quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Um bom fiscal e a pausa para um cigarro

Quinta-feira à tarde. Já estava há vários minutos esperando pelo ônibus e observava sem muita concentração as pessoas que cruzavam de um lado a outro da avenida. De repente,uma delas se deteve de modo meio ridículo no meio da rua, agachando-se desajeitadamente para pegar algo que naquele momento eu não conseguia entender o que fosse. Demorou um pouco, o suficiente para que alguns carros passassem velozmente - mas o homem não parecia dar a menor importância ao caráter meio arriscado de sua situação, concentrando todo o seu intelecto naquela tarefa um tanto fora de propósito de juntar do chão aquela qualquer coisa que havia encontrado. Mas só quando ele finalmente se levantou, trazendo entre os dedos a bagana de cigarro que juntara do asfalto, pude entender melhor as circunstâncias daquela cena tão estranha.

Devia ter uns trinta anos, talvez um pouco mais, e pude perceber em um golpe de olhar os traços físicos e gestuais da Síndrome de Down. Vestia um abrigo verde humilde, mas limpo, e cobria sua cabeça totalmente careca com um boné azul bastante velho e desbotado. Terminou desajeitadamente de atravessar a rua e deteve-se no ponto de ônibus, não muito próximo de mim, mas em um ponto onde me era fácil observá-lo. Ficou ali, movendo-se de lado a lado como quem está num navio que balança, fumando o cigarro que catou do chão com uma sofreguidão impressionante. Não estava de modo algum saboreando as tragadas ou apreciando o sabor da nicotina: era uma ação determinada, quase mecânica, na qual até as breves pausas para tomar fôlego pareciam uma interrupção absurda e altamente indesejada. Não retinha a fumaça, que escapava abundante pela boca em cada tragada. De fato, não me parecia uma atividade executada com prazer ou mesmo com maior conhecimento de causa; a ideia era, simplesmente, acabar com o cigarro o mais rápido possível. Quando finalmente o consumiu até o filtro, jogou fora o que dele restou com o mal-disfarçado alívio de quem cumpriu um dever inadiável mas consideravelmente penoso, alheio aos olhares dos que, como eu, serviam de platéia para aquela pequena e estranha vitória.

Por alguns momentos, deve ter se sentido aliviado por ter se livrado do cigarro do único jeito que lhe parecia aceitável; logo depois, porém, colocou as mãos nos bolsos, voltou o olhar para o chão, e confesso que fiquei tocado com a expressão de puro desconsolo que tomou conta do seu rosto. Era como se, tendo acabado o cigarro, não restasse a ele mais nenhum dever a cumprir, nenhuma coisa para a qual pudesse ser útil - como se pesasse dolorosamente em sua alma a consciência de que, no fim das contas, não prestava para mais nada. Como o espetáculo fascinante de um deficiente mental fumando compulsivamente já tinha acabado, imagino que ninguém mais olhasse para ele naquele momento além de mim - e durante alguns momentos fui testemunha daquela profunda tristeza, aparentemente tão sem sentido mas que, com toda a certeza, dizia respeito a coisas que desconheço e cujos efeitos não posso pretender compreender plenamente.

Foi a passagem de um ônibus que operou a mudança final no ânimo daquele homem. Quando o veículo passou, com seu barulho de rodas e embreagens e escapamento e portas automáticas, o rosto do homem se ergueu, e sua expressão iluminou-se, ainda que de modo temporariamente confuso. Recordava algo, logo percebi. De repente, avançou rapidamente até a beira da calçada, ficando bem perto da parte de trás do veículo que estava prestes a partir - e, voltando-se para o local onde deveria estar o motorista e o cobrador, ergueu o punho direito com firmeza, fazendo um sinal de positivo com a mão enquanto o ônibus ia embora.

Demorei a entender o que se passava. Acho que só quando ele fez o sinal de OK para o terceiro ou quarto ônibus finalmente associei seu movimento ao dos fiscais de linha, que em suas pranchetas registram o ir e vir dos coletivos e das gentes da grande cidade. Deve ter visto um deles em uma de suas viagens de ônibus, tomando notas e acenando para os motoristas. Como naquela parada não havia nenhum deles, talvez tenha pensado que poderia preencher o espaço vazio até que alguém viesse retomá-lo. Como não tivesse prancheta, ficou a fazer sinais de positivo, de modo muito sério, sem nem mesmo uma sombra de sorriso no rosto. Não mais estava desapontado, mas novamente se via tomado por uma responsabilidade, a qual cumpria com silenciosa e atenta dedicação. Duvido que algum dos motoristas e cobradores aos quais acenou tenha respondido ao cumprimento, mas para ele isso não fazia diferença - a conexão que os unia ia muito além da cortesia e da camaradagem, podendo perfeitamente se manter por longo tempo sem o apoio nem de uma e nem de outra.

Não vi se o homem fez sinal de positivo para o ônibus no qual finalmente embarquei, minutos depois - o ângulo de visão não me permitia enxergar, e de qualquer modo estava entretido tentando encontrar moedas para pagar a viagem. Mas gosto de pensar que tenha cumprido com zelo e eficiência sua nova tarefa. E me agrada ainda mais imaginar que algum dos homens para os quais acenou tenha retribuído seu gesto, reconhecendo com um sorriso ou um menear de cabeça o bom serviço prestado por aquele novo profissional. Seria um gesto pequeno, quase insignificante, mas que teria lançado um pouco de luz naquela tarde nublada de Porto Alegre - e oferecido talvez um breve consolo a mais uma das tantas almas sem esperança desta cidade.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

~ sem título ~

pulsando no meio da chuva
esse coração não existia ainda.
oculto.

homem vivo no mercado
a cada novo luto
pulsando no meio da manhã.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Sobre as trilhas

As memórias são rearranjadas, formam novos enredos, novos traçados e cenários. Há uma cidade que jamais existiu, formada das ruas que andei e das coisas que vi além dos olhos e rumo à lembrança. Dos caminhos pelos quais fui e voltei, mas também dos que só foram e não voltaram e dos quais sempre volto sem jamais ter me permitido ir. Trilhas que sempre sigo, pintadas com cores vívidas e inatingíveis. Ruas que podem ser belas ou terríveis, mas que sempre desembocam na mesma esquina, na mesma praça, no mesmo reencontro. Caminhos que levam para casa.

Há uma cidade que jamais existiu, formada das ruas que andei e das coisas que vi e senti. Uma síntese dos caminhos pelos quais fui e voltei, mas também dos que só foram e não voltaram e dos quais sempre volto sem ter me permitido ir. Trilhas que sempre sigo, levando a lugar algum, mas principalmente a mim mesmo.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Relato de um sonho sobre um trem

Era uma estação de trem, ou ao menos era para ser uma estação de trem, imagino. Eu estava lá, mas não tinha nenhuma idéia de como diabos eu tinha ido parar lá - era como se eu tivesse simplesmente me materializado, surgido do nada, conjurado naquele lugar por algum estranho e caprichoso tipo de feitiçaria. Tinha a vaga impressão de ter me despedido de algumas pessoas, mas parecia algo que tinha se passado há muito tempo, que já estava para trás, escondido debaixo dos degraus rangentes da escada que leva para o sótão da memória. Longe, longe. Diante de mim, e logo além dos limites daquela estação de paredes cinzentas e manchadas de umidade, um enorme terreno descampado, interminável, estendendo-se muito além do meu campo de visão. Era possível ver o sol se pondo na linha do horizonte - uma visão bonita, sem dúvida, mas não me sentia especialmente impressionado com ela, como se no fundo ela não tivesse nada de mais. De onde quer que eu tivesse vindo, era bem óbvio que eu não ia conseguir voltar, pelo menos não sem ajuda. Mas não tinha ninguém comigo lá, ninguém que pudesse me levar de volta se fosse o caso, ninguém para me mostrar como pegar o trem, ninguém para me encorajar ou me dizer o que fazer. Eu estava sozinho, de pé naquela estação desconhecida, e sozinho ia ter que me virar. Sozinho.

Eu não estava com medo, apenas me sentia um pouco chateado de estar sozinho e um pouco confuso por não saber direito o que fazer. Fiquei parado ali um pouco, pensando em muitas coisas, a maior parte delas não mais do que ideias tênues que não ficavam no meu cérebro tempo suficiente para que eu pudesse contemplá-las, por um instante que fosse. O tempo passava, o sol se punha no horizonte, logo ia ficar escuro, e me ocorreu que era um tanto idiota da minha parte ficar ali parado, de pé, esperando sem saber o quê, sem saber a quem. Esperando uma ajuda que, eu sabia, não ia vir. Eu já tinha esperado demais - e, se ninguém me ajudava, então eu ia ter que me ajudar, antes que fosse tarde e a noite tomasse conta de tudo de vez.

Comecei a andar meio a esmo, indeciso ainda, tentando pensar no que fazer. O movimento na estação era pequeno, e as pessoas que eu via passar não me davam atenção, não me ouviam, sequer olhavam para mim quando eu tentava pedir a elas alguma informação. Não parecia um gesto de grosseria da parte delas, era mais como se elas não me vissem, mesmo. E eu queria ser visto, queria que me ouvissem, queria conversar com elas - mas por mais que eu tentasse, elas não reparavam em mim, seguiam seu caminho sem que eu provocasse nelas qualquer reação. Comecei a me sentir um pouco irritado, e pensei, Que merda, Deus sabe o quanto estou tentando, e não dá certo nunca! No que estou errando? Por que não querem me ouvir?... Mas foi um sentimento curto, e logo depois comecei a me sentir muito só, e uma tristeza grande foi tomando conta de mim. Cansado de andar e de implorar em vão por atenção, sentei num pequeno banco de madeira, frustrado, magoado, engolindo em seco o choro. Era errado, de algum modo, que eu estivesse ali? Era por isso que ninguém reparava em mim, porque eu estava no lugar errado, no tempo errado, e não fosse mesmo para ninguém me ver por enquanto? E por que meus amigos, nos quais eu tinha confiado tanto, tinham me deixado lá, sozinho naquele lugar estranho, e nenhum deles vinha me ajudar? Rostos e vozes me vinham à mente, mas de novo era tudo muito rápido, muito tênue, e eu não conseguia achar nenhum sentido naquele monte de sons e imagens desconexas. Já estava quase totalmente escuro, e eu não ia conseguir sair dali, e ia ter que ficar ali até amanhecer, esperando. Que bosta, pensei, e pensei também, Eu quero ir embora. Eu quero ir para casa. Chega. Vão todos para puta que o pariu. Eu quero ir para casa.

De repente, levantei os olhos, olhei para a frente e vi um pouco ao longe algo que me animou. Era uma espécie de escada circular, de pedra, que levava para um andar inferior àquele no qual eu estava. Ali embaixo tinha pessoas, eu conseguia ouvir o barulho dos passos delas e o som de suas vozes. Levantei de um salto, andei rápido até a escada, e desci depressa, com a esperança renovada. Cheguei ao andar inferior e era tudo diferente - muitas pessoas, pessoas humildes, trabalhadores, mães de família, crianças, velhos. Pessoas que sorriam, que falavam alto, cantarolavam e davam risadas, andando para todos os lados. Lá não havia mais noite, pelo contrário - já era manhã, um dia novo, um dia cheio de desafios e coisas para fazer. Ali era mais divertido, mais caloroso, ali eu era visto pelas pessoas, elas me diziam Bom dia, e eu respondia para elas, Bom dia, e elas me ouviam e sorriam para mim, e eu sorria de volta para elas. Aquele era o lugar certo, o lugar onde eu pegaria o trem que me levaria para o lugar onde deveria ir. Era certo eu estar ali, mesmo que fosse algo breve e transitório, e esqueci toda a tristeza, e me senti feliz.

Mas eu não podia ficar esperando muito tempo, e eu sabia disso. Eu já estava atrasado, tinha perdido muito tempo no andar de cima, e era hora de partir. Parei uma das pessoas que passavam por mim, uma senhora que usava roupas pobres de lã e um lenço na cabeça, e perguntei para ela onde deveria pegar o meu trem. Aí mesmo, moço, ela me disse, aí nessa entrada. Foi quando vi aos meus pés uma espécie de alçapão, uma porta bastante pequena no meio do chão, feita de um metal já enferrujado e com uma pintura estragada pelo tempo. Aqui?, eu disse, apontando para o alçapão, e me abaixei para poder ver melhor. Sim senhor, disse a senhora, e logo uma velhinha se juntou a ela, carregando uma criança pelo colo, e disse É aí sim, moço, aí o senhor entra para embarcar.

Abri aquela porta, que mais parecia a tampa de um fogão, e dei uma olhada para o que tinha ali dentro. Meio que colada naquela tampa, algo que mais parecia um pequeno e estreito poleiro, uma armação que rangia a cada movimento que eu fazia com a porta. Além dele, não se via nada - era uma escuridão intensa, quase sólida, um negro cor de piche que os raios daquela manhã não conseguiam penetrar. Não cheguei a ficar com medo, mas pensar que aquela era a entrada para o embarque me deixou chocado, e eu disse Como assim, vocês também embarcam por aqui? Sim, disse a velhinha que tinha chegado, todo mundo embarca aí, esse é o caminho que todos nós seguimos. Tem o outro trem, disse a senhora que tinha falado comigo primeiro, mas esse é o trem lá de cima, não é o nosso, ele vai para outro lugar. O trem deles não deve ser como esse, eu falei, e elas riram e disseram, Claro que não, o embarque deles é muito mais bonito, o trem é novo, a viagem muito mais fácil. E vocês ficam com isso aqui, pensei em voz alta, e uma delas me ouviu e falou Para nós, meu filho, nada nunca é fácil. E eu entendi o que ela queria dizer, e percebi que ela tinha razão, e fiquei quieto e não respondi nada.

Levantei uma vez mais aquela porta, ainda em dúvida, sem saber se deveria ir ou não. Era estranho, não parecia seguro, e eu não tinha ideia do que tinha ali dentro nem do que fazer depois que tivesse entrado. Mas pensei no que elas tinham me dito, sobre todas aquelas pessoas humildes terem que fazer aquele mesmo caminho, e me ocorreu que eu não era melhor que nenhuma delas, que aquele caminho era o meu caminho também, e que se elas podiam passar por aquilo e ainda assim serem sorridentes e atenciosas é porque não tinha motivo algum para que eu não fizesse exatamente o mesmo que elas. E pensando isso me veio uma sensação de que aquele era um caminho novo, sim, mas ao mesmo tempo era um caminho que eu no fundo já conhecia, um caminho que de algum modo me levaria de volta a algo que era meu desde sempre. E então não tive mais medo. Lembrei rapidamente das pessoas que tinha visto no andar de cima, pessoas que tinham me ignorado e me tratado como se eu não existisse, e senti pena delas, e imaginei que bom seria para elas se elas um dia vissem aquela escada e tivessem a presença de espírito de descer. Talvez então eu as pudesse rever e elas me ouvissem também, pensei, e essa ideia me deixou um pouco comovido.

Bom, acho que tenho que ir, não é?, eu disse, tentando soar animado e cordial. Sim senhor, pode ir, um bom dia para o senhor, me disseram. Respirei fundo, e pensei, Pois é, Igor, o trem não vai ficar te esperando, vamos lá então. Abri a porta, enfiei um dos pés naquele poleiro, tomei um impulso e pulei na escuridão.

sábado, 19 de novembro de 2011

Um casal na madrugada

Madrugada de sábado para domingo, pouco antes das duas da manhã. Avenida Paulista, uma parada de ônibus, sem dinheiro para táxi e aguardando um improvável ônibus que me leve para casa. Estava quase sozinho: apenas dois homens, abraçados e trocando leves e carinhosos beijos, aguardavam sentados em um pequeno jardim próximo de onde eu estava. Após a lenta passagem de longos minutos, vejo um jovem casal se aproximando, em passos lentos e trôpegos: vinham direto para a parada, de modo que era impossível não vê-los. Deviam ter no máximo dezoito anos, provavelmente menos. A moça vestia uma blusa folgada e bermudas jeans bastante justas, em um conjunto pouco harmônico que parecia ter como objetivo esconder a beleza de quem o vestia. O rapaz, por sua vez, tinha cabelo espetado, roupas amassadas e carregava uma garrafa de vodka barata, que dividia com a garota durante a caminhada. Foram indo até a parada e, tão logo chegaram, optaram por sentar no chão, a uns quatro ou cinco metros de onde eu estava.

Beijaram-se rapidamente, mas a moça não parecia estar muito disposta a demonstrações de afeto ou desejo, afastando o rapaz de si com um movimento de braço. Ambos estavam muito bêbados, a moça talvez um pouco pior. Não duvido que cogitassem dormir ali mesmo, no meio da calçada, pela simples impossibilidade física de buscar outra opção. A menina chegou a deitar-se, encostando a cabeça no colo do rapaz, mas logo ergueu-se, e uma série de movimentos convulsivos deixou claro que ela iria vomitar. Ao seu lado, o rapaz manteve uma das mãos sobre os ombros da moça – e logo ela começou a soltar grandes golfadas de vômito, manchando a calçada com um líquido de cor amarelo-alaranjado. Não sei se enojado pela cena ou apenas solidário, eis que o rapaz também se curva, treme um pouco e começa a vomitar, antes que a menina que o acompanhava terminasse a sua parte. Era uma cena estranhamente pungente: um jovem casal de perdidos, vomitando ao mesmo tempo, a mão do rapaz ainda sobre o ombro da menina, a menina encostando sua mão nas costelas do rapaz, como se um fosse amparando o outro naquela operação difícil e primal.

Por fim, ambos pararam e se arrastaram um pouco para longe do vômito, recostando-se um sobre o outro num dos cantos da parada de ônibus. Creio que acabaram dormindo. Fiquei mais uns quarenta minutos no local, e nesse período não vi qualquer movimento significativo da parte deles. Quando subi no ônibus que surgiu como um milagre no meio da madrugada, me permiti olhar para trás uma última vez. Ambos estavam lá, dormindo abraçados de uma maneira tocante em sua fragilidade quase ridícula. Fosse como fosse, era tarde, a noite já tinha acabado, e era hora de deixar que os dois sumissem na torrente do presente, rumo à eterna memória.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sobre fotografias que nunca serão feitas

O pequeno cãozinho sentou-se no meio da via pública como se aquele lugar fosse dele, como se aquela calçada fosse sua propriedade eterna e inalienável. Era um vira-lata magrelo, de pêlo café-com-leite, algumas manchas pretas, várias costelas aparecendo. Seu dono não devia estar longe: pelo menos três moradores de rua dormiam a poucos metros do cão, cobertos debaixo de sujeira, indiferença e tiras de papelão. Na verdade, talvez o bichinho seja mesmo dono daquele espaço de chão, e eu que não tenha me apercebido disso. Afinal, quantas vezes terá o cachorro dormido ali, em noites frias ou calorentas, em quintas-feiras movimentadas ou domingos preguiçosos? As ruas têm suas próprias regras, seus códigos e soluções, então vai saber. Seja como for, sentou-se na calçada, com a inconsequência dos jovens de todas as espécies, com o ar distraído e tranquilo dos que nada entendem de stress, pressa ou compromissos.

Tal era a tranquilidade que emanava do bicho, tão forte era a sensação que ele passava de ser o dono daquele pedaço de pavimento, que de alguma maneira as pessoas que andavam por ali tornaram-se silenciosas cúmplices aquela auto-proclamada autoridade. Desviavam do cachorro de maneira quase inconsciente, muitas vezes sem nem olhar para baixo, convencidas de alguma forma mágica de que aquele animal estava em seu lugar e que a melhor coisa a fazer era seguirem em frente, sem incomodá-lo. Homens de terno e gravata, jovens moças sorridentes, vendedores ambulantes, trabalhadores, vagabundos e apressados de todos os tipos – todos desviavam do pequeno animal, sem ousar perturbá-lo, sem questionar a autoridade do grande espírito que comanda as ruas de todas as metrópoles do mundo.

Foi quando surgiu o casal. Não faço ideia de onde vieram; um casal humilde, com aquela idade indefinível dos pobres e sofridos, dos que tratam de viver sem ficarem contando a passagem dos dias e dos anos. O homem usava um jeans velho e chinelos de dedo; a mulher carregava uma bolsa chamativa e uma blusa que devia ter sido vermelha, mas agora tinha assumido um estranho tom de rosa esbranquiçado. Nenhum dos dois tinha todos os dentes na boca. Andavam de mãos dadas, sorrindo e conversando, como geralmente fazem os casais que se sentem felizes com a ideia de serem casais. Iluminavam aquele viaduto sujo e mal cuidado com a beleza pura e ingênua do sentimento que nutriam um pelo outro, e eu gostei de vê-los, gostei de ser de certo modo testemunha daquela união.

E caminhou o casal em direção ao cão, atravessando a distância entre eles, aproximando-se até que a interação entre eles fosse inevitável. Ao contrário de muitos, perceberam o animal, e creio que comentaram algo a respeito dele, pois olharam para ele, olharam um para o outro e riram. E como precisassem desviar do bicho, e como não quisessem separar as mãos, simplesmente distanciaram-se um pouco um do outro, as mãos ainda dadas, erguendo levemente os braços em um pequeno arco. No momento em que passaram por cima do cachorro, o bichinho ergueu o olhar para um deles, com expressão de curiosidade, como quem honestamente não entendesse o propósito daquele improvisado balé. E assim os vi, o casal de mãos dadas, entre eles o cachorro, sobre o cachorro duas mãos que se uniam num misto de moldura e bênção.

Lamentei muito, muitíssimo mesmo, não ter algum equipamento comigo, ao menos um celular que pudesse registrar visualmente aquele momento de inesperada mágica. Se eu tivesse os meios, e se eu tivesse o talento, talvez pudesse ter extraído daquele pequeno instante parte da beleza que nele senti, e gerar uma imagem que fizesse a ele um mínimo de justiça. Resta a imagem da minha visão, a foto agora impossível que carrego na minha retina e na minha memória. É uma bela foto, podem acreditar.

De qualquer modo, a cidade segue me mandando esses sinais, esses pequenos momentos mágicos, essas histórias que se revelam e que precisam ser contadas. Não sei se a intensidade realmente aumentou, ou se sou eu que agora percebo melhor, que estou mais atento, os olhos mais abertos.

Originalmente publicada em 18/jan/2010

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A respeito de uma cidade que era mim

Houve uma época em que a cidade era minha. Eu gostava de andar pelas ruas semidesertas, acordar os cachorros de rua, molhar minhas meias nas poças d'água. Era bom perder tempo antes de voltar para casa, era bom rir com desconhecidos e dar cigarros aos mendigos e vagabundos. Era bom olhar pela janela do meu quarto e ver o horizonte emoldurando o jacarandá. Andar sem pressa, perder o ônibus, tomar uma saideira, pedir mais um beijo de despedida. A cidade era minha, e eu a saboreava da melhor maneira possível, sem sequer me dar conta de que o fazia.

Hoje em dia, querem roubar a cidade de mim. Ela está cada vez mais longe, mais difícil de alcançar; quando chego nela, me dizem que devo ir embora logo, que estou atrapalhando. As ruas que eram minhas agora me são negadas, quer pela inconveniência de minha presença, quer pelas ameaças que surgiram de uma hora para outra e que não devo conhecer ou desafiar. Engoliu-se o horizonte, cobriu-se o verde de piche. Bebo com pressa, beijo com pressa, fujo com pressa do que um dia pensei que fosse meu. As coisas precisam funcionar, dizem. E constroem prédios cada vez maiores, avenidas cada vez mais largas, e tudo funciona cada vez menos. Olho de longe e não entendo nada.

Pudesse, pintaria algumas cores nessa cidade. Escalaria as paredes e as latas de lixo para raspar o cinza e trazer as cores de volta. Pegaria ônibus errados, dançaria na faixa de pedestres e apertaria as mãos dos mendigos em um alegre reencontro. No meu reino, nada seria prático e nada jamais funcionaria a contento. Dos prédios abandonados, eu arrancaria poesia. Acordaria todos os que dormem em paz, cantando uma música tão bela de chama e de vida que todos abririam as janelas e cantariam junto comigo. Encheria a noite de sonhos, como era antes. Faria a cidade voltar a sorrir.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

And not a single drop of cleaning rain

Ando sem pressa, as mãos nos bolsos, olhando os cantos e detalhes da vida. Sorrio de lado, enquanto todos correm em busca de transporte ou abrigo. Não trago chapéu; o guarda-chuva, esqueci convenientemente atrás da porta. O céu fechado, carregado de vida e cinza de fúria. Pronto para desabar sobre nós, sobre cada um de nós, sem poupar ninguém. Lavando tudo. Ando sem pressa, e aguardo. Quero ser atingido - quero ficar encharcado, completamente ensopado, sentir a água escorrendo por cada canto das minhas roupas e da minha vida.

E nenhuma gota de chuva. Nem mesmo uma gota de maldita chuva.