terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A respeito das noites sem esperança


- Senhor? Boa noite, senhor – era um bêbado, com os olhos apertados, que me vira esperando o ônibus e resolveu que eu poderia ser a solução dos problemas dele. Tirei um dos fones de ouvido, para entender melhor o que ele ia me dizer, embora na verdade eu já soubesse o que era. – O senhor pode ficar tranquilo, eu não sou bandido, não vou assaltar ninguém… É que, com toda a sinceridade, eu quero tomar uma cachaça, e meu dinheiro acabou. O senhor não tem nada para me ajudar, não?

Respirei fundo. Eu tenho essa espécie de imã, um campo magnético que atrai os pobres-diabos das ruas da vida. São muitas as vezes em que sou detido por um pedinte, por um bêbado ou por um maluco, e quase sempre isso resulta em alguma conversa, rápida ou não. Não sei se tenho vocação para ouvir confissões, ou se transpareço de tal forma meu coração-mole que as ruas já sabem que sou um alvo fácil e mandam seus emissários para testarem minha fé no gênero humano. Seja como for, olhei para o homem: uma pessoa simples, já de certa idade, de camiseta puída e jeans surrados, calçando chinelos de dedo e carregando algumas compras em uma sacola plástica. Não era um mendigo: era um cidadão muito humilde, que deve ter parado no caminho de casa para tomar uns tragos e acabou ficando, sugado que foi pelas garras de um antiga e sedutora companhia.

Olhei para ele por algum tempo. Depois, puxei do bolso duas moedas de baixo valor e entreguei para ele. Como eu já imaginava, ele resolveu puxar conversa, sempre falando de uma forma tão polida que era quase comovente. “Muito obrigado, senhor. Eu logo vi que o senhor ia me ajudar. O senhor tem cara de quem entende os outros”. E continuou: “Se o senhor quisesse, né?, podia não me dar coisa nenhuma. Podia até me largar lá no hospital, talvez fosse até melhor”. E riu, uma risada baixa, breve e sem muito humor.

Deixei o homem falar, e ele não se fez de rogado. Disse-me que era casado, tinha filhos, e que de fato tinha saído para comprar alguns mantimentos para sua casa (“minha mulher vai me matar”, falou a certa altura). Como eram cerca de dez e quinze da noite, imagino que ele já estivesse há várias horas se embebedando. Reconhecia a si mesmo como um alcólatra, admitia sem reservas que o que fazia consigo mesmo e com os familiares era errado, e dizia que “essa coisa de beber sem parar” o estava matando aos poucos. Mas conseguia achar dignidade no fato de estar pedindo dinheiro (“eu pelo menos não roubo ninguém, não saio com faca por aí”) e parecia muito chateado com um companheiro de trago, que tinha pego algum dinheiro para comprar cachaça e não voltava. “Eu devia ter desconfiado do guri, deve ter pego o dinheiro para comprar pedra”, disse a certa altura.

Não interferi muito na conversa, preferindo ouvir o homem falar na maior parte do tempo. Apenas uma vez o interrompi, e perguntei – de modo até meio tolo, admito – se o homem não pensava em parar de vez com aquilo, já que a bebida causava arrependimento e fazia tanto mal à sua saúde. Ele disse “eu já tentei, mas me falta força de vontade” e completou: “acho que eu não vou largar dessa vida nunca. O senhor tem todo o direito de pensar mal de mim, porque é verdade mesmo”. Eu disse então que não pensava mal dele, e era verdade. Quem sou eu para julgá-lo? Cada um conhece seus próprios demônios, e sabe muito bem o quão assustadores eles parecem. O homem rendeu-se à bebida, talvez para calar a dor, talvez por ser ela mesma seu demônio - e alguns talvez se achem no direito de julgá-lo, mesmo que também carreguem suas chagas, bem escondidas para que ninguém as veja. Da minha parte, me pareceu mais justo apenas silenciar, ouvir e aprender.

A conversa acabou momentos depois, quando um ônibus surgiu da noite para me carregar de volta ao conforto do lar. Me despedi rapidamente do homem, mas o “vai com Deus” que ele me disse foi tão sincero e num tom de voz tão sentido que, mesmo que eu não seja exatamente uma pessoa religiosa, me vi levado a retribuir com as mesmas palavras. A partir daí, cada um seguiu seu caminho, naquela noite quente e sem consolos de Porto Alegre.