sexta-feira, 26 de abril de 2013

Brevíssima reflexão sobre as pombas mutiladas em Porto Alegre

[caption id="attachment_446" align="alignright" width="257"] Foto: chausinho / Flickr[/caption]

Há tempos eu venho me preocupando um pouco com as pombas mutiladas de Porto Alegre. As vejo em todos os lugares: animais com patas retorcidas, dedos faltando, às vezes com não mais do que um toco de carne deformada no local onde antes deveria haver uma de suas pequeninas garras. O número de aves com semelhantes mutilações, pelo que percebo com minha empírica e nada científica amostragem pessoal, não para de aumentar. Pombas que manquitolam tristemente, pousando tortas nos fios de alta tensão, sempre com aquele ar de indistinta afetação tão comum aos pombos e pombas de todos os lugares. Sei bem que pombas não despertam simpatia em quase ninguém, mas eu sempre as enxerguei com um respeito próximo da anuência, fruto da admissão de que elas se adaptam ao perímetro urbano tão bem, ou ainda melhor, do que os humanos responsáveis pela estrutura que os devora. Então as observo, como observo todo o resto, e fico ligeiramente intrigado com o número crescente de pombas decepadas que enxergo por aí.

Não que a explicação seja muito difícil, na verdade. Basta olhar para o número igualmente crescente de cercas espiraladas, repletas de afiadíssimas navalhas, cobrindo os topos cada vez mais altos dos nossos cada vez mais numerosos muros e gradis. Estão lá, como sabemos, para evitar que pessoas pulem para o outro lado e cometam algum tipo de crime contra a propriedade alheia. Mas fico imaginando como aquelas estruturas devem ser confusas para as pombas, que de propriedade privada não entendem coisa alguma e não raro devem enxergar na estrutura um local para pouso ou algo assim. E deixam suas garras e patas dependuradas nas lâminas dispostas em espiral, vítimas inusitadas da necessidade do homem de dizer que tem a posse de alguma coisa.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Ensaio: antes da chuva

[caption id="attachment_442" align="alignnone" width="640"] Foto: likeyesterday / Flickr[/caption]

- Só os homens amam, sabe? Cheguei a essa conclusão – estava dizendo ele, quando consegui alcançá-lo e cruzamos a porta em direção ao pequeno pátio que conduzia à saída. – Essa estupidez. Só a gente mesmo. Mulher não se preocupa com essas coisas. Isso é coisa de homem!

- Não fala besteira – respondi. – É claro que mulheres amam também.

- Talvez amem – continuou, inflamado, empolgando-se no raciocínio. – Mas não amam seres humanos, entende? Amam fantasias. Uma mulher está eternamente apaixonada por um homem de conto de fadas, e nunca consegue enxergar o que a gente é de verdade. É da natureza da mulher, elas precisam se decepcionar com os homens para se sentirem realizadas, então elas nunca vão querer o que a gente pode dar para elas, entendeu? A estupidez é nossa, de pensar algo diferente.

- Quanta besteira – suspirei, esperando que ele não me ouvisse. Mas não foi baixo o suficiente.

- Claro que é besteira – quase gritou, enquanto atravessávamos a porta de saída e ficávamos sós na noite fria e inchada de nuvens de chuva. – Tudo é uma grande besteira! Não existe nada mais idiota nesse mundo do que perder tempo sentindo algo por alguém! – e parou no meio da rua, me olhando com raiva e desespero. Eu quis desviar o olhar, mas não consegui. – Por que perder tempo com essas coisas? Ninguém se importa! Por que a gente não desiste de tudo, que é muito mais fácil?

Calou-se. Ficamos parados por instantes, olhando um para a cara do outro, e os olhos dele pareciam pequenas bolas de luz cinzenta brilhando opacas na escuridão. Eu me sentia tão pequeno diante daqueles olhos! Aquele era sempre o pior momento. Era sempre naquele instante que eu me arrependia de ter saído de casa, de ter ido de novo oferecer meu apoio e meu ombro amigo, de mais uma vez ter me submetido ao papel secundário que sempre me restava naquela história. Mas no fundo eu acho que sempre soube que aquele era o meu papel, e não por imposição: eu mesmo o havia escolhido, me acostumando a ele e aprendido a interpretá-lo com cada vez mais perícia na medida em que passavam os dias, as semanas, os meses. A vida. A minha vida.

- Eu não sei – disse eu, antes mesmo de me dar conta que estava falando. – Talvez não seja mesmo para dar certo nunca. Talvez a gente tenha medo que dê certo, vai saber. Talvez no fundo seja tudo muito fácil se a gente simplesmente viver as coisas, ao invés de tentar entendê-las, e mesmo assim a gente tenha essa necessidade de complicar tudo, de sempre querer mais do que a gente pode ter. Talvez a gente enxergue tudo muito bem, mas olha para o lado e faz de conta que não viu porque é mais fácil continuar procurando do que admitir que a gente encontrou. Talvez a gente esteja vendo o tempo todo, mas tenha medo de tentar alcançar. Talvez a gente só esteja perdendo tempo, tentando achar em outra pessoa o que está ou deveria estar dentro da gente o tempo todo. Quem sabe? Pode ser que tudo isso seja bonito justamente porque é sem esperança. – e me calei, engolindo em seco o ar frio e com gosto de terra que antecipava a chuva daquela madrugada.

Não desviei o olhar. Nem tanto por desafio, ou por querer provar alguma coisa: simplesmente não desviei porque não seria capaz. Fiquei ali, vendo o rosto dele desanuviando-se aos poucos. As olheiras pareciam ainda mais fundas na luz fraca da rua vazia, mas mesmo assim sua expressão foi assumindo um ar mais calmo. Fechou os olhos, sacudiu brevemente a cabeça como quem faz um gesto com cuidado para não ficar enjoado, e disse, em voz alta:

- Ah, quer saber? Vamos embora. Por hoje já chega.

E foi andando, ainda cuidando os passos, ainda fingindo que não estava bêbado e que tinha pleno controle de suas pernas. Fiquei admirando a cena por alguns segundos, enquanto alguma coisa densa e incômoda escapava como um suspiro por entre meus lábios. Então, fui atrás dele.

sábado, 20 de abril de 2013

Manhã de domingo

Quando percebeu que não havia mais nada a discutir e que nenhuma palavra conseguiria preencher o silêncio daquela casa, pegou o violão e saiu. De todas as coisas suas que estavam lá, era a única que não podia suportar deixar para trás. Pegou o violão velho e descascado em um gesto cuidadoso de um pai que pega o filho pela mão, e saiu para a rua em silêncio, sem dar adeus, sem bater a porta, sem barulhos e sem confusão. Naquela situação cheia de silêncios, sua retirada foi mais um deles; e quando sentiu sobre si o sol daquela manhã de domingo, sentiu-se de certo modo apaziguado, como quem se percebe vazio, mas não recorda o suficiente do que está faltando a ponto de sentir-se incomodado com isso.

O sol estava forte, apesar de ainda ser bem cedo, provavelmente o começo de mais um dia de muito calor. A sensação era revigorante para ele: tinha sido uma noite longa, de muita penumbra e poucas palavras, de sombras movendo-se lentamente nas paredes sem trazer em sua marcha nenhuma resposta ou consolo. Sair daquela casa e encontrar o sol foi como sentir a verdade do mundo sendo restabelecida, e mesmo que a sua mente estivesse alheia à maiores reflexões foi capaz de sentir essa mudança como algo animador e positivo. Não havia muita gente na rua, eram poucos rostos para ver, mas isso não fazia diferença: aquele momento de irresponsável e temporária liberdade era seu, e assim o aproveitou enquanto andava em silêncio pelas calçadas da cidade que despertava.

Não andou muito, na verdade. Assim que viu uma escada que julgou adequada sentou-se, com a naturalidade de quem relembra algo que há tempos não fazia, e acomodou o violão no colo. Testou a afinação, dedilhou dois ou três acordes, mas logo parou. Ficou observando os prédios ao redor, os jogos de luz e sombra causados pelo sol da manhã, a mente distante, os pensamentos mais sensações difusas e distantes do que ideias de fato. Um pouco à frente, uma parada de ônibus concentrava boa parte da movimentação da manhã, e deixou-se contemplar aquele pequeno desfile de pessoas – jovens senhores de mochila indo visitar suas mães, mães ralhando com os filhos, adolescentes arrastando-se ao final da noitada, idosos passeando ao sol. Homens e mulheres que não conhecia, e que muito provavelmente jamais viria a conhecer. Vida que era alheia a ele e com a qual mesmo assim ele sentia um estranho tipo de cumplicidade, como se houvesse entre os envolvidos um acordo tácito e silencioso. A manhã os fazia de certo modo todos iguais, todos vitoriosos na tarefa de chegar a um novo dia - e nisso havia, se não alegria, uma espécie de orgulho os unindo no silêncio dos que haviam chegado a um objetivo comum.

Quando cansou de apenas olhar, posicionou as mãos sobre o instrumento e começou a tocá-lo. Apenas acordes soltos no início, enquanto lembrava de tempos passados, quando sentava em escadas como aquela, com violões velhos como aquele, em dias ensolarados como aquele. Lembrou daquela cumplicidade de amigos unidos pelas circunstâncias, pelas mesmas dúvidas e carências, que não tinham nada pelo que esperar e não tinham nada a não ser tempo para gastar. Era mais jovem, tinha feito menos coisas, mas ainda era o mesmo, e isso não era bom nem ruim, era apenas um fato como tantos outros. Lamentou por um breve instante não ter quem sentasse ao seu lado naquela escada, mas foi apenas um momento; as notas iam sucedendo umas às outras de modo menos casual, tomando corpo enquanto a voz surgia, baixa, apenas para si mesmo e para mais ninguém. Começou a cantar de um homem que trabalha o mais que pode para continuar sozinho, e sobre como quando a história faz seu giro ela acaba deixando um homem partido atrás de si. Muitas vezes tinha sido assim com ele, e muitas vezes talvez voltasse a ser do mesmo modo; era o mundo, era a vida, e não era cruel nem triste, era apenas o modo como as coisas funcionavam. De qualquer modo, sentiu-se só, e pela primeira vez desde que saíra para o sol lembrou-se do que tinha deixado para trás. De novo, foi um sentimento neutro. Talvez alguém pudesse chamar de tristeza, mas não era bem o caso. Já tinha ficado triste demais, por vezes demais, pelos motivos mais tolos e pelas razões mais nobres - agora sentia apenas um incômodo, um sentimento de quem se conforma com algo que não está realmente certo, a melancolia branda das coisas não feitas e que ficarão para sempre como resquícios da memória do que nunca foi. Das coisas que fizeram diferença, mesmo que nunca tenham feito diferença de fato. Quando as luzes se apagavam na sua casa, isso me fazia feliz, cantou ele enquanto pensava nessas coisas. E ninguém ouviu, e não fez muita diferença se ouviam ou não.

Como você se sente, como você se sente em estar sozinho, ele perguntou a si mesmo. Estava sozinho; havia estado sempre sozinho, na verdade. Sozinho entre as pessoas, andando pelas ruas cúmplices de sua solidão. Como um completo desconhecido, para todos e para si mesmo. Ninguém se importava, e não era como se devessem se importar; estavam todos na mesma, sozinhos em si mesmos, irmãos unidos no acordo silencioso dos invisíveis de todos os dias e de todas as ruas. Assim tinha sido ele, desde sempre: um solitário entre as pessoas, alguém que anda sem pensar para onde vai, alguém que sai sem bater a porta e sem olhar para trás. E havia se acostumado a isso, havia se acostumado a nunca se comprometer com nada, a não fazer acordos, sem direcionar-se para pessoas que pudesse chamar de amigos e lugares que pudesse chamar de lar. Como você se sente? ele se perguntava enquanto tocava um dó não muito competente. E ele não sabia, na verdade ele não sabia. Em algum lugar da sua mente, sentia que queria saber, que queria ter uma direção, deixar pessoas entrarem no seu mundo, e que tinha tentado isso de forma consciente ou não por um grande número de vezes. Não tinha conseguido, mas ao mesmo tempo não sentia que não tivesse feito as coisas do jeito certo. Como você se sente?, perguntou de novo a si mesmo, quase num sussurro. Não sabia, respondeu de novo a si mesmo. Em sua mente surgiu como um raio a certeza de que não tinha nada, que não tinha coisa alguma para chamar de sua, nada com que pudesse contar ou em que pudesse se segurar. De sua jornada, nada trazia consigo. Mas quando você não tem nada, você não tem nada a perder, cantou. E de alguma forma, foi capaz de sorrir.

terça-feira, 16 de abril de 2013

O sol, a chuva e as nuvens

(parte de algo maior, que não sei se será completado um dia. coloco aqui em nome de atualizações mais constantes e porque deu vontade de dividir)

"Quando vier a chuva, as palavras virão", pensou o homem isolado no pequeno quarto de um hotel desconhecido, quase na fronteira de onde termina o Mundo e começa o Fim. Havia ido até aquele local justamente para encontrá-las ambas, as palavras e a chuva. Daquelas palavras dependiam, em boa medida, seu futuro; por meio delas buscava encontrar algo em si que, desde sempre ignorado, sabia apenas estar perdido, embora não fosse capaz de dizer o que era. As palavras, ele acreditava, trariam em si a resposta de uma pergunta que, tão central dentro do que ele era e do que pretendia ser, apenas flutuava em torno de todos os seus atos, jamais de fato elaborada ou formulada. Estavam nele, e dele precisavam sair: aguardava portanto, com intranquila paciência, pelo momento da libertação.

Olhou uma vez mais para o céu. As nuvens eram cinzas, o vento soprava insinuante, mas não havia nenhuma certeza de chuva para as horas que viriam. Podia até mesmo sair, se assim desejasse; recusava-se, porém, a sequer cogitar essa possibilidade. Tinha consigo água e alimentos, nada precisava adquirir e, não conhecendo ninguém naquela cidade distante de tudo e de si próprio, não havia necessidade de ver ou conversar com pessoa alguma. Aquele dia seria apenas dele e de sua busca: assim tinha decidido e assim faria, aguardando as palavras que sabia precisar formular, quer elas viessem ou não.

"Onde está a chuva?", indagou-se. E era estranho, porque nem ele mesmo sabia o quê, no fim das contas, fazia da chuva algo tão importante. Sua relação com a chuva sempre fora de carinho e afeição, quase de cumplicidade: a amava, no fundo, e dela sentia a correspondência. Não foram poucas as vezes em que, diante da certeza da forte precipitação, apenas deixou-se aguardar em campo aberto, recebendo as gotas grossas como bênção, até erguendo os braços para saudá-las, filetes de água escorrendo de seus braços até as costas, rumo ao solo. Nenhuma relação óbvia, porém, havia entre sua necessidade de chuva e sua necessidade de palavras. Acreditava talvez que ambas pudessem purificá-lo? Esperava na chuva uma companhia relaxante, um ambiente que melhor permitisse a busca das palavras dentro de si? Ou apenas queria a chuva como grande evento, como acontecimento que rompesse a lógica dos dias de sol e páginas em branco, precipitação que marcasse o encerramento de algo e o começo de outra coisa qualquer?

Não sabia. Sabia apenas que precisava da chuva. E por ela ansiava, os olhos seguidamente voltados para a pequena janela, para o fiapo de céu cinza que não trazia resposta alguma.

Levantou-se. Saiu da pequena mesa onde instalara o computador, deitou-se à pequena cama de lençóis brancos e leu um pouco mais do livro que trouxera consigo. De vez em quando, olhava o céu. Nenhuma palavra. Nenhuma gota de chuva.

"Como lidar com o céu cinzento da vida?", perguntou a si mesmo. "Como lidar com o sol entre nuvens?".

Não havia resposta.

domingo, 14 de abril de 2013

Uma última Coca-Cola antes de partir

[caption id="attachment_430" align="alignleft" width="225"] A última Coca-Cola. Em sua defesa, digo que estava bem geladinha.[/caption]

Depois de mais de cinco meses de abstinência, voltei a beber Coca-Cola no último dia 13 de abril, no Restaurante e Pizzaria Karlec de Cerro Largo, agradável cidade encravada nas Missões do RS. Foi um golpe de oportunismo, uma ideia que me ocorreu enquanto aguardava o ônibus que me levaria de volta a Porto Alegre e contra a qual não impus maior resistência. Uma garrafinha de vidro de 290 ml, pela qual paguei R$ 2.

A última Coca-Cola da minha vida.

Entendo perfeitamente que alguns achem estranho que eu diga uma coisa dessas, de semelhante gravidade, com tanta ênfase. Que até compreendam o meu esforço em largar o hábito, que vejam a ação como um passo positivo no sentido de estabelecer uma relação mais próxima e carinhosa com minha saúde e, por extensão, com meu próprio corpo e comigo mesmo. Mas vejam essa postura de nunca-mais-beberei-uma-Coca-Cola-na-vida como um excesso teatral, uma frase falsamente bombástica com a qual desejo apenas atrair um pouco de atenção. Mesmo as pessoas mais próximas, com as quais tenho maior afinidade, podem perfeitamente erguer as sombrancelhas com essa afirmação, dizendo mentalmente algo tipo OK, Igor Natusch, agora tu forçaste um pouco a amizade. E não deixarão de ter razão.

A Coca-Cola se transformou, durante algum tempo e de certo modo, no símbolo da relação destrutiva - ou, ao menos, desinteressada - deste que vos escreve com a própria saúde. Eu já fui do tipo que comprava uma garrafa de dois litros e a esgotava rapidamente, em algumas poucas horas apenas, se fazia calor. Mais tarde, mesmo diminuindo drasticamente a quantidade, jamais cogitava seriamente a possibilidade de excluir o refrigerante da minha vida. Sempre gostei de dizer que gostava muito de Coca-Cola, que o sabor da Coca-Cola era sensacional, uma invenção digna de Einstein, que beber uma Coca-Cola de vez em quando era o típico hábito do qual eu seria incapaz de abrir mão, mesmo que virasse a pessoa mais saudável de todo o Ocidente. Não era simples vício, admito sem reservas: era um regozijar-se, uma legitimação da Coca-Cola enquanto aspecto da minha vida. Não sei muito bem por que diabos eu encarava a coisa desse jeito, e ainda bem que mudou. Mas independente de histórias bonitas de superação pessoal, o fato é que, olhando para trás, eu mesmo acho estranho dizer assim, com essa ênfase toda, que aquela pequena garrafa que bebi ontem à noite foi e será mesmo a última dose de Coca-Cola da minha vida.

Respondo a essas dúvidas indo além da relativa facilidade com a qual parei de tomar refrigerante - uma decisão que eu acredito ter sido movida pela simbologia, como que dizendo a mim mesmo que, se eu conseguia parar com isso, então poderia conseguir mudar quase todos os hábitos que desejasse ou precisasse. Embora tenham sido cinco meses nos quais praticamente não tive vontade de beber refrigerante em momento algum, não é por aí que vou tentar justificar a minha frase aparentemente excessiva logo acima. Mesmo porque a própria frase é um símbolo, essa própria postagem é um símbolo - e ter pedido uma Coca-Cola de garrafinha na lancheria quase ao lado da estação rodoviária, já tendo em mente que podia muito provavelmente ser a última, também é de um simbolismo ritualístico bastante óbvio. Foi uma despedida, de caso pensado, e não é por aí que vou explicar essa certeza que tenho de que, de fato, foi a última Coca-Cola da minha existência. Nem vou usar como justificativa a crescente repugnância por tantas coisas antes absolutamente normais no meu cardápio, que aponta para mudanças ainda mais significativas em futuro próximo. Tampouco vou negar a possibilidade de que, no fim das contas, não seja de fato a última Coca-Cola - são tantas as circunstâncias que podem levar uma pessoa a consumir uma Coca-Cola que eu nem me animo a enumerá-las, então sim, claro que eu posso ter que engolir essas palavras e tomar um monte de outras Coca-Colas na vida.

Mas acho que não. Acho que nunca mais vou tomar a decisão consciente e voluntária de tomar uma Coca-Cola. E isso tem ligação direta com essa garrafinha de 290 ml, que tomei à guisa de despedida, gesto de frouxa solenidade que colocou fim a mais de cinco meses de abstinência total. Não que o gesto em si tenha sido tão emocionante - afinal de contas, sejamos honestos, é só uma garrafa de refrigerante no fim das contas. O que me impressionou, na verdade, foi o sabor daquela Coca-Cola perfeitamente gelada, servida de maneira adequada em um copo imaculadamente limpo: um sabor muito sem graça. Pensando que podia ser algo relativo ao modo de ingestão, cheguei a tomar alguns goles direto da garrafa, encostando o gargalo diretamente nos lábios. Nenhuma melhora se deu. Bolhas de gás, açúçar, um pouco de café, uns aromatizantes indefiníveis. Nada impressionante. Não ruim, porque o gosto em si não era ruim: apenas, realmente, nada demais. Um gosto totalmente distante da Coca-Cola de outros tempos, que eu bebia como água (na verdade, mais do que água) e achava sinceramente deliciosa. Algo de que, muito sinceramente, não vou sentir a mínima falta.

Claro está, de qualquer modo, que não foi a Coca-Cola que piorou; eu é que, como consumidor de Coca-Cola, deixei de existir. Aparentemente, algo aconteceu com meu paladar e meu organismo nesse meio-tempo - algo que, à falta de qualquer indicativo contrário, interpreto como positivo e indicativo de um redirecionamento das minhas circunstâncias de vida. Acho que as pessoas mudam assim: tomando atitudes concretas e, a partir daí, transformando-se elas mesmas na mudança, de forma silenciosa, quase imperceptível. Pelo jeito, nem é mais caso de eu evitar beber uma Coca-Cola, que antes tanto prazer me dava: agora eu simplesmente não quero mais tomá-la. Mesmo o último gole - que era para ser a despedida definitiva - viu-se despido de qualquer formalidade: engoli o restinho de líquido de um só fôlego, sem nenhuma satisfação, apenas porque me pareceu errado ir embora sem terminar de beber. Terminei a última Coca-Cola da minha vida como quem come aquele resto meio frio de comida que ficou no canto do prato, mais por convenção do que por prazer ou necessidade. Não foi uma despedida das mais memoráveis, para ser sincero. Que a Coca-Cola tenha uma boa vida, ela do lado de lá, eu do lado de cá: ficou bem claro, em nosso breve revival, que não existe mais nenhuma química entre nós.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

A pomba, o pulgão, um pouco de chuva

Uma das coisas mais emocionantes da minha quarta-feira foi observar, sentado em um banco da praça central de Cerro Largo, uma pequena pomba rola tentando alimentar-se dos restos mortais de um enorme pulgão. Talvez fosse um exoesqueleto do bicho, não sei ao certo. Sei que o bichinho ficou longos minutos quebrando aquela casca com o bico, tentando arrancar dali algum nutriente, realmente entretido e dedicado a sua tarefa. Devo ter ficado mais de dez minutos com o livro fechado no colo, em plena tarde de dia útil, observando aquela pomba rola brigando com a casca morta de um inseto, tentando alimentar-se com ela. Sei que vocês não vão entender nada, mas achei muito bonito.

No entanto, não há cães de rua em Cerro Largo e nas cidades adjacentes. Isso me desagradou um pouco. Claro que sei o quanto é difícil e muitas vezes sofrida a vida de um animalzinho de rua, mas sinto que eles são parte da personalidade de um lugar - são pequenos bolsões de vida no meio das gentes, deslocam-se para lá e para cá preocupados com nada que não diga respeito à simplicidade prática de seu viver. Gosto muito, muito mesmo de cães de rua. E eles não existem por aqui. Talvez se escondam nos bairros mais afastados, nas áreas onde as casas sem muros transformam-se em pequenos sítios e onde os sítios viram diminutas fazendas - o que seria, convenhamos, de certo modo uma sabedoria da parte deles: não deve ser tão fácil achar comida, os afagos talvez menos numerosos, mas não tenho dúvida de que deitar na grama é bem mais divertido do que na calçada.

Meu hotel é no pequeno centro da cidade de Cerro Largo - uma área urbana simples e bem cuidada de modo geral, que uma caminhada despreocupada de vinte minutos é suficiente para abraçar completamente. Andando talvez quatro quadras para a direita ou esquerda, é possível ver o fim do perímetro urbano, o começo dos bairros que, teoricamente mais afastados, são na verdade facilmente alcançáveis: basta tomar fôlego e subir as lombas consideravelmente íngremes, pavimentadas com paralelepípedos. Nas ruas, caminhões passam tanto ou ainda mais do que automóveis particulares. O Táxi do Caído, que monopoliza o serviço de choferes no município, conta com a frota de dois veículos, mas me parece ter pouco trabalho na maior parte do tempo. Há várias motos, mas poucas bicicletas. Recolhido ao meu quarto na madrugada de quarta-feira, após assistir em uma lancheria o Grêmio empatar com o Fluminense pela Libertadores da América, um carro passou com o aparelho de som tocando uma música do Iron Maiden - situação inusitada em uma cidade que eu julgava tão distante dessas coisas, e que me despertou um suave sorriso.

Embora meu caráter de forasteiro seja evidente, a pergunta mais comum feita a mim não refere-se à minha cidade de origem ou aos objetivos que me fazem ficar quase uma semana em um lugar supostamente tão distante dos meus interesses. Nada disso: o que chamou a atenção de um número considerável de pessoas foi a minha bastante grande - e no momento um pouco descuidada, admito - barba ruiva. "Eu já tive uma barba assim, grande como a do senhor", me disse um atendente de lanchonete, um sorriso tímido no rosto perfeitamente escanhoado, como quem quer puxar conversa. Morou em Brasília por um par de anos, funcionário de pequena patente no escritório de um deputado federal, ocasião em que desistiu da barba - "ficavam falando em inglês comigo, achavam que eu era estrangeiro", disse aos risos para justificar-se. Nas ruas e trilhas de chão batido, percebo repetidos olhares em minha direção - a maioria direcionados à minha vistosa barba avermelhada, que eu acabo imaginando que seja um tanto exótica por essas bandas. Nenhum problema, claro: assim como as pessoas me olham, também eu as observo, também elas me parecem uma visão única e irrepetível.

Há muitas belas moças em Cerro Largo e nos lugarejos em volta. Algumas passam pela janela do meu quarto, que dá de frente para uma das principais vias da cidade, e não raro me distraem brevemente de meus escritos. Moças, aliás, distribuídas de forma bastante democrática. Fiquei brevemente enamorado de uma atendente de caixa no Supermercado Jaeschke, onde fui adquirir bolachas e água para consumo no quarto de hotel (comprei também uma dupla de bergamotas temporãs, que apesar de um pouco moles estavam bastante saborosas). A linda moça de olhos verdes, porém, mal olhou para mim: imagino que estivesse cansada do trabalho, ou talvez irritada com alguma circunstância pessoal, mas de qualquer modo não respondeu ao meu boa-tarde e limitou-se a contar o troco de forma breve e profissional. Demonstrei a ela então toda a consideração de minha fugaz paixão, abstendo-me de quaisquer comentários e permitindo, silencioso, que ela desse continuidade à sua vida.

Hoje chove. Parece que choverá o dia todo, de forma que dificilmente sairei do quarto senão brevemente, para uma caminhada rápida ou para alguma refeição. Me agrada a ideia de ver a cidade na chuva, entender onde se acumulam as poças d'água, ver se as pessoas optam por guarda-chuvas ou por capas de lona ou se apenas andam debaixo das gotas finas, procurando as poucas marquises, acelerando ligeiramente o passo. Não poderei, no entanto, fazer essa caminhada ao meio-dia, quando tudo fecha. Talvez a faça agora, enquanto a chuva é fraca e o clima convida ao uso da jaqueta jeans, único agasalho minimamente respeitável que trouxe comigo. Também não tenho guarda-chuva e, mesmo que o tivesse, não usaria. A chuva gosta de mim, eu gosto dela, e será bom vê-la caindo sobre essa cidade ainda desconhecida, centro de operações de minha breve viagem para um encontrar-se comigo mesmo.

(fiz algumas fotos de baixa qualidade com meu celular, mas tolamente esqueci o cabo de transferência em casa, de modo que me é impossível subi-las no notebook. Pego então essa genérica imagem da bonita Igreja Matriz do município, principal obra arquitetônica de Cerro Largo - que enfrenta, no momento, considerável concorrência: já existem dois templos evangélicos na cidade, disputando com a tradicional Igreja Católica a primazia da fé entre os cerrolarguenses)