domingo, 27 de maio de 2012

O hiato

Do infinito viemos, ao infinito retornaremos. O tempo, ou essa precária sucessão de números empilhados um sobre os outros que nos acostumamos a chamar de tempo, só faz sentido para nós mesmos, nesse breve hiato de som e confusão entre a quietude que foi e a calma que será. É um sentido pobre, porém, fruto do súbito terror da consciência diante do absurdo desaparecimento de todas as coisas. Nada fica, diz o Mundo. Algo deve ficar, teimamos em resposta. Que algo fique, que alguma coisa sobreviva pelo trajeto, que permaneça pelo menos o símbolo, registro dos lampejos de luz em meio à aparente escuridão total. Assim, pelo engenho de nossa mente e pela precisão de nossa matemática, foi criado o calendário. Bela e frágil gaiola que, em sua ingenuidade de brinquedo infantil, pretende capturar o que passa e impedir que se vá de volta ao infinito que foi e será. Um invento engenhoso, mas que jamais funcionou.

Mesmo assim, insistimos. E com nossa obsessão por contar segundos, acabamos temendo e negando o tempo que insiste em surgir em meio aos dígitos. Odiamos a memória que some, a ruga que surge, o presente que no milésimo de segundo seguinte já é passado. Nossas contas são falhas; nossos relógios giram de forma estúpida enquanto as coisas passam, passam, vão e nunca voltam, sem dar aos ponteiros a mínima atenção. Mas tamanho foi nosso esforço, tantas são as engrenagens do monstro que devora intervalos de vida que se tornou impossível desmontá-lo. Somos, portanto, escravos da nossa própria invenção.

Pudéssemos, faríamos do instante um prisioneiro. Daríamos um jeito de congelar a juventude passageira, o gozo do que se foi e o sorriso que não volta mais. Pararíamos o mundo e o guardaríamos como um troféu, sem saber direito o que fazer com ele, contentes demais com a aparente conquista para entender de que, uma vez mais, ela não nos prestaria para nada. E a Verdade, confusa com tantos números e cálculos para entender o que deveria ser tão simples, deitaria na relva e se poria a contemplar as estrelas, logo esquecendo da tolice dos homens.

Do infinito viemos, ao infinito retornaremos. O tempo, ou essa precária sucessão de números empilhados um sobre os outros que nos acostumamos a chamar de tempo, só faz sentido para nós mesmos, nesse breve hiato de som e confusão entre a quietude que foi e a calma que será.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O caminho dos que andam com pressa

Publicado originalmente em 31 de maio de 2009

Sexta-feira, mais ou menos seis da tarde, esquina da Paulista com a Augusta, coração de São Paulo. Eu estava esperando por uma amiga, me preparando para umas cervejas e um pouco de conversa sobre a vida difícil dos gaúchos no coração de São Paulo. Tinha conseguido uma carona, então tinha chegado mais cedo, e matava tempo ouvindo música e vendo o movimento enquanto esperava ela chegar. Estava tranquilo, feliz de finalmente poder sair em uma semana de tempo ruim e de poucas coisas para fazer, e me sentia leve e sem maiores preocupações – tanto que em determinado momento me peguei fazendo um discreto “air guitar” no meio da rua, que é algo que eu realmente só faço quando estou muito distraído e relaxado. Deve ser algo extraordinário, um gaúcho de Porto Alegre fazendo “air guitar” em plena Avenida Paulista, mas enfim, não é disso que eu ia falar. Eu ia falar do cidadão humilde, baixote, usando um terno de tom marrom claro e com uma enorme Bíblia na mão, que apareceu em determinado momento no meio daquela confusão de pessoas que iam e vinham, numa das esquinas mais emblemáticas de uma cidade que, cada vez mais eu percebo, desafia categorização.

[caption id="attachment_255" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Leandro Kanno"]Leandro Kanno[/caption]

Não vi de onde surgiu o homem, para ser honesto. Quando o percebi, estava próximo de mim, distribuindo para algumas pessoas pequenos panfletos de cunho religioso. Esperei que ele viesse a mim, e recebi o papel com um “obrigado” e um breve gesto de cabeça, ao qual o homem retribuiu com um sorriso de boca fechada, discreto mas dotado de considerável simpatia. Tenho ainda comigo o papel que ele me deu: uma pequena história sobre o encontro do fogo, da água e da oportunidade, seguida de uma pergunta do tipo “você gostaria de aceitar Jesus Cristo como seu salvador pessoal?” – coisa simples, feita para pessoas simples, talvez as mais propensas a abraçar os conceitos de fé de uma igreja evangélica. Distribuiu para mim e para algumas outras pessoas o pequeno panfleto, e depois posicionou-se no meio do passeio público, oferecendo aos que andavam o pequeno pedaço de papel que a mim havia dado pouco antes, tendo sempre o enorme volume da Bíblia repousando debaixo do braço.

Fiquei observando a cena. Era, acima de tudo, um contraste interessante: o homem parado, distribuindo pequenos panfletos com a Palavra que havia adotado como sua, enquanto a seu redor as pessoas passavam rápidas, velozes, apressadas, quase sempre indiferentes. Poucos foram os que vi pegarem o pequeno papel que a mão do homem oferecia, e talvez um ou dois tenham agradecido, no máximo. Os demais passavam reto pelo homem, sem sequer dar a ele a dignidade de um olhar, de um momento de atenção, preocupados que estavam com suas próprias vidas, problemas e pensamentos.

Acho que aquilo, de certo modo, abalou um pouco o homem. Acredito que, para ele, aqueles papéis eram algo muito sério, um tipo de presente que distribuía a desconhecidos, sem distinção de cor, gênero ou aparência, e para ele era desagradável ver que sua oferta era recebida com desinteresse, como se fosse apenas um incômodo, ou nem mesmo isso chegasse a ser. Na verdade, creio que ele faria a pregação de qualquer jeito – mas, confrontado com a falta de fé dos homens e mulheres que o cercavam, resolveu que era hora de tentar outra coisa, e de usar sua própria fé como modo de ser percebido ou, pelo menos, de quebrar aquele ruído repleto de silêncio com o som da sua voz e da mensagem que trazia dentro de si.

E pôs-se o pequeno e humilde homem a pregar ali, na esquina da Paulista com a Augusta, em plena hora do rush, andando de um lado a outro enquanto falava. Começou em tom um pouco baixo, que eu mal percebia por trás do som do meu mp3 player ligado, mas logo se empolgou, e começou a bradar a palavra de seu Deus com tal intensidade que nem o mais empedernido ateu poderia ignorar. Acabei cedendo a tanta emoção, desligando a música e emprestando meus ouvidos ao homem por alguns minutos.

Não saberia reproduzir com detalhes o que o homem falou – mas duas frases dele me causaram alguma impressão, indo além da pregação empolgada, mas que para mim sinceramente soava rasa e pouco comovente. Disse o homem em dado instante que os que por aquela rua passavam deveriam acautelar-se, e refletir sobre o rumo que davam a suas vidas. “Para onde vocês estão indo essa noite”, quase gritava, “para a alegria breve, para a depravação, ou para honrar a palavra de Deus? Quem vocês buscarão, o filho de Deus ou a companhia do Seu maior inimigo?”. Logo depois, disse o homem, com tom severo: “cada um escolhe seu caminho, e um deles traz a Vida, mas no outro só há a dor e a tristeza eterna”. Disse obviamente outras coisas, mas delas não lembro – e sua voz não tremia, antes ficava mais alta e empolgada à medida que os minutos iam passavam e sua pregação alcançava o clímax, exortando todos a juntarem-se a Jesus enquanto havia tempo e nem tudo estava perdido.

Enquanto ouvia essas e outras coisas, observava também as pessoas que passavam, e foi fácil perceber que ainda eram poucos os que davam ao homem mais do que um instante de atenção. Os que o observavam geralmente o faziam movidos pelo desagrado, não raro fazendo caretas e comentários jocosos sobre a situação. Próximos de mim, quatro jovens adolescentes, de talvez dezesseis anos ou um pouco mais, usando roupas coloridas e chamativas, conversavam entre si enquanto fumavam um cigarro de maconha – o que imagino que considerassem como um motivo de orgulho, ápice de sua revolta e rebeldia adolescente. Eram eles os mais debochados, os que mais abertamente atacavam o homem que estava envolvido naquela batalha de fé. Um deles jogou um papel de bala, outro aproximou-se dele e gritou algo que não ouvi, mas que não devia ser exatamente encorajador – e um deles chegou a oferecer ao homem a erva que fumava, com um olhar malicioso e um sorriso de desprezo estampado no rosto. E o homem, pelo menos externamente, não se abalou: contra os ataques dos fariseus sem fé, seguiu gritando aos quatro ventos a sua verdade, a sua crença, o que talvez julgasse ele ser ainda maior do que ele próprio.

Mais ou menos nessa altura apareceu minha amiga, que mais tarde me disse ter ouvido já do metrô a pregação que tomava conta da esquina. E me juntei a ela para irmos embora dali, não sem antes dar um último olhar ao homem que continuou na sua profissão de fé, provavelmente por muito tempo depois de eu estar presente para testemunhá-lo.

À primeira vista, eu mesmo me admirei um pouco de ter sentido simpatia pelo homem, e um certo desagrado de vê-lo ser alvo do desinteresse e, às vezes, da hostilidade daquelas pessoas. Não que eu tenha sido religiosamente tocado pela cena; não sou ateu, mas tenho sérias ressalvas às seitas e igrejas que produzem a fé sem reflexão, e digo sem reservas que a palavra do homem pouco ou nenhum efeito teve sobre mim, sendo incapaz de me provocar maior comoção ou mesmo interesse. Nesse sentido, não sou nem um pouco melhor do que as pessoas que passavam por ele sem olhá-lo ou destinavam a ele palavras e gestos de zombaria – pois sou um infiel como elas, alguém a quem a Palavra daquele homem, em si mesma, foi e possivelmente seja para sempre incapaz de tocar. Mas, se pouca afeição as religiões constituídas me provocam, sempre vejo com respeito e simpatia a fé individual, mesmo porque muitas vezes é para o seu portador tudo que há de mais valioso – e, no caso em questão, a fé daquele homem me fez refletir em coisas que não são exatamente produtos de qualquer religiosidade, mas ainda assim me provocaram certa impressão.

Acho que, de certo modo, me identifiquei com a posição dele – uma pessoa que se detém, que fica parada enquanto o mundo insiste em se mover, sem descanso e muitas vezes sem objetivo algum que não o próprio movimento. Comentei isso com minha amiga mais tarde, durante uma das mundanas rodadas de cerveja no Charm da Augusta: como o mundo insiste em ser rápido e incessante, e como é libertador conseguir não entrar nessa correria, como é apaziguador poder viver e observar um pouco as coisas, sem simplesmente passar voando por elas. Tinha uma razão meio torta, o homem – para onde iam com tanta pressa, no fim das contas, todas aquelas pessoas? O que as aguardava, o que iam buscar que era tão urgente, tão necessário, tão inadiável? Haverá para cada uma delas um motivo, um caminho a trilhar, ou estão muitas delas simplesmente andando, porque andando estão há tanto tempo que a idéia do que alcançar já se perdeu e as pessoas andam simplesmente porque andar se tornou em si mesmo a causa e consequência de tudo? As pessoas andam, riem, choram, bebem, amam, vivem e morrem todos os dias – mas quantas delas tem de fato algo que as anime, algum tipo de fé ou convicção na qual se segurar, e quantas no fundo fazem o que quer que estejam fazendo apenas para preencher esse vazio, essa falta de fé, talvez especialmente de fé em si mesmas? O que, no fim das contas, move tanta gente – e, em última análise, o que move a mim mesmo? O que eu quero, no fim das contas?

Parado ali, no meio daquela esquina, aquele homem pequeno e humilde tinha um objetivo. Um objetivo talvez questionável em eficiência, em conveniênca ou mesmo em princípio – mas ainda assim algo que o levava a parar, algo que para ele é um norte, um caminho a seguir. E não deixa de ser um pouco triste que eu, pessoa sem maior apreço pelas religiões e que definitivamente não compartilho da imensa maioria de suas crenças e métodos, tenha sido talvez o único a ver aquilo com alguma consideração, e ainda assim tirando ali um pensamento que certamente não era o que ele gostaria que eu tivesse. De qualquer modo, embora eu saiba que ele muito provavelmente jamais lerá esse texto, gosto de imaginar que serviria para ele de alegria e consolo saber que, por vias tortas, suas palavras atingiram a mente de alguém. Da minha parte, vou tentar seguir sem pressa, olhando as pessoas pelas esquinas da vida – mesmo porque, sinceramente, não acho que eu seja capaz de agir de outro jeito, e ainda há tanta coisa para ver e para contar.

A foto, que aqui uso de forma meramente ilustrativa, é de Leandro Kanno. Espero que ele não se importe com esse empréstimo; obviamente, retirarei a imagem do blog caso assim deseje. De qualquer modo, agradeço pela ótima imagem, que bem ilustra o palco desta pequena história e observação.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Demissão



Oito horas por dia. Cinco dias por semana. Quatro semanas por mês. Doze meses por ano. Por uma vida inteira - quantos anos? Anos e anos de sair cedo, voltar tarde, andar no estômago de bestas feitas de parafusos e alimentadas de óleo e indiferença. Ir por onde veio, vir por onde voltará, bater no mesmo ponto, no mesmo ritmo, de novo e de novo. Construir castelos de cartas. Esquecer o sono, o sonho, o afago, a dança. Dizer bom dia como quem diz estou morto. Morto. Andar morto entre os mortos, arrastar-se pelas horas mortas, sedento de vida - vida que foi-se embora, não mais existe, cansou-se de nós e nos desertou. Onde está? Certamente não nas chaminés que vomitam cinza, cobrindo o azul do céu, nos roubando mesmo o brilho difuso da estrela distante, ela também já morta. Nada mais brilha. Desço do veículo que me transporta como quem desembarca para o holocausto, subo as escadas como quem ruma ao cadafalso. Arrasto-me pelos segundos intermináveis em nome de breves intervalos de ilusória e estúpida salvação. Quando interrompido o martírio, engulo algo. Mandíbulas. Abdomens. Sabor não há. Nada crio, nada invento. Reproduzo e padeço. Esqueço. Onde me escondi? Quem sou eu? Tenho um nome - que diferença faz? Sou um entre incontáveis, anulado na multidão, engrenagem na grande máquina feita de carne para esmagar almas.

Tenho ódio dentro de mim. Ódio espesso como pó de ferro, recendendo a enxofre, que sufoca a garganta e enche os olhos de lágrimas. Ódio das paredes cinzentas, do chão cinzento, dos céus tingidos de cinza. Ódio que clama por cor, qualquer cor. Ódio do relógio e sua prisão de fina precisão, segundo após segundo em perfeita e sincronizada expectativa pela minha morte. Odeio a morte na vida. E não quero morrer. Recuso a condenação a morrer dia após dia, indo e vindo pelos mesmos caminhos, pelas mesmas vias horríveis de cinzento absurdo. Tenho ódio de cada fim-de-semana e cada feriado. Odeio o descanso. Odeio precisar descansar. Exijo que me devolvam o prazer de dormir, o prazer de acordar, a satisfação de aquecer-se do frio debaixo do sol. Antes do advento do inferno, meus dias eram quase eternos - eu os quero de volta. Devolvam-me o prazer de vencer as distâncias. Levem consigo a pressa e a eficiência, as quais nunca pedi e que jamais foram parte de mim. Exijo, de forma incondicional, o direito de voltar a falhar. Sou Humano, e odeio a Máquina. Que seja destruído, maldito engenho feito de milhões de vidas que foram sem jamais terem sido. Anseio desesperado pelo colapso de tudo. Que nada reste, nem mesmo os escombros. Que me esqueçam.

Me demito de tudo. Se é pelo dinheiro, que fiquem com ele. Engulam cada centavo. De todo o lucro, não quero nem mesmo a lembrança.

Estou fora.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Cultivo

Tenho saudade do tempo em que plantávamos feijões em pedaços de algodão. Era uma experiência estranha e riquíssima: ver o grão duro, tegumento e endosperma que de repente explodem em broto, vão virando raiz e depois caule e depois folha e depois planta inteira. Meus olhos de criança adoravam o processo, e não foram poucas as vezes em que roubei alguns grãos da feijoada de domingo antes que fossem para a panela, pelo singelo prazer de ver surgir deles aquele risco quase milagroso de vida. Cuidava deles com considerável dedicação, procurava manter o algodão sempre úmido, sem exagerar na água, dando sol de vez em quanto. As mudas morriam depois de algumas poucas semanas, mas não me permitia qualquer tipo de luto; era hora de outro feijão e outro germinar. Certa feita, cheguei a dar a alguns daqueles brotos uma sobrevida: plantei-os em um pedacinho de terra na casa de minha vó. Cresceram como eu jamais teria imaginado possível na minha ingenuidade de tão poucos anos de idade - passaram de um palmo de altura, as folhas saltaram, os caules ganharam em firmeza e espessura. Foram devoradas por caramujos e gafanhotos, aquelas mudas leguminosas, mas tiveram vida mais longa que suas irmãs, e gosto de pensar que gostaram da terra, do sol e de viver e morrer ao ar livre.

Será que as crianças ainda plantam feijões em pedaços de algodão? Me ocorreu a dúvida agora, tarde da noite, como um estalo. Desde que meu interesse infantil começou a transformar-se na explosão da adolescência, nunca mais vi ninguém plantar feijões em algodão. Será que ninguém mais faz isso? Terá morrido comigo e com os meus essa tão nobre prática? Será que as crianças ainda têm a chance de ver uma vida nascendo, mesmo que tão pequena e frágil, e se importarem minimamente com ela durante seu breve e inevitável ciclo de surgir, crescer, murchar e morrer? Ou isso ficou no passado, desapareceu na névoa do fim da infância, virou coisa de gente velha - ou ainda pior, de criança velha?

Era só o que me faltava: depois de adulto, ter que plantar um feijão em um pedaço de algodão, só para provar a mim mesmo que isso ainda é possível.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Teixeirinha rumo ao Largo da Ordem

Curitiba. Se bem lembro, era sexta-feira. Uma tarde de um céu indeciso, ora disposto a ficar nublado, ora tentado a deixar-se dominar pelo sol de verão. Não fazia calor, no entanto - pelo menos não aquele calor doloroso que impede os deslocamentos e nos obriga ao ar condicionado, se é que me faço entender. Era, em suma, uma tarde boa para caminhar a esmo, despreocupado, de olhos abertos no desconhecido de uma cidade ainda pouco familiar. E assim fiz, visitante de poucos dias e sem compromissos que era, descendo de ônibus no Passeio Público e permitindo que meus pés me levassem onde lhes parecesse mais adequado.

Me levaram à Rua Quinze de Novembro, agradável calçadão que me pareceu uma das artérias principais do centro de uma Curitiba bem mais interessante e agradável do que costumavam me dizer. Fui e voltei por aqueles caminhos, satisfeito com a grande quantidade de coisas, lugares e pessoas, mais preocupado em observar e sentir do que em memorizar. Andei até o fim do caminho, chegando até uma praça chamada General Osório, mas, por algum motivo, não me animei a conhecê-la naquele dia, preferindo dar meia-volta rumo a um atalho para o Largo da Ordem, que eu já conhecia mas muito me agradaria rever. Segui firme nesse propósito até a esquina da Quinze de Novembro com a Monsenhor Celso, onde a música de um casal de artistas de rua fez com que eu interrompesse a marcha.

[caption id="attachment_233" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Raissa Portela / Canal Fotografia"]Raissa Portela / CanalFoto[/caption]

Nathan e Natacha, chamavam-se. Tocavam uma música bastante simples, uma canção de amor não correspondido crua nos versos e na estrutura. Ambos cantavam, e ambos tinham as mãos ocupadas: Nathan com o violão coberto de pequenos adesivos, Natacha com a caixinha de doações. Os escritos em torno dela eram uma atração à parte - e por meio deles tive a confirmação de minha suspeita, nascida assim que me detive para observá-los: eram um casal de músicos cegos. "Sou 100% deficiente visual, este é o meu trabalho", "obrigado por sua ajuda", "Deus te abencoe por nos ajudar". Avisos escritos em caligrafia nada sofisticada, tinta preta sobre madeira clara, passando uma mensagem tão direta e sem enfeites quanto a música que tocavam.

O público não era numeroso, talvez uma dúzia de incautos, mas ousaria dizer que boa parte daquela plateia era consideravelmente fiel. Um deles, especialmente comunicativo, parecia assumir de modo improvisado as vezes de empresário da dupla, incentivando de forma bem-humorada a audiência a depositar valores na caixinha dos músicos. Pude ver quando esse fã empolgado dirigiu-se a um dos presentes e pediu que ele o emprestasse uma nota de cinco reais. A justificativa: "vou pedir para eles tocarem um Teixeirinha para nós". Certamente peguei a história pela metade, uma vez que a sequência de acontecimentos não faz muito sentido - mas o fato é que a nota de cinco reais surgiu, foi depositada na caixa e, com algumas breves palavras aos músicos, o cidadão pediu que tocassem um tema de Teixeirinha, seja lá qual fosse.

Me dói um pouco admitir que não faço a menor ideia de qual música Nathan e Natacha tocaram naquele momento. Nunca tive maior conhecimento do legado musical de Teixeirinha, e aquela canção eu certamente nunca tinha ouvido antes, de maneira que aquela interpretação acabou sendo uma insólita e inesperada premiê. Infelizmente, ouvi a canção de modo descuidado e não recordo absolutamente nada da letra - lembro apenas que era uma história triste de alguém que via sua antiga amada com outro homem em um baile, ou qualquer coisa parecida com isso. Era, de qualquer modo, uma canção repleta de simples e dolorida sabedoria sobre o amor e a vida - e todo o inusitado de ouvi-la em uma esquina desconhecida de Curitiba, interpretada por um casal de músicos cegos, só fez com que ela ganhasse uma dimensão curiosa e toda particular.

Fico pensando nas milhares de questões que me ocorreram naquele instante, enquanto ouvia os dois músicos cegos tocando uma música de Teixeirinha que eu talvez nunca saiba com certeza qual é. De onde vieram? Desde quando se conhecem? São casados de fato? Moram juntos? Ou são apenas parceiros musicais? Quando formaram a dupla? Quanto tempo levam se deslocando de seja lá onde moram até o coração da metrópole? Quanto conseguem ganhar tocando nas ruas? Dá para viver? Perguntas que me ocorreram na hora e que optei por silenciar. Por vários motivos, mas especialmente porque seria uma tremenda indelicadeza da minha parte interrompê-los assim, no meio de uma apresentação, para importuná-los com minhas concretas e ridículas dúvidas de jornalista. Preferi, então, ficar com as respostas que a música dos dois me trazia, apreciando aquela manifestação de pura vida no coração da grande cidade.

Não sei se um dia voltarei a vê-los. Ouvi a música até o final, juntei-me aos sinceros aplausos do pequeno público e depositei algumas moedas na caixinha antes de virar minhas costas e partir. Sumiram rápido na minha memória, os versos daquela até então desconhecida canção de Teixeirinha - mas tenho aprendido que o que a gente precisa mesmo lembrar acaba ficando, permanece gravado naquele ponto indeterminado onde as memórias do que se sentiu erguem-se acima de todo factual inútil. Vou lembrar daqueles dois cantando aquela música triste, e acho que isso vai me bastar. Uma interpretação sincera e apaixonada de uma bela música, que eu posso nem lembrar direito como era, mas que na minha alma e na minha experiência já se tornou eterna.

NOTA: a foto, como creditado acima, não me pertence. É um belo trabalho de Raissa Portela, publicado no site Canal Fotografia. Tentei contatá-la para pedir autorização de uso e não tive sucesso. Mesmo assim, optei por colocá-la, para dar uma visão mais clara de quem são Nathan e Natacha. Caso a autora da foto assim prefira, retirarei do ar sem problema algum. Agradeço, de qualquer forma, pelo empréstimo e pelo excelente registro.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Just want to feel the starlight on my face

Dez, quinze, vinte milhões de anos-luz. Explode em energia, rumo ao infinito, lançando partículas luminosas de sonho em meio à escuridão. Sonho que não sabe seu destino, que nada sabe de si mesmo, apenas avança, em busca de algum lugar. Longe.

Morreu há tempos, a estrela. De onde saiu o sonho, resta apenas a anã marrom, engolindo a si mesma, sugando para dentro de si tudo que a rodeia em um esforço destrutivo e inútil de preenchimento do vazio. Seus sonhos, porém, cruzam o espaço. A sonhadora está morta, mas os fragmentos de sua essência seguem navegando no infinito.

E chegam até mim.

"Ela está morta", me diz alguém. "Morta há milhões de anos. Como todos os sonhos".

Escuto, mas não dou ouvidos. Fecho os olhos. E tento sentir o toque da luz contra meu rosto, sonho em meio ao sonho, destino final de uma viagem que mal posso conceber.

terça-feira, 1 de maio de 2012

O final

"Então é isso? Acabou?"

"Acabou", confirmou o anjo, com a paciência de quem sabe que começar ou acabar, no fundo, é uma eterna questão de ponto de vista.