quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Uma corrida de táxi até o Palácio da Polícia

"Conheço a rua, sim. Lá na Zona Sul, né? A rua dos blocos?" Perguntou, o taxista, e tinha razão, era lá mesmo. A maioria dos taxistas não sabe, mas eu pergunto sempre, explico ao motorista em tom de brincadeira. "Ah, mas já são mais de vinte anos, né? A gente acaba aprendendo uma coisinha". E deu uma risada expansiva, barulhenta.

Não chovia, mas o céu estava carregado de cinza, alguns raios cruzando o espaço vazio entre os edifícios. Sabia o caminho, o taxista, e foi dirigindo até minha casa sem perguntar mais nada. O que não significa, claro, que fez a viagem em silêncio. Viu em mim, como os taxista normalmente veem, uma pessoa disposta a ouvi-lo falar. E foi falando.

[caption id="attachment_341" align="alignnone" width="850" caption="Foto: Juan José Richards Echeverría"][/caption]

"É bastante tempo, né? Vai fazer vinte e três anos que eu estou na lida", continuou, fazendo o cálculo em voz alta, enumerando os carros que teve para não se enganar na conta. "A gente acaba vendo um monte de coisa. Teve umas situações que, olha, vou te contar. Do cara se beliscar para ver se ainda está vivo, porque o cara fica na dúvida. Do cara ficar pensando tô vivo mesmo, tô vendo mesmo tudo isso acontecer?"

Percebi que queria contar uma história. E é prerrogativa do bom ouvinte encorajar o falante, para que a história surja mais facilmente, mais caudalosa e cheia de detalhes. Contar história a quem não quer ouvir é uma tristeza, eu bem sei. Então fiz meu papel de ouvinte interessado e disse olha meu amigo, eu posso imaginar, mas como assim se beliscar, o amigo achou que ia morrer?

"Olha, já tentaram me assaltar com faca de pão, afiada dos dois lados, que nem punhal. Eu desarmei o cara daqui mesmo, do banco do motorista, preso no cinto ainda. Nem reagi de valente, que eu tenho duas filhas, né: reagi porque achei que eu ia morrer, mesmo. Tu lembra dos tempos que os moleques de rua cheiravam cola de sapateiro? Pois é, uma vez eu vi uma mãe toda mendiga cheirando cola e dando pros filhos cheirarem também. Um dos piás no colo ainda. Me deu uma raiva, fui lá e chutei a lata da mão dela. Joguei no bueiro aquela porcaria. E não é que me deduraram para a Brigada, disseram que eu tinha espancado a mulher? Os caras vieram, me levaram preso, eu me explicando e eles nem queriam saber de nada. Eles são a autoridade, né. Fiquei até cinco da manhã no Palácio, me ficharam, meu patrão teve que ir me tirar de lá. Que coisa, né? O cara faz o que é certo e ainda se incomoda com polícia..."

Entendi que ele fazia um preâmbulo. Trazia consigo uma história maior, uma experiência que ele guardava acima das demais, principal vivência de uma vida no coração de Leviatã.

"E tem uma... Essa é a maior de todas", confirmou, falando bem alto, dando um discreto tapa no volante. "Essa sim, saiu até no jornal. Essa eu me belisco até hoje para ver se estou vivo mesmo".

"Eu era novo no rádio táxi, tinha acabado de entrar na empresa", começou, um estranho sorriso no rosto, como quem recorda um velho fantasma que não mais tem forças para assombrá-lo. "Chamaram um carro na Dona Otília, Beco Dois, e eu sou macaco velho, né, já me liguei que era na Cruzeiro, boca braba. Mesmo assim eu disse ok, deixa que eu vou. Aí o cara da rádio escuta disse olha, tem recomendação especial: entrar de ré".

"Fui lá, entrei de ré no beco, cuidando o número. Mal encostei, o cara abriu a porta de trás do meu Santana, eu tava num Santana na época, né, e jogou uma mala e uma mochila para dentro. Tava lavado de suor o cara, todo ensopado, e nem tava muito calor naquele dia, eu vi que tinha coisa errada. O cara jogou as malas dele no carro, saltou para dentro e disse toca, toca o carro, toca que os caras tão vindo me matar".

Um raio gigantesco cruza o céu, bem à frente ao veículo em que estamos. "Olha que relâmpago, hein", diz o taxista, aproveitando o fenômeno para mudar brevemente de assunto. Concordo com ele, dizendo pois é, o céu tá carregado, vem mais chuva aí. É um bom contador de histórias, penso comigo mesmo; sabe até o momento para fazer uma pausa dramática.

"Eu tô chegando na entrada do beco e aparece os caras. Um com uma 12, cano serrado, o outro com uma 45. Já chegaram fazendo sinal para eu parar, e eu olhei pelo retrovisor para trás, porque achei que o cara que tava no carro ia sacar também e aí deu, né, eu tava fodido. Mas não, o cara não tava maquinado, não tinha arma nenhuma. Só dizia toca, toca por cima, pelo amor de deus, que eles vieram me matar".

Houve nova pausa. Não muito longa, um ou dois segundos no máximo, um breve intervalo de quem toma fôlego para seguir. Ou de quem ainda pesa, muitos e muitos anos depois, as consequências de uma decisão terrível, tomada em uma fração de segundo, diante da urgência que não admite qualquer hesitação.

"Eu não tinha escolha, né", disse ele, quase como se parasse novamente o veículo, como quem novamente salvasse a própria vida às custas de uma sentença de morte. "Parei o carro. Não tinha como. Duas guriazinhas em casa. Os caras iam me furar inteiro. Não tinha como".

"Só vi o cara ali atrás todo lavado de suor, se abaixando, se encolhendo todinho, abraçado nas malas. Nem vi o cara da 45 chegando. É engraçado porque nessa hora, né, no susto da coisa o cara só se liga de ficar olhando a arma maior. O cara da 12 eu fotografei direitinho. O da 45 eu nem vi, só quando ele chegou na janela de trás e meteu bala".

"Onze tiros, amigo. Furou tudo. O cara do banco de trás ficou demolido. Não tem como escapar, as balas se espalham por tudo. Tinha pedaço de cérebro até no porta mala. Tiveram que trocar a porta do Santana". Enumerou esses detalhes mórbidos com uma curiosa dose de orgulho inconsciente. Me pareceu que esse trecho do relato, ainda que nauseante, era uma espécie de reafirmação pessoal, renovado alívio de uma pessoa que viu a morte alheia de perto, mas sobreviveu - ainda que não sem sequelas. "Eu falo alto assim porque perdi 25% da audição do ouvido direito", acrescentou, tirando a mão rapidamente do volante e colocando o indicador quase dentro da orelha. "É uma coisa de louco. Eu achei que só 38 fazia um estampido alto, sabe, aquele BAM, BAM. Que nada, aquela 45 faz um barulho desgraçado também. Eu nem vi nada, só me joguei por cima do volante e fiquei ouvindo. BAM. BAM. BAM".

Imitou os tiros, e silenciou. De novo, não por muito tempo. Com seu silêncio, pontuava o silêncio que tomou conta do beco depois do alarido da morte, naquela noite da qual era um misto de testemunha, carrasco e sobrevivente.

"O cara da 45 disse e aí, motora, tu sabe que tu nasceu de novo, né. Toca para fora daqui e só para lá no Palácio da Polícia. E eu fui mesmo. Fiz todo o caminho bem quietinho, com o cara todo arrebentado ali atrás. Só parei lá no Palácio mesmo. Desci, fui no balcão e disse olha só, aconteceu isso e isso, meu carro tá ali fora, o corpo tá dentro. Os caras não acreditaram, saíram correndo, foram lá fora e viram a desgraça toda. É ou não é do cara se beliscar para ver se está vivo, uma coisa dessas?".

Era sim. Sem dúvida que era.

"A incomodação que isso me deu o senhor nem imagina. Me fizeram ir até lá, reconhecer os caras. Que pavor". Talvez pela única vez em toda a corrida, ficou completamente sério. Me pareceu até um pouco contrariado. Em seguida, porém, retomou a jovialidade. "Eu não reconheci, né", disse, e eu entendi imediatamente o que ele queria dizer. "Não, não eram eles, de jeito nenhum. E me perguntaram, mas o senhor tem certeza? Certeza absoluta, nunca vi na vida, não eram esses aí de jeito nenhum. Eu com duas guriazinhas em casa, me esperando para ter café da manhã. Não tem como".

Concordei com ele, em silêncio. Duas guriazinhas em casa. Todas as noites na rua, doze horas por noite, cinquenta e duas semanas por ano. Duas guriazinhas em casa. Tinha razão, o motorista: não eram eles. Claro que não eram eles.

"E no outro dia eu já tava trabalhando de novo". Ele me disse, e eu não pude acreditar. Como assim, no dia seguinte?, perguntei. "Tô te dizendo", confirmou, o mesmo sorriso estranho do início de volta a seu rosto. "Ficou o carro lá a manhã inteira, fizeram a perícia, trocaram a porta, pintaram e eu já tava na rua de novo. Fazer o quê, né. A vida da gente é isso aí. Tem que colocar a cara na rua. Tem que encarar".

Me deixou na porta de casa, em perfeita segurança. Ficou com o troco; agradeceu-me com um sorriso aberto, um muito obrigado expansivo, de quem traz consigo uma compreensão peculiar sobre as coisas e sobre a vida. Até a próxima, digo eu. "Até a próxima, amigo. Quarenta e três anos, tô no rua mais da metade deles. É muita história. Quer escrever um livro? Fala comigo, fala com os meus colegas, história não vai faltar".

Não faltaria, mesmo. Disso, eu tenho absoluta certeza.