinha ido parar lá - era como se eu tivesse simplesmente me materializado, surgido do nada, conjurado naquele lugar por algum estranho e caprichoso tipo de feitiçaria. Tinha a vaga impressão de ter me despedido de algumas pessoas, mas parecia algo que tinha se passado há muito tempo, que já estava para trás, escondido debaixo dos degraus rangentes da escada que leva para o sótão da memória. Longe, longe. Diante de mim, e logo além dos limites daquela estação de paredes cinzentas e manchadas de umidade, um enorme terreno descampado, interminável, estendendo-se muito além do meu campo de visão. Era possível ver o sol se pondo na linha do horizonte - uma visão bonita, sem dúvida, mas não me sentia especialmente impressionado com ela, como se no fundo ela não tivesse nada de mais. De onde quer que eu tivesse vindo, era bem óbvio que eu não ia conseguir voltar, pelo menos não sem ajuda. Mas não tinha ninguém comigo lá, ninguém que pudesse me levar de volta se fosse o caso, ninguém para me mostrar como pegar o trem, ninguém para me encorajar ou me dizer o que fazer. Eu estava sozinho, de pé naquela estação desconhecida, e sozinho ia ter que me virar. Sozinho.

Eu não estava com medo, apenas me sentia um pouco chateado de estar sozinho e um pouco confuso por não saber direito o que fazer. Fiquei parado ali um pouco, pensando em muitas coisas, a maior parte delas não mais do que ideias tênues que não ficavam no meu cérebro tempo suficiente para que eu pudesse contemplá-las, por um instante que fosse. O tempo passava, o sol se punha no horizonte, logo ia ficar escuro, e me ocorreu que era um tanto idiota da minha parte ficar ali parado, de pé, esperando sem saber o quê, sem saber a quem. Esperando uma ajuda que, eu sabia, não ia vir. Eu já tinha esperado demais - e, se ninguém me ajudava, então eu ia ter que me ajudar, antes que fosse tarde e a noite tomasse conta de tudo de vez.

Comecei a andar meio a esmo, indeciso ainda, tentando pensar no que fazer. O movimento na estação era pequeno, e as pessoas que eu via passar não me davam atenção, não me ouviam, sequer olhavam para mim quando eu tentava pedir a elas alguma informação. Não parecia um gesto de grosseria da parte delas, era mais como se elas não me vissem, mesmo. E eu queria ser visto, queria que me ouvissem, queria conversar com elas - mas por mais que eu tentasse, elas não reparavam em mim, seguiam seu caminho sem que eu provocasse nelas qualquer reação. Comecei a me sentir um pouco irritado, e pensei, Que merda, Deus sabe o quanto estou tentando, e não dá certo nunca! No que estou errando? Por que não querem me ouvir?... Mas foi um sentimento curto, e logo depois comecei a me sentir muito só, e uma tristeza grande foi tomando conta de mim. Cansado de andar e de implorar em vão por atenção, sentei num pequeno banco de madeira, frustrado, magoado, engolindo em seco o choro. Era errado, de algum modo, que eu estivesse ali? Era por isso que ninguém reparava em mim, porque eu estava no lugar errado, no tempo errado, e não fosse mesmo para ninguém me ver por enquanto? E por que meus amigos, nos quais eu tinha confiado tanto, tinham me deixado lá, sozinho naquele lugar estranho, e nenhum deles vinha me ajudar? Rostos e vozes me vinham à mente, mas de novo era tudo muito rápido, muito tênue, e eu não conseguia achar nenhum sentido naquele monte de sons e imagens desconexas. Já estava quase totalmente escuro, e eu não ia conseguir sair dali, e ia ter que ficar ali até amanhecer, esperando. Que bosta, pensei, e pensei também, Eu quero ir embora. Eu quero ir para casa. Chega. Vão todos para puta que o pariu. Eu quero ir para casa.

De repente, levantei os olhos, olhei para a frente e vi um pouco ao longe algo que me animou. Era uma espécie de escada circular, de pedra, que levava para um andar inferior àquele no qual eu estava. Ali embaixo tinha pessoas, eu conseguia ouvir o barulho dos passos delas e o som de suas vozes. Levantei de um salto, andei rápido até a escada, e desci depressa, com a esperança renovada. Cheguei ao andar inferior e era tudo diferente - muitas pessoas, pessoas humildes, trabalhadores, mães de família, crianças, velhos. Pessoas que sorriam, que falavam alto, cantarolavam e davam risadas, andando para todos os lados. Lá não havia mais noite, pelo contrário - já era manhã, um dia novo, um dia cheio de desafios e coisas para fazer. Ali era mais divertido, mais caloroso, ali eu era visto pelas pessoas, elas me diziam Bom dia, e eu respondia para elas, Bom dia, e elas me ouviam e sorriam para mim, e eu sorria de volta para elas. Aquele era o lugar certo, o lugar onde eu pegaria o trem que me levaria para o lugar onde deveria ir. Era certo eu estar ali, mesmo que fosse algo breve e transitório, e esqueci toda a tristeza, e me senti feliz.

Mas eu não podia ficar esperando muito tempo, e eu sabia disso. Eu já estava atrasado, tinha perdido muito tempo no andar de cima, e era hora de partir. Parei uma das pessoas que passavam por mim, uma senhora que usava roupas pobres de lã e um lenço na cabeça, e perguntei para ela onde deveria pegar o meu trem. Aí mesmo, moço, ela me disse, aí nessa entrada. Foi quando vi aos meus pés uma espécie de alçapão, uma porta bastante pequena no meio do chão, feita de um metal já enferrujado e com uma pintura estragada pelo tempo. Aqui?, eu disse, apontando para o alçapão, e me abaixei para poder ver melhor. Sim senhor, disse a senhora, e logo uma velhinha se juntou a ela, carregando uma criança pelo colo, e disse É aí sim, moço, aí o senhor entra para embarcar.

Abri aquela porta, que mais parecia a tampa de um fogão, e dei uma olhada para o que tinha ali dentro. Meio que colada naquela tampa, algo que mais parecia um pequeno e estreito poleiro, uma armação que rangia a cada movimento que eu fazia com a porta. Além dele, não se via nada - era uma escuridão intensa, quase sólida, um negro cor de piche que os raios daquela manhã não conseguiam penetrar. Não cheguei a ficar com medo, mas pensar que aquela era a entrada para o embarque me deixou chocado, e eu disse Como assim, vocês também embarcam por aqui? Sim, disse a velhinha que tinha chegado, todo mundo embarca aí, esse é o caminho que todos nós seguimos. Tem o outro trem, disse a senhora que tinha falado comigo primeiro, mas esse é o trem lá de cima, não é o nosso, ele vai para outro lugar. O trem deles não deve ser como esse, eu falei, e elas riram e disseram, Claro que não, o embarque deles é muito mais bonito, o trem é novo, a viagem muito mais fácil. E vocês ficam com isso aqui, pensei em voz alta, e uma delas me ouviu e falou Para nós, meu filho, nada nunca é fácil. E eu entendi o que ela queria dizer, e percebi que ela tinha razão, e fiquei quieto e não respondi nada.

Levantei uma vez mais aquela porta, ainda em dúvida, sem saber se deveria ir ou não. Era estranho, não parecia seguro, e eu não tinha ideia do que tinha ali dentro nem do que fazer depois que tivesse entrado. Mas pensei no que elas tinham me dito, sobre todas aquelas pessoas humildes terem que fazer aquele mesmo caminho, e me ocorreu que eu não era melhor que nenhuma delas, que aquele caminho era o meu caminho também, e que se elas podiam passar por aquilo e ainda assim serem sorridentes e atenciosas é porque não tinha motivo algum para que eu não fizesse exatamente o mesmo que elas. E pensando isso me veio uma sensação de que aquele era um caminho novo, sim, mas ao mesmo tempo era um caminho que eu no fundo já conhecia, um caminho que de algum modo me levaria de volta a algo que era meu desde sempre. E então não tive mais medo. Lembrei rapidamente das pessoas que tinha visto no andar de cima, pessoas que tinham me ignorado e me tratado como se eu não existisse, e senti pena delas, e imaginei que bom seria para elas se elas um dia vissem aquela escada e tivessem a presença de espírito de descer. Talvez então eu as pudesse rever e elas me ouvissem também, pensei, e essa ideia me deixou um pouco comovido.

Bom, acho que tenho que ir, não é?, eu disse, tentando soar animado e cordial. Sim senhor, pode ir, um bom dia para o senhor, me disseram. Respirei fundo, e pensei, Pois é, Igor, o trem não vai ficar te esperando, vamos lá então. Abri a porta, enfiei um dos pés naquele poleiro, tomei um impulso e pulei na escuridão.

sábado, 19 de novembro de 2011

Um casal na madrugada

Madrugada de sábado para domingo, pouco antes das duas da manhã. Avenida Paulista, uma parada de ônibus, sem dinheiro para táxi e aguardando um improvável ônibus que me leve para casa. Estava quase sozinho: apenas dois homens, abraçados e trocando leves e carinhosos beijos, aguardavam sentados em um pequeno jardim próximo de onde eu estava. Após a lenta passagem de longos minutos, vejo um jovem casal se aproximando, em passos lentos e trôpegos: vinham direto para a parada, de modo que era impossível não vê-los. Deviam ter no máximo dezoito anos, provavelmente menos. A moça vestia uma blusa folgada e bermudas jeans bastante justas, em um conjunto pouco harmônico que parecia ter como objetivo esconder a beleza de quem o vestia. O rapaz, por sua vez, tinha cabelo espetado, roupas amassadas e carregava uma garrafa de vodka barata, que dividia com a garota durante a caminhada. Foram indo até a parada e, tão logo chegaram, optaram por sentar no chão, a uns quatro ou cinco metros de onde eu estava.

Beijaram-se rapidamente, mas a moça não parecia estar muito disposta a demonstrações de afeto ou desejo, afastando o rapaz de si com um movimento de braço. Ambos estavam muito bêbados, a moça talvez um pouco pior. Não duvido que cogitassem dormir ali mesmo, no meio da calçada, pela simples impossibilidade física de buscar outra opção. A menina chegou a deitar-se, encostando a cabeça no colo do rapaz, mas logo ergueu-se, e uma série de movimentos convulsivos deixou claro que ela iria vomitar. Ao seu lado, o rapaz manteve uma das mãos sobre os ombros da moça – e logo ela começou a soltar grandes golfadas de vômito, manchando a calçada com um líquido de cor amarelo-alaranjado. Não sei se enojado pela cena ou apenas solidário, eis que o rapaz também se curva, treme um pouco e começa a vomitar, antes que a menina que o acompanhava terminasse a sua parte. Era uma cena estranhamente pungente: um jovem casal de perdidos, vomitando ao mesmo tempo, a mão do rapaz ainda sobre o ombro da menina, a menina encostando sua mão nas costelas do rapaz, como se um fosse amparando o outro naquela operação difícil e primal.

Por fim, ambos pararam e se arrastaram um pouco para longe do vômito, recostando-se um sobre o outro num dos cantos da parada de ônibus. Creio que acabaram dormindo. Fiquei mais uns quarenta minutos no local, e nesse período não vi qualquer movimento significativo da parte deles. Quando subi no ônibus que surgiu como um milagre no meio da madrugada, me permiti olhar para trás uma última vez. Ambos estavam lá, dormindo abraçados de uma maneira tocante em sua fragilidade quase ridícula. Fosse como fosse, era tarde, a noite já tinha acabado, e era hora de deixar que os dois sumissem na torrente do presente, rumo à eterna memória.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sobre fotografias que nunca serão feitas

O pequeno cãozinho sentou-se no meio da via pública como se aquele lugar fosse dele, como se aquela calçada fosse sua propriedade eterna e inalienável. Era um vira-lata magrelo, de pêlo café-com-leite, algumas manchas pretas, várias costelas aparecendo. Seu dono não devia estar longe: pelo menos três moradores de rua dormiam a poucos metros do cão, cobertos debaixo de sujeira, indiferença e tiras de papelão. Na verdade, talvez o bichinho seja mesmo dono daquele espaço de chão, e eu que não tenha me apercebido disso. Afinal, quantas vezes terá o cachorro dormido ali, em noites frias ou calorentas, em quintas-feiras movimentadas ou domingos preguiçosos? As ruas têm suas próprias regras, seus códigos e soluções, então vai saber. Seja como for, sentou-se na calçada, com a inconsequência dos jovens de todas as espécies, com o ar distraído e tranquilo dos que nada entendem de stress, pressa ou compromissos.

Tal era a tranquilidade que emanava do bicho, tão forte era a sensação que ele passava de ser o dono daquele pedaço de pavimento, que de alguma maneira as pessoas que andavam por ali tornaram-se silenciosas cúmplices aquela auto-proclamada autoridade. Desviavam do cachorro de maneira quase inconsciente, muitas vezes sem nem olhar para baixo, convencidas de alguma forma mágica de que aquele animal estava em seu lugar e que a melhor coisa a fazer era seguirem em frente, sem incomodá-lo. Homens de terno e gravata, jovens moças sorridentes, vendedores ambulantes, trabalhadores, vagabundos e apressados de todos os tipos – todos desviavam do pequeno animal, sem ousar perturbá-lo, sem questionar a autoridade do grande espírito que comanda as ruas de todas as metrópoles do mundo.

Foi quando surgiu o casal. Não faço ideia de onde vieram; um casal humilde, com aquela idade indefinível dos pobres e sofridos, dos que tratam de viver sem ficarem contando a passagem dos dias e dos anos. O homem usava um jeans velho e chinelos de dedo; a mulher carregava uma bolsa chamativa e uma blusa que devia ter sido vermelha, mas agora tinha assumido um estranho tom de rosa esbranquiçado. Nenhum dos dois tinha todos os dentes na boca. Andavam de mãos dadas, sorrindo e conversando, como geralmente fazem os casais que se sentem felizes com a ideia de serem casais. Iluminavam aquele viaduto sujo e mal cuidado com a beleza pura e ingênua do sentimento que nutriam um pelo outro, e eu gostei de vê-los, gostei de ser de certo modo testemunha daquela união.

E caminhou o casal em direção ao cão, atravessando a distância entre eles, aproximando-se até que a interação entre eles fosse inevitável. Ao contrário de muitos, perceberam o animal, e creio que comentaram algo a respeito dele, pois olharam para ele, olharam um para o outro e riram. E como precisassem desviar do bicho, e como não quisessem separar as mãos, simplesmente distanciaram-se um pouco um do outro, as mãos ainda dadas, erguendo levemente os braços em um pequeno arco. No momento em que passaram por cima do cachorro, o bichinho ergueu o olhar para um deles, com expressão de curiosidade, como quem honestamente não entendesse o propósito daquele improvisado balé. E assim os vi, o casal de mãos dadas, entre eles o cachorro, sobre o cachorro duas mãos que se uniam num misto de moldura e bênção.

Lamentei muito, muitíssimo mesmo, não ter algum equipamento comigo, ao menos um celular que pudesse registrar visualmente aquele momento de inesperada mágica. Se eu tivesse os meios, e se eu tivesse o talento, talvez pudesse ter extraído daquele pequeno instante parte da beleza que nele senti, e gerar uma imagem que fizesse a ele um mínimo de justiça. Resta a imagem da minha visão, a foto agora impossível que carrego na minha retina e na minha memória. É uma bela foto, podem acreditar.

De qualquer modo, a cidade segue me mandando esses sinais, esses pequenos momentos mágicos, essas histórias que se revelam e que precisam ser contadas. Não sei se a intensidade realmente aumentou, ou se sou eu que agora percebo melhor, que estou mais atento, os olhos mais abertos.

Originalmente publicada em 18/jan/2010

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A respeito de uma cidade que era mim

Houve uma época em que a cidade era minha. Eu gostava de andar pelas ruas semidesertas, acordar os cachorros de rua, molhar minhas meias nas poças d'água. Era bom perder tempo antes de voltar para casa, era bom rir com desconhecidos e dar cigarros aos mendigos e vagabundos. Era bom olhar pela janela do meu quarto e ver o horizonte emoldurando o jacarandá. Andar sem pressa, perder o ônibus, tomar uma saideira, pedir mais um beijo de despedida. A cidade era minha, e eu a saboreava da melhor maneira possível, sem sequer me dar conta de que o fazia.

Hoje em dia, querem roubar a cidade de mim. Ela está cada vez mais longe, mais difícil de alcançar; quando chego nela, me dizem que devo ir embora logo, que estou atrapalhando. As ruas que eram minhas agora me são negadas, quer pela inconveniência de minha presença, quer pelas ameaças que surgiram de uma hora para outra e que não devo conhecer ou desafiar. Engoliu-se o horizonte, cobriu-se o verde de piche. Bebo com pressa, beijo com pressa, fujo com pressa do que um dia pensei que fosse meu. As coisas precisam funcionar, dizem. E constroem prédios cada vez maiores, avenidas cada vez mais largas, e tudo funciona cada vez menos. Olho de longe e não entendo nada.

Pudesse, pintaria algumas cores nessa cidade. Escalaria as paredes e as latas de lixo para raspar o cinza e trazer as cores de volta. Pegaria ônibus errados, dançaria na faixa de pedestres e apertaria as mãos dos mendigos em um alegre reencontro. No meu reino, nada seria prático e nada jamais funcionaria a contento. Dos prédios abandonados, eu arrancaria poesia. Acordaria todos os que dormem em paz, cantando uma música tão bela de chama e de vida que todos abririam as janelas e cantariam junto comigo. Encheria a noite de sonhos, como era antes. Faria a cidade voltar a sorrir.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

And not a single drop of cleaning rain

Ando sem pressa, as mãos nos bolsos, olhando os cantos e detalhes da vida. Sorrio de lado, enquanto todos correm em busca de transporte ou abrigo. Não trago chapéu; o guarda-chuva, esqueci convenientemente atrás da porta. O céu fechado, carregado de vida e cinza de fúria. Pronto para desabar sobre nós, sobre cada um de nós, sem poupar ninguém. Lavando tudo. Ando sem pressa, e aguardo. Quero ser atingido - quero ficar encharcado, completamente ensopado, sentir a água escorrendo por cada canto das minhas roupas e da minha vida.

E nenhuma gota de chuva. Nem mesmo uma gota de maldita chuva.