domingo, 29 de abril de 2012

Pequeno discurso sobre uma esquina paulistana


Originalmente publicado em 22/nov/2009

Das incontáveis esquinas pelas quais tenho passado nas minhas andanças por São Paulo, uma delas talvez mereça um pequeno destaque. Trata-se do cruzamento da Avenida Brigadeiro Luís Antônio com a Rua dos Ingleses - que eu imagino que seja ainda na Bela Vista, embora não seja exatamente a esquina mais bonita da cidade. Passo por ali mais ou menos seguidamente, especialmente quando vou encontrar uma amiga para conversas sobre a vida regadas a alguns copos de cerveja. Para os que conhecem as ruas de São Paulo pelas referências da Corrida de São Silvestre (tudo bem, eu também era assim), digo que a Brigadeiro não é o que parece pela TV – trata-se de uma avenida sem muito encanto, que poderia ser bela se os seus prédios mais históricos não tivessem todo o jeito de terem servido de carvão para churrasco, e que é pouso cotidiano de uma série de mendigos e desgraçados de todas as cores e idades. A Rua dos Ingleses, por sua vez, é bem mais bonitinha, com belos jardins, sacadas e prédios daqueles que precisa ser alguém rico apenas para cogitar pagar o condomínio. O trecho que se encontra com a Brigadeiro, no entanto, não é dos mais bucólicos – de modo que, se quiséssemos traçar um paralelo entre mundos diferentes que se cruzam numa esquina, teríamos que procurar outro endereço, porque no cruzamento da Brigadeiro com a Rua dos Ingleses tudo é mais ou menos a mesma coisa, para o bem e para o mal.

Mas enfim, tergiverso. O que de fato interessa na citada esquina é a barreira colocada dos dois lados da via, saindo da esquina da Brigadeiro e avançando alguns metros dentro da Rua dos Ingleses. A ideia, basicamente, é aumentar a segurança de pedestres e motoristas. O cruzamento é bastante movimentado, sendo uma das vias mais comuns de escoamento de carros para quem quer sair da Brigadeiro – e somando isso à geografia do lugar, capaz de ocultar pedestres que atravessem descuidados a rua, torna-se necessário uma grade do tipo para diminuir o risco de atropelamentos e demais acidentes. É um pequeno incômodo: ao invés de atravessar diretamente na esquina, o transeunte que vai pela Brigadeiro é forçado a subir um pouquinho a Rua dos Ingleses e atravessar uns dez metros adiante, onde fica mais fácil ver os carros que se preparam para subir a rua, oriundo dos dois sentidos da avenida.

Quer dizer, era para ser assim. Porque na verdade a preocupação do poder público com o bem estar do cidadão já foi suplantada, sendo substituída pela praticidade pouco responsável, mas eficiente no que se propõe. Algumas das armações metálicas que constituem a barreira foram torcidas, ou por meios mecânicos ou por insistência humana mesmo, e acabaram abrindo espaço para que as pessoas possam atravessar pelo meio delas, chegando ao outro lado da via sem ter que fazer o indesejado trajeto extra. Ou seja, criou-se um atalho no meio da barreira, automaticamente transformando a barreira inteira em pouco mais do que uma peça decorativa, um estranho pedaço de bizarra arte conceitual no meio da imensidão cinzenta. Perdi a conta de quantos eu vi passando pelos espaços abertos no meio daquele cercado já quase inútil – homens, mulheres, crianças, trabalhadores e vagabundos de todos os tipos, esgueirando-se entre o espaço aberto e cruzando rapidamente de um lado a outro, alheios a tudo a não ser suas próprias necessidades e urgências.

Estou a semanas perguntando a mim mesmo por que, no fim das contas, eu ignoro o espaço no meio da barreira e sempre acabo fazendo todo o trajeto, atravessando certinho no lugar indicado. Na verdade, é algo automático: eu simplesmente contorno o cercado, sem pensar no que estou fazendo, atravesso para o outro lado e só quando estou de novo na Brigadeiro é que me dou conta de que, mais uma vez, fiz o caminho mais longo. Sim, claro que é um dilema dos mais insignificantes; mas, por outro lado, me intriga essa atitude simples e mecânica, esse condicionamento a fazer algo que não é fisicamente necessário, e fico matutando sobre o que me leva a agir dessa maneira. Ainda mais reparando que praticamente ninguém age do mesmo modo, que escassos são os que se dão ao trabalho de atravessar no lugar certo, tendo a oportunidade de cruzar por entre as armações e chegar mais rápido do outro lado. Minha última lembrança nesse sentido é a de uma velhinha bem miúda, amparada por alguma parente ou acompanhante, que atravessou vagarosamente a rua e que, obviamente, não tinha condições físicas de fazer a pequena transgressão que os demais fazem de modo quase automático todos os dias. Não era o meu caso, no entanto – não vendo saúde, certo, mas tampouco teria problemas em fazer um pequeníssimo esforço de contorcionismo e atravessar pelo meio das grades. O que, então me impede? Preguiça? Medo de ir contra a lei? Cabeça dura? Conveniência?

Acho que a resposta me ocorreu agora a pouco, ao lembrar outra pessoa que vi atravessando a via no ponto correto, em direção contrária à minha. Era tarde da noite já, início de madrugada de um dia de semana, e o homem que vi era humilde, um negro de bermudas velhas e chinelos de dedo. Alguém que talvez more em algum cortiço próximo, e que havia certamente estado em algum boteco tomando cachaça antes de retornar para o relativo aconchego do lar. Vinha em passos lentos, mas não exatamente trôpegos, e tinha um pequeno sorriso no rosto, como quem está perdido em recordações leves e agradáveis. Duvido que tenha reparado em mim; passou reto, sem hostilidade mas sem interesse, andando devagar de volta para onde quer que fosse o lugar que chamava de lar. Eu, da minha parte, reparei nele, e especialmente no fato de que atravessou a esquina da Brigadeiro com a Rua dos Ingleses de modo seguro e exemplar, como certamente teria sido recomendado por qualquer manual da Prefeitura. Tranquilo, sorridente, relaxado pelo álcool talvez, mas certamente sem pressa. Sem pressa nenhuma.

Acho que é isso, sabe? Isso é que me une a ele, isso que me une à velhinha e as outras poucas pessoas que vi atravessando aquela rua bem certinho, na faixa, sem passar por cima de barreira nenhuma: não temos, nenhum de nós, pressa nenhuma de chegar do outro lado. Quem corre são eles, os que têm trabalho, os que têm família, compromissos, obrigações, os que têm tudo, menos tempo a perder. Eu não sou um deles – e acho que mesmo que estivesse empregado, bem feliz da vida, ou mesmo num futuro com esposa, filhos e prestações me esperando, eu continuaria não sendo um deles. Porque eu estou aprendendo, e isso é uma das grandes lições desse 2009 maluco que estou tendo, que ter pressa não adianta nada; o negócio não é a rapidez, e sim a insistência. A vida não é uma corrida, não é uma competição de quem chega primeiro, e cada vez mais me parece que ninguém vence ou perde no final. Atravesso a esquina da Brigadeiro com a Rua dos Ingleses no lugar indicado porque não tenho motivos para fazer diferente, e nenhuma vontade de me apressar. Se a gente corre demais, não aprecia a paisagem – e é isso que o negro de bermudas e cachaça na cabeça estava fazendo: ele estava, simplesmente, apreciando a paisagem. Sem pressa de chegar. Gosto de pensar que, no fundo, estou fazendo o mesmo.

sexta-feira, 27 de abril de 2012


Pegar o dia em que nada deu certo e tentar tirar dele algum resquício que seja do extraordinário. Juntar toda a raiva e tristeza e pressão e loucura e desânimo e auto-destruição... E espremer. Apertar entre os dedos, torcer e torcer e torcer em busca do extrato mágico, do toque de cor e energia que dá o mínimo de sentido ao esmagador absurdo. Até que surja um caldo de sonho, uma gota pequena que seja, um minúsculo resquício do rio que foi correr em algum lugar que ninguém mais sabe onde fica.

Surge a gota.

E a gota cai, faz um movimento de retilínea elegância rumo ao chão, e logo vai sumindo na terra, desaparecendo, voltando a ser apenas uma lembrança e uma suspeita.

Por um instante, o choque.

Então, o sorriso.

Não tem problema, pensa. E de um golpe se atira ao chão, beijando o solo, tentando sugar a gota de volta para si. Não tem problema, pensa de novo. Não tem problema.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Pequena nota sobre o abandono

Me perguntam sobre abandono. Quer saber o que é abandono, meu caro? Abandono é o morador de rua que vi um dia desses, cara fechada, roupas cinza-escuro de pura sujeira, carregando um aparelho de som todo detonado enquanto atravessava a Avenida Ipiranga. O homem cruzou a rua com o sinal verde para veículos, bem devagar, sem olhar para os lados, sem a menor preocupação se vinha carro ou moto ou caminhão ou o que quer que fosse. Vários veículos passaram a mil, tirando fininho dele, flertando com o atropelamento. Gritando, xingando, buzinando - e ele nem aí. Chegou do outro lado meio que por milagre, parou na ponte por cima do arroio, fez um golpe de braço e jogou o aparelho de som lá embaixo, no meio da água suja, soltando um suspiro alto de quem se livra de algo que odeia. E o aparelho se estatelou lá em baixo com um estrondo e o cara seguiu andando devagar, indignado com algo que eu nunca vou saber o que é. Abandono, tu me perguntas? Abandono é esse cara, te respondo. Abandono de toda lógica, todo sorriso, todo motivo, todo sentido e toda explicação. Abandono da vida. Alguém que anda e respira porque nem sabe mais por quê. Porque odeia, talvez. Que cruza a minha vida por uns poucos segundos e logo some, desaparece na cidade cinza, vai odiar a vida em algum lugar bem longe de mim.

domingo, 22 de abril de 2012

A escadaria e o horizonte


Por aquela rua jamais havia andado. Era um caminho de calçadas mal cuidadas, de casas humildes, de árvores cansadas e paralelepípedos. Ainda não era noite, embora o sol há muito tivesse sumido, deixando apenas uma lembrança de si para trás, como um amigo tentanto iluminar o trajeto da noite que chegava para ocupar seu lugar.

Poucos estavam naquela rua àquela hora do sábado. Nenhum reparou nele. Desceu o caminho a passos lentos, cuidando onde pisava, temendo talvez tropeçar em algum buraco ou pedra solta. Em alguns momentos, abandonou a calçada e foi pelo meio-fio; nenhum automóvel passou para importuná-lo. Foi descendo, rumo ao que acreditava ser a esquina de uma avenida conhecida, até ver em um relance a pequena escadaria que levava a uma elevação de terreno. Parado em frente aos degraus, ouviu som de gritos e risadas. Uma praça, pensou, algo admirado de que uma rua tão pouco encantadora pudesse ter uma praça.

Subiu.

Ao topo da escadaria, encontrou o horizonte.

Havia uma lua. Uma imensa lua cheia, grande como não lembrava de ter visto, brilhando amarela contra o violeta do céu indeciso entre a noite e o dia. Uma lua que há séculos não via, em um horizonte do qual tinha até esquecido, e que ali estava paciente esperando por ele. Há quanto tempo? Nunca soube, e mesmo assim já havia esquecido. Sentiu-se arrebatado pelo reencontro, percebeu a satisfação da imensa lua em revê-lo e permaneceu de pé, no topo da pequena escadaria, sua vida pregressa e futura encontrando resumo naquela súbita e inesperada epifania.

Ficou olhando a lua por um longo tempo. E lá permaneceu, décadas depois de ter ido embora, lembrança que encontra no crepúsculo a trilha para a existência eterna.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Diálogo sobre a morte

"Quem é você?"

"Não fará muita diferença saber quem sou. Estou apenas de passagem. Estarei aqui por poucos minutos; em seguida partirei e nunca mais me verás."

"Então, não deves ser deste Mundo."

"Não sou, de fato. Porém, certamente sabes que não há outros Mundos: este é o único. Eu, que vejo tudo de fora, posso dizer."

"Vês tudo de fora? Se é verdade, então deves saber bem como o Mundo funciona. Explica-me."

"Não sei muito do Mundo, na verdade. Vejo-o sempre de longe. Entendo um bocado da Vida e um pouco sobre a Morte, mas é só."

"Ah, é? Então me conte mais a respeito da Morte."

"Morte? Que dúvida curiosa a tua. Afinal, estás vivo. Porque desejas saber não da Vida, e sim sobre a Morte?"

"Não sei ao certo. Acho que a Vida nunca me atraiu. A Morte é mais dramática e fascinante. Além disso, a Vida acaba e a Morte é eterna. Seja como for, conte-me mais a respeito da Morte."

"Hmmm. É difícil explicar com palavras. Acho que será mais fácil entender se eu apenas mostrar. Olhe nos meus olhos."

Olhou, e viu. Viu a chuva inclemente, o céu rasgado pelos relâmpagos, a maré alta. Viu a lama cobrindo as plantações, as árvores retorcidas, os cadáveres cobertos de moscas varejeiras. Viu cães brigando por restos de comida enquanto bombas desabavam no horizonte. Viu ratos que saltavam dos prédios, fugindo do fogo rumo ao abismo. Viu relógios que giravam rápido demais, sumindo em meio ao enxofre que tudo cobria. Viu que alguns choravam, que muitos gritavam e que outros tantos gargalhavam em meio aos gritos. Viu traição, viu mentira, viu medo, viu ódio e trapaça. Viu crianças e velhos, reis que tremiam de medo, casais que se despediam. Viu uma estrela pesada caindo do céu; ao longe, quase inaudível, uma voz fazia o batismo, gritando o nome uma vez, e depois mais uma, e depois mais uma. Absinto, era o nome que gritavam. Absinto.

Quando cansou-se de ver, cerrou com força as pálpebras.

"É isso que é a Morte, então?", disse enfim, chorando de medo e revolta. "Uma coleção de tormentos? Um espetáculo sádico onde tudo é dor e desespero?"

"Não. Isso é a Vida. A Morte é o que viste quando fechaste os olhos".

domingo, 8 de abril de 2012

Trecho de um conto que está parado desde 2008. Uma história de submundo do rock, explicando o fim prematuro de uma banda promissora com um pouco do surrealismo alegórico que acaba sempre entrando nas coisas que escrevo. Era para ser uma história um pouco mais longa, talvez uma novela quem sabe. Ainda acho a ideia boa, mas não sei se vou completar a história um dia. De qualquer modo, estava fuçando arquivos antigos e a encontrei aqui, de forma que me deu vontade de compartilhar - mesmo porque, aqui entre nós, Antediluvian Beast é um nome bem sonoro e estranho para uma banda.

Tudo começou quando meu editor me encarregou de localizar algum ex-membro do Antediluvian Beast, de preferência o vocalista Elliot Greene. Como vocês devem saber, o guitarrista Richie Baumgarten foi encontrado morto há uns vinte dias, atirado em uma cama imunda de um motel escroto com uma seringa espetada no braço – vocês sabem, a típica morte de rock star. Pelo que disseram os legistas, a heroína era ruim, e a quantidade injetada tinha ajudado bastante também. Droga, 27 anos não é idade para morrer, não importa o que Jim Morrison ou Kurt Cobain possam dizer a respeito. Seja como for, Elliot e Richie tinham sido a dupla responsável por quase todo o material do outrora promissor conjunto, e seria jornalisticamente interessante saber de que modo o primeiro encarava a morte do segundo. Além disso, a tragédia talvez fosse a chance de esclarecer outros pontos também.

O Antediluvian Beast tinha sido o típico caso de carreira fulminante. Surgido praticamente de lugar nenhum, o quarteto lançou um disco auto-intitulado, vendeu consideravelmente bem, tocou em todos os lugares que fazem alguma diferença e passou a ser visto como um dos grupos mais relevantes e promissores de sua geração. Vocês sabem como é, aquele rock de sonoridade suja, com melodias que colam no cérebro e letras existencialistas – não tinha como não dar certo, a molecada adora essas coisas. Seja como for, a banda emplacou pelo menos dois hits de alguma repercussão e, como sempre acontece, trouxe na esteira de seu sucesso uma manada de imitadores. Todos concordam que, se tivesse conseguido lançar um segundo disco à altura do primeiro, o Antediluvian Beast teria tudo para crescer muito mais e parar sabe lá Deus onde. Mas o segundo álbum nunca veio, a banda perdeu o timing, desapareceu completamente da cena e, não fosse a morte trágica de seu guitarrista, dificilmente ouviríamos qualquer palavra sobre o grupo na mídia, seja ela especializada ou qualquer outra.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sobre a urgência (vrs 2)

Deixa eu explicar urgência para você. Está vendo aquela pessoa ali, que acabou de olhar no seu rosto enquanto passava a esquina? Pois ela não existe mais. Acabou, ficou para tras, sumiu no mundo que já foi e nunca mais será de novo. Aquela pessoa que você viu pela janela do ônibus? Morreu. Talvez não morta na morte, mas certamente morta na vida, sumida na multidão de coisas que não foram feitas, ditas, sentidas e que agora foram tragadas pelo tarde demais. Talvez voltem, você diz. Não voltarão, digo eu em resposta. Voltar é acaso, é exceção, é coisa que mais deixa de acontecer do que acontece, o tempo todo, a vida toda. Nada volta. Não foi, não vai ser - será um aborto de ideia, um rascunho inútil, uma lembrança aleijada do que não existe para ser lembrado. Queria voltar no tempo, você me dirá. Delírio, respondo. Não vai voltar. Nem o que foi bom, nem o que foi ruim, nem o que está sendo nesse exato momento e você aí, deixando ser sem fazer nada a respeito. Nada volta. O abraço não volta, o beijo não volta, o grito, a dor, o medo, a dúvida, a certeza. Nada. Nunca. E é isso, meu caro, que é a urgência: a sensação permanente de estar correndo atrás do que acabou de deixar de existir. Na esperança de em algum momento, pelo puro acaso, agarrar no ar a mágica, o milagre que nega o mundo e consegue permanecer.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Uma resolução de ano novo em Abril



Decidi, de forma definitiva, que vou cuidar da minha saúde. Tenho sido desagradavelmente relapso comigo mesmo: estou gordo, sedentário, não uso protetor solar todos os dias como deveria, não tomo medicação para os males que sei que tenho e nada faço para diagnosticar os que imagino que possa ter. Tenho bebido com frequência, me alimentado mal, dormido pouco, trabalhado demais. Meu corpo é testemunho de meu desleixo, e nada tenho a reclamar do destino ou do azar, já que quase tudo é culpa minha.

Dito isso, decidi que cuidarei de mim mesmo. Já vinha ensaiando isso desde o começo do ano ao menos - tentando comer um pouco melhor, me estressar menos com as coisas, acordar mais cedo e deitar mais cedo. Tudo isso, porém, de forma um tanto incipiente, movida mais pela boa intenção do que por uma verdadeira convicção. E o que mudará isso, o que me fará buscar de forma concreta um rumo para minha saúde e minha vida, não é o esforço carinhoso de alguns amigos e amigas, não é a pressão justa e amável dos familiares, muito menos resultado de algum tipo de epifania ou revelação individual. O que me tira do pode ser e (espero eu) me coloca em definitivo no rumo dos hábitos melhores é a súbita lembrança da conversa que tive com um taxista no verão do ano passado - e, é claro, das sensações que aquele encontro proporcionou, revividas a partir desse inesperado relembrar.

Era um taxista corpulento - daquele tipo de pessoa que sobra, que mais ocupa espaço do que se possa dizer que seja gorda propriamente. Sobrava para os lados do banco de motorista do mesmo modo que sua barriga sobrava para os lados da bermuda jeans. Dirigia o tempo todo apenas com o braço direito - o esquerdo estava parcialmente para fora do carro, exposto de forma descuidada ao sol de fevereiro. Como todos os bons taxistas, estava bem disposto para um dedo de prosa - e, dotado do também natural sexto sentido dos motoristas que gostam de conversar, percebeu que eu sou do tipo de passageiro que não costuma desgostar de uma boa conversa.

Fomos papeando, portanto, enquanto o taxista me conduzia a meu local de trabalho. De início, parecia que seu repertório era restrito a observações pouco sofisticadas e um tanto explícitas sobre sua vida sexual. Repetiu muitas vezes que, em sua opinião, pouco restava a um homem diante de uma mulher disposta ao sexo do que satisfazer-lhe o desejo - e pareceu-me que ele de fato exercia essa sua certeza no dia a dia, já que conseguiu me listar uma série de aventuras sexuais durante o relativamente curto tempo de viagem, todas elas pontuadas por sinceras e sonoras gargalhadas. Fui ouvindo sem interferir muito, apenas lançando uma que outra frase para não deixá-lo falando sozinho, achando graça daquela conversa um tanto fora de propósito.

Contou-me que havia sido casado, mas nunca muito fiel - e que, mesmo separado, atendia eventualmente os reclamos de sua ex-esposa, ao mesmo tempo que mantinha uma quantidade considerável de amantes, sua ex-cunhada entre elas. Amantes que, como ele me confidenciou, custavam-lhe quantidade considerável de dinheiro, o que o fazia trabalhar dobrado para conseguir manter sua intensa vida sexual sem deixar que nada faltasse a sua única filha, que ingressaria naquele ano no segundo grau. "Às vezes, falta dinheiro até para mim", disse ele. E foi quando o tom de sua conversa subitamente mudou, assim mesmo como o céu que muda de cor às escondidas, aproveitando uma distração nossa para passar do azul para o cinza agourento de chuva.

Ergueu o braço esquerdo, o que nunca tocava o volante e que eu mal tinha visto até o momento. Seu antebraço estava parcialmente coberto por queimaduras de sol. A pele, toda avermelhada, descascava visivelmente em vários pontos, com camadas de tecido morto dando um aspecto bem desagradável à cena. Não era uma queimadura comum, de quem jogou futebol ou saiu para a praia sem protetor solar; mais parecia uma ferida profunda, de quem seguidamente submetia a região aos rigores do calor e do sol. "Tá vendo isso aqui?", perguntou, como se fosse possível não enxergar aquela feia mistura de pele ferida e cicatrizes. "Estou com medo de estar com câncer", acrescentou, juntando palavras a uma suspeita bastante razoável naquelas circunstâncias.

Explicou então que já havia ido a um médico algumas vezes e sido advertido do risco de que aquela queimadura recorrente, fruto de anos andando com o braço descoberto para fora do carro, evoluísse para algo pior. Haviam receitado pomadas - que ele havia deixado de passar, uma vez que não tinha dinheiro suficiente para comprá-las. "Não posso deixar minha filha passar necessidade", argumentou. Às vezes fazia bandagens, colocando gaze sobre a parte ferida - em outras, como naquele dia, esquecia ou apenas tinha preguiça de fazê-lo. Naquele momento, era pressionado pela filha e pela ex-esposa para fazer novos exames, o que hesitava em fazer. "Vai que o doutor me manda parar de trabalhar", ponderava, a voz tomada por uma genuína preocupação. "De onde vai sair o dinheiro? Não tenho nada nessa vida, só sei dirigir".

Senti-me meio que obrigado a dizer algo. Medindo com cuidado as palavras, ponderei que talvez fosse melhor mesmo ir ao médico, que se ele iniciasse logo o tratamento eventuais danos poderiam ser reversíveis. Me ouviu, silenciou por instantes e respondeu insistindo que não podia se dar ao luxo de ficar sem trabalhar. "Quando a coisa melhorar, quando eu estiver com mais dinheiro, eu cuido disso", disse ele, com o tom inconfundível de quem tenta dar um peso extra às palavras - tentando acreditar, creio eu, que com elas seja capaz de convencer a si mesmo.

E agora pergunto: como poderia eu condená-lo? Não é exatamente assim que me comporto todos os dias, em todas as ocasiões onde minha saúde é assunto, para outros ou para mim mesmo? Não vivo eu a convencer a mim mesmo que mais tarde tomarei conta dessa questão, que serei mais responsável comigo mesmo assim que a vida me permitir uma pausa para respirar - mesmo sabendo, e disso sei muito bem, que a vida jamais fez e jamais fará pausas para quem quer que seja? Não fico eu adiando consultas, às vezes por obra do acaso, às vezes pela própria inércia, como alguém que deseja não correr risco de surpresas desagradáveis? Não sou eu mesmo que fico levando a vida como se tudo estivesse sob controle, sufocando em algum canto escuro da mente a ideia de que estou descuidando demais, ignorando demais, protelando demais?

Muitas das histórias que a vida me manda costumam ter um sentido mais filosófico, digamos assim - trazem algum tipo de ensinamento imaterial, algum novo ângulo pelo qual a vida se transforma e parece ganhar mais (ou menos) sentido. Curioso que o encontro com esse taxista desconhecido, de quem nunca mais soube e provavelmente nunca mais venha a saber nada na vida, seja justamente um dos primeiros que percebo trazer um ensinamento prático, um recado específico e muito particular a respeito do que sou. Um alerta, talvez possamos dizer. Que a dor daquele taxista, a quem pouca ajuda pude ou poderia ter prestado, me sirva ao menos de exemplo e estímulo. É hora de cuidar de mim mesmo, é o que ouço com clareza em minha mente. É hora de cuidar da minha saúde.