domingo, 25 de dezembro de 2011

Pequena história paulistana de Natal

São Paulo. Cercanias do natal. Voltava para meu refúgio, pensando na vida e no que ainda precisava resolver para a viagem de fim de ano até o Sul, quando o típico barulho na janela do ônibus despertou minha atenção. Chuva – uma rajada forte, violenta, do tipo que aparece quase de surpresa para jogar São Paulo no caos. Companheira de todos os atrasos e engarrafamentos, alguém poderia dizer. Vinha eu tão distraído que nem imaginei que pudesse chover – e é claro que não trazia comigo nenhum guarda-chuva nem nada do tipo. Ou seja, assim que eu saísse daquele ônibus, estaria à mercê do poder inclemente da Natureza – ou, falando sem poesia, ia tomar um belo de um caldo.

Pensei rapidamente nas minhas chances de fuga e concluí que a melhor coisa seria descer uma parada depois do originalmente previsto. Nesse caso, além de me proteger embaixo do teto da parada de ônibus, mais amplo do que o de onde geralmente desço, teria a chance de me esconder no toldo de uma padaria logo à frente, caso a coisa continuasse preta como estava. Não era o plano mais infalível do mundo, mas era o que tínhamos para o momento, de modo que o segui à risca. Fui até a parada, desci rapidamente para não me molhar e ali fiquei, totalmente ilhado, já que a chuva estava pesada e não tinha jeito de que ia aliviar de jeito nenhum. Situação complicada, essa – próximo do abrigo definitivo, mas sem a menor perspectiva de conseguir chegar até ele naquelas condições. Nessas horas, sempre penso que deveria arranjar um guarda-chuva para mim um dia desses – mas nunca gostei de carregar guarda-chuva, além de ser patologicamente acomodado, então vou levando e pensando com meus botões que desta vez passa, que na próxima oportunidade eu compro um, sim Deus, eu prometo. Sempre em vão. Deus já deve ter se acostumado, a essa altura.

Fiquei sozinho na parada até que duas mulheres chegaram, um pouco apressadas e conversando alto entre si. Pararam debaixo da parada de ônibus, fecharam seus guarda-chuvas e ficaram ali, retomando o fôlego enquanto esperavam o ônibus que as levaria para casa. Imagino, pela semelhança física e pela diferença de idade, que fossem parentes, talvez mãe e filha; uma senhora com o rosto emoldurado pelos primeiros cabelos brancos e uma moça de vinte e poucos anos, ambas de pele negra, roupas simples e o ar de dignidade despreocupada típico das pessoas humildes que nada devem a ninguém. A mais jovem, aliás, era uma moça muito bonita – cheia daquela beleza que, por não encaixar nos padrões que tentam jogar todos os dias para cima de nós, acaba sendo assumida por muitos como beleza menor, ou como se nem beleza fosse. Era bonito o modo como ela sorria enquanto falava, um sorriso de dentes perfeitos e de uma alegria despretensiosa e sem disfarces. Era bonito o modo como ela prendia o cabelo em um pequeno coque logo acima da nuca, e era bonito o pescoço que surgia pela gola da blusa cor de vinho que aquela moça vestia. Era bonita a cintura que às vezes se revelava entre a mesma blusa cor de vinho e o jeans sem cinto que a moça usava, e e era bonita a maneira como ela se inclinava de leve para ver se o ônibus vinha de trás da curva da rua. E eu confesso que fiquei ali, admirando discretamente aquela beleza que talvez nem se soubesse bonita, um pequeno e agradável consolo no meio daquela metrópole encharcada de trânsito, de chuva e de solidão.

Ficaram as duas ali talvez uns cinco minutos, rindo e conversando, até que o ônibus chegou e as levou para algum lugar longe do meu mundo e da minha vista. Fiquei de novo sozinho. Passei com certeza uns dez minutos mais ali, sozinho, as pilhas do mp3 player gastas, ouvindo apenas o som da chuva e o compasso repetitivo dos meus pensamentos. Até que alguma coisa me ocorreu, um impulso repentino me disse para dar uma olhada para trás, para os assentos de ferro cobertos de gotas de chuva. E o que eu vi? Um guarda-chuva. Um guarda-chuva enorme, vermelho e chamativo – que logo reconheci como o guarda-chuva da moça bonita que até menos de quinze minutos havia estado ali, naquela parada de ônibus, alegrando um pouco meus olhos enquanto esperava condução para a casa. Aparentemente, a moça o deixou ali por algum motivo qualquer, talvez para que o excesso de água escorresse, talvez para ajeitar alguma coisa nas suas roupas ou pegar algo na bolsa ou qualquer coisa do tipo. E, na pressa de subir no ônibus, o esqueceu atrás de si, deixando-o deitado entre os assentos pronto para ser útil a algum anônimo da cidade. Mais especificamente, para mim.

Hesitei um pouco, admito. Me pareceu coincidência demais, um guarda-chuva enorme daqueles, esquecido em cima de uma fileira de assentos em um momento em que chovia tanto naquela área da cidade. Em um dos cantos do tecido, estava o logo do Shopping Pátio Paulista, além de uma mensagem alusiva ao 455º aniversário de São Paulo. Estaria quebrado? Peguei-o e testei rapidamente: uma das pontas estava solta, mas fora isso funcionava perfeitamente. Ninguém em sã consciência deixaria intencionalmente para trás aquele guarda-chuva só por causa disso. Pensei um pouco, medi os prós e contras da situação, e não deu para disfarçar um sorriso quando finalmente decidi aceitar a gentil oferta do Destino, abrir o guarda-chuva e encarar, agora totalmente protegido da tormenta, o caminho de volta para o lar.

Ainda não me decidi se foi a moça quem, sem saber, me deu um singelo presente de Natal, ou se foi a cidade de São Paulo que, por meio dela, resolveu mandar um sinal de que vai com a minha cara. Na verdade, podem ser as duas coisas ao mesmo tempo, por que não? Seja como for, fiquei sinceramente muito agradecido, e fui embora desejando Feliz Natal para a moça bonita da parada de ônibus, para a cidade de São Paulo e para todos os que amo, amei e ainda virei a amar. Imagino que o espírito natalino seja isso, no fim das contas.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Maratona

Lançaram sobre ele leões e ciclopes, cobras e terremotos, inundações, enxofre, correntes e maledicências. Sobre seus ombros, depositaram o fardo doloroso das culpas e lamentos de Leviatã. Sobre ele desabou Absinto, e contra ele investiram os guerreiros de mil legiões, dispostos a feri-lo com suas lanças e dilacerar sua carne com tenazes. O Olimpo criou os mais terríveis tormentos para puni-lo: negou-lhe água, luz, abrigo, alimento, sono, afago e consolo. Deixou que ele andasse nu diante das chamas da intriga e do frio da indiferença, acompanhado apenas pelo som do escárnio dos que o odiavam sem sequer o conhecer.

A tudo isso, o Humano respondeu com silenciosa insistência. Não recuou; seguiu andando, passo após passo, sem gemer, sem hesitar e sem temer. A cada passo, seu destino parecia mais distante; mesmo assim, andava com a convicção daqueles a quem nada pode deter. Porque o que nele vivia estava além da vida, e Maratona seria cruzada de ponta a ponta, contra tudo e contra todos. Até o fim.

sábado, 10 de dezembro de 2011

And now there's only one left to remind how it could have been


Houve um tempo em que os da minha espécie se juntavam para uivar em direção à Lua. Vínhamos de todos os lados, banhados pela noite, convocados pela lua cheia para a grande celebração. Uivávamos para agradar a lua e gritar em direção a ela toda nossa satisfação em existir. Eram momentos intensos, que eu saboreava com a alegria inconsciente dos que estão em seu lugar, entre os seus. Éramos muitos, éramos inteiros, éramos belos e cheios de vida. O mundo nos sorria, e sorríamos de volta.

Hoje, ando só. Dos meus, nunca mais tive sinal. Temo que tenham partido, ou então que tenham sido vencidos e subjugados até a extinção. Fui deixado para trás, em meio a seres que se dizem meus iguais, ainda que não guardemos nenhuma semelhança. Busco algum sinal de reconhecimento, algum sobrevivente, um olhar que entenda meu olhar: ninguém me sorri de volta. Por instantes, chego a duvidar de tudo, achar que nada jamais existiu e que eu mesmo sou alguma espécie de ilusão. Mal consigo disfarçar a ânsia e o desespero.

Às vezes, ainda saio para ver a lua cheia: me junto a eles, os que tomaram o lugar da minha espécie, e tento uivar junto com eles, como quem acerta o passo em uma dança que desconhece. Por instantes, quase me convenço de que nada mudou. E fecho os olhos, lembrando de tempos mais felizes, saboreando os poucos instantes antes que a ilusão seja quebrada e reste apenas o desconsolo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A esquina

Desde que morreu, apegou-se de forma especial àquela esquina. De lá viu dores e milagres, lágrimas e triunfos, vidas que iam e vinham alheias a sua silenciosa e invisível presença. Testemunhou a chegada das estações, a incerteza dos equinócios, o sol que surgia indeciso entre nuvens cinzas de concreto e chuva. Viu coisas que foram e não voltaram, viu pessoas que nunca se permitiram ir, presenciou inúmeras histórias lindas ou terríveis que nenhum cronista observou e nenhuma pena jamais registrará. Assistiu tudo em silêncio, às vezes com uma sombra de sorriso, outras com a lembrança de uma lágrima correndo pelo rosto desencarnado. Saudoso da vida, pôs a contemplar a vida que não mais era sua, que jamais lhe tinha pertencido, mas que o fascinava com a tênue memória do que tinha sido e do que talvez, em um sonho absurdo de cadáver, talvez ainda pudesse acontecer.

Quando cansou-se, ergueu-se da calçada e foi-se embora.

domingo, 4 de dezembro de 2011

A Balada do Homem sem Perspectivas


Era uma vez um Homem que, de uma hora para a outra, percebeu-se sem Perspectivas. Foi uma consciência muito repentina, e tão inesperada que pegou o Homem completamente de surpresa. Naquele instante inicial, sua reação foi de choque, quase de terror; sentiu-se indefeso, exposto ao ridículo como alguém que sonha estar nu em um escritório ou em sala de aula. Tratou de esconder sua falta de Perspectivas como pôde, disfarçando-a com sorrisos e frases de efeito, enquanto procurava um lugar no qual pudesse ficar sozinho e contemplar essa estranha e inesperada ausência.

Por mais que tentasse, foi incapaz o Homem de lembrar exatamente quando e como, no fim das contas, havia perdido suas Perspectivas. Teria ele, talvez, as esquecido dentro do ônibus, enquanto ia ou voltava do trabalho? Deixado alguma moça bela e perigosa levá-las consigo, entre beijos em uma pista de dança ou entre lençóis de uma cama de motel? Teria o Homem vendido suas Perspectivas em troca de uma casa bonita, um carro novo, um pouco de conforto, fins de semana livres, uma noite de sono? Ou talvez suas Perspectivas teriam simplesmente ido embora, cansadas de não servirem para nada, chateadas com a omissão do Homem, com sua falta de interesse e consideração? Essa última ideia, em especial, enchia o Homem de medo; pois se suas Perspectivas tinham o abandonado por vontade própria, de nada adiantaria procurá-las, pois elas se recusariam a voltar. Terrível, aquela sensação. De qualquer modo, não sabia o Homem como havia se dado a perda de suas Perspectivas, e por dias e dias ficou a remoer essa ausência, tentando entender onde havia errado, buscando de novo e de novo respostas para uma pergunta que sequer era capaz de formular com clareza.

Depois de algum tempo, conformou-se o Homem a não ter mais Perspectivas, e voltou aos poucos ao convívio dos seus, tentando ao máximo portar-se como antes, ver as coisas como antes, agir como se nada tivesse se perdido pelo caminho. Mas era difícil: uma vez percebendo que não tinha Perspectivas consigo, ficava o Homem incapaz de agir como antes, quando as tinha por perto ainda que não as notasse. Além disso, a convivência com as pessoas, antes tão agradável, tornava-se para ele amarga, cinzenta, quase uma tortura dependendo do dia e da situação. Via pessoas cercadas de Perspectivas que as ignoravam quase completamente, outras inclusive já sem nenhuma Perspectiva a seu lado, e vê-las totalmente alheias provocava no Homem calafrios de ódio. Por que, em nome de Deus, não conseguia o Homem ser como aquelas pessoas, ignorar totalmente o fato de não mais ter Perspectivas, viver dias sem significado com a alegria dos que simplesmente não se importam? E os que tinham Perspectivas, e as cultivavam, esses enchiam o Homem de um desconsolo que beirava a depressão. Pois aqueles Homens e Mulheres lembravam a ele que talvez tivesse perdido as suas Perspectivas para sempre, algo que sentia ter sido valioso e agora temia nunca mais poder recuperar. Aquelas pessoas, que andavam felizes ao lado de suas Perspectivas, tinham sido mais sábias e atentas do que ele próprio, e ao Homem pesava como chumbo a dor dessa constatação.

O outono virou inverno, o inverno reacendeu-se na primavera, a primavera ardeu em chamas no verão – mas para o Homem sem Perspectivas tudo era a mesma coisa, todos os dias eram cinzentos, todas as horas arrastavam-se dolorosamente rumo a um futuro que nada mais era do que uma extensão insossa do presente. Convencido pela próprio tristeza de que jamais reencontraria suas Perspectivas, entregava-se o Homem a uma Vida sem viver, a uma espera amarga pelo último suspiro, torcendo talvez para que a névoa dos dias nublasse sua consciência e o fizesse esquecer, enfim, que um dia Perspectivas haviam estado presentes em sua existência. Esqueceu muitas coisas, nesses dias que passaram sem que ninguém os tivesse contado – mas foi incapaz o Homem de ignorar completamente aquele espaço vazio dentro de si, por mais que o tentasse preencher com o que quer que parecesse adequado no momento. Tentou anestesiá-lo com bebida, apagá-lo com distrações eletrônicas, esquecê-lo nos braços e carícias de mulheres sem nome. Tentou cansar-se, desgastar-se, exaurir a si mesmo até que nada restasse, até que pudesse apenas jogar-se na cama e dormir por um longo tempo, dormir uma vida inteira, acordar renovado e esquecido de tudo que não estava certo em si e no resto do mundo. Mas por maior que fosse o sono, sempre acabava despertando – e, por mais que dormisse, nunca havia sido o suficiente.

Até que um dia, andando silencioso por uma rua cheia de som e vazia de harmonias, o Homem sentiu algo diferente. Não soube precisar, naquele exato instante, o que o havia atingido – foi algo fugaz, uma lufada de vento, o suave toque de uma Mão que escondeu-se antes que ele pudesse vê-la ou agarrá-la. De onde teria vindo? Foi para o Homem um momento febril; era como algo novo e ainda assim conhecido, uma sensação de reencontro indefinida e que pressionava seu peito com tanta força que deixava-o quase sem ar. Olhou para os lados, para os rostos indiferentes ao seu redor, e entendeu que, fosse o que fosse aquela sensação, era apenas sua: ninguém mais a percebia e, portanto, só ele poderia decifrá-la. Fechou os olhos, atendendo a um conselho vindo de algum lugar geralmente silencioso dentro de si: cheirou o ar, ouviu os sons da tarde, sentiu o vento suave contra as partes descobertas de seu corpo.

Então, decidiu-se. Andou em passos rápidos, sem saber para onde, sem calcular, movido apenas pelo impulso e pela urgência. Atravessou a rua, dobrou a esquina, viu uma porta, entrou. Demorou alguns segundos para perceber onde estava; não era um lugar extraordinário à primeira vista, e por algum tempo não conseguiu notar nada de especial à sua volta. Então, em um súbito raio de consciência, a Mão o tocou uma vez mais; o Homem voltou-se rápido, e então ele viu. Teve medo, mas respirou fundo, sustentando o olhar, deixando até escapar algo próximo a um sorriso de satisfação. A Perspectiva diante de si, porém, não devolveu o sorriso. Sem grosseria, mas com firmeza, agarrou o Homem pelo braço e apenas disse: vamos lá, mexa-se, estamos perdendo tempo.

Publicado originalmente em 31 de outubro de 2009

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O livro

Uma vez, perguntei para o meu pai quem é que escrevia aquele Livro. Que Livro, perguntou meu pai. O Livro da Vida!, respondi, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Meu pai riu e não respondeu.

Ainda faço essa mesma pergunta a mim mesmo, todos os dias. Não sei se há uma resposta. Mas a pergunta me parece tão bela que deve ser repetida, dia após dia, até que surja a solução. Ou, ao menos, o fim da dúvida.