quinta-feira, 30 de maio de 2013

Diálogo sobre certo e errado

"E se tu estiveres errado?"

"Sobre o quê?"

"Sobre tudo. O que tu acreditas, o que tu defendes, tuas ideias, ideais. Todas as coisas. Tudo."

"Ninguém está errado sobre tudo. Nunca."

"Mas pode estar, ora. Tu podes estar errado sobre a vida, sobre Deus, sobre política. Podes estar errado em gostar de algumas pessoas e não gostar de outras. Podes estar errado em achar que algo é ruim e outro algo é bom. Podes estar errado em achar que algo pode mudar ou que algo vai ser sempre do jeito que hoje é. Pode estar errado em tudo, absolutamente tudo que tu fazes e que tu pensas. O que te impede de estar errado sobre tudo isso ao mesmo tempo?"

"Se eu tento estar certo, não estarei errado".

Houve um breve silêncio.

"Mas tu podes tentar estar certo para ti mesmo apenas. Querendo estar certo para o teu bem apenas. Passando por cima dos outros, do mundo. E aí estarás errado. Não é mesmo?"

"Não estarei tentando, nesse caso. Estarei apenas desistindo de tentar."

Desta vez, o silêncio foi mais duradouro. Quebrado apenas pelo zumbido dos pequenos insetos em torno da lamparina a óleo, única luz daquela noite sem lua e sem estrelas.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Corte das árvores em Porto Alegre: uma breve interação com o leitor

[caption id="attachment_473" align="alignleft" width="300"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Em frente ao posto da Brigada no Mercado Público, entre jovens detidos pela polícia, vereadores e pessoas indignadas, alguém me toca no ombro. Peço que espere alguns instantes, termino de falar ao celular e me volto para ver quem é. Um brigadiano, homem negro de cabelos grisalhos emoldurando a careca bastante visível, me pergunta do jornal para o qual trabalho. Seguem-se alguns elogios ao trabalho que temos feito - sempre bem-vindos, mas um tanto inesperados vindos de alguém ligado à Brigada Militar. O outro repórter que está comigo se aproxima e o policial diz que o reconhece. E encerra o breve papo com a seguinte frase:

- Tem que ir para cima desses caras, mesmo. Ficam fazendo povo brigar com povo para eles se darem bem!

Fica o registro. O referido é verdade e dou fé.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Loucos e bêbados brindam ao Deus que está no céu

[caption id="attachment_469" align="alignleft" width="200"]Foto: Omar Moreno Jiménez Foto: Omar Moreno Jiménez[/caption]

Essa crônica é relativamente antiga - foi originalmente publicada no meu antigo blog, no segundo semestre de 2008. É um texto que nunca sofreu grandes elaborações posteriores, mas que me agrada um bocado; acho que nele consegui fazer justiça ao personagem e às sensações que ele me provocou. Resolvi republicá-lo hoje por uma razão simples, mas significativa, a qual explicarei ao final do texto. Espero que seja do agrado de vocês.

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De uns tempos para cá, a região onde moro em Porto Alegre tem se tornado cada vez mais generosa em figuras que chamaríamos “gente da rua” – ou seja, mendigos, sem-teto, prostitutas e desocupados em geral. Não que eu morasse em alguma espécie de paraíso onde esse tipo de coisa não existisse, mas é visível a presença crescente dos desgarrados em uma área da cidade que costumava ser pouco frequentada por eles. No fundo, é natural: Porto Alegre cresce em direção ao sul, e a metrópole traz consigo aqueles que, a seu modo, sobrevivem melhor do que a maioria de nós no estômago da grande cidade.

Durante algum tempo, um dos meus vizinhos foi um morador de rua que escolheu as quatro ou cinco quadras mais próximas do prédio onde moro como seu pouso habitual. Embora fosse um homem fisicamente saudável, tratava-se visivelmente de uma pessoa que não está no pleno uso de suas faculdades mentais – um maluco, para falarmos de modo mais claro. Não era, no entanto, um louco hostil ou antipático – pelo contrário, até tentava de modo jovial se comunicar com as pessoas que passavam por ele, embora a aspereza de sua voz, a insistência em ligar as idéias com um “né” quase obsessivo e a incoerência de seus assuntos preferenciais geralmente afastassem os transeuntes e impedissem uma conversa mais demorada ou profunda. Sua residência mais fixa ficava nas ruínas do que tinha sido, em tempos idos, a casa de uma amiga da minha avó. As duas se encontravam lá seguidamente para jogar cartas, e cheguei a entrar na casa uma ou duas vezes, antes que a velha moradora morresse, minha vó se mudasse algumas vezes até morrer também e enfim. Aos que perguntassem, dizia que era um “caseiro”, tomando conta do terreno para evitar invasões – uma explicação que construiu em sua mente para dar um ar de importância e compromisso à sua condição de vida.

Como muitos outros loucos e desgraçados desta e de outras cidades mundo afora, por algum motivo o cidadão em questão simpatizou comigo. Sempre que me via, aproveitava a deixa para puxar conversa – não muito profunda, muito menos coerente, mas ainda assim uma conversa.

Um dia desses, estava voltando para casa depois de um dia especialmente desgastante de trabalho. Trazia comigo uma sensação bastante ruim, para ser honesto – aqueles momentos em que tudo na vida parece errado e os dias dão a impressão de um arrastar tedioso rumo a lugar nenhum. Andava cabisbaixo, cansado e irritadiço, e ver o vulto do maluco no escuro diante da sua quase-moradia não era exatamente o que eu precisava para me sentir melhor.

Baixei a cabeça, e tentei passar reto por ele sem dar tempo para que me dirigisse a palavra, como já havia dado certo em várias vezes anteriores. Mas quando me aproximei um pouco mais, ele obviamente me viu, e ao invés de falar alguma bobagem sobre o tempo ou de suas tarefas como caseiro do terreno abandonado, ele simplesmente perguntou: “O senhor estuda, né?”.

Olhei de relance para seu rosto, e vi que o homem estava bêbado. Talvez tivesse conseguido uma garrafa de cachaça ou vinho barato, e com ela tinha se embriagado de um modo que me chamou consideravelmente a atenção – de fato, acho que foi a primeira e única vez em que vi o homem bêbado na vida.

Talvez alguns estranhem o fato de eu ter voluntariamente parado no meio de uma rua escura, já tarde da noite, para conversar com um louco bêbado; mas foi o que fiz, acomodando a mochila nos ombros e dizendo que sim, eu tinha sido um estudante até pouco tempo antes, mas a faculdade tinha acabado e eu estava trabalhando, sem frequentar aulas nem nada disso. A partir daí a conversa avançou um pouco, mas não muito – ele perguntou onde eu estudava, disse que jornalismo era “uma profissão importante, né” e mais algumas coisas que não lembro. Quando o silêncio caiu, olhei para o céu estrelado acima de nós, e o homem – com uma perspicácia que talvez não esperemos ver em pessoas que julgamos simplórias ou loucas – disse: “tá bonita a noite, né?”. Eu concordei, e ele aproveitou a deixa para entrar no assunto que de fato o interessava, dizendo “hoje é aniversário da minha avó, sabia?”.

Explicou-me então que a bebedeira que tinha tomado era em homenagem à sua falecida avó – “eu não sou de bebida, né”, lembro dele dizendo, “mas tava me sentindo mal, né, e bebi um pouco, uma garrafinha que eu consegui, né?”. Soube então que o louco que eu geralmente encarava como um pequeno incômodo eventual havia sido criado pela avó paterna, pessoa que ele considerava sua mãe de fato, e a quem tencionava homenagear naquela data. Aparentemente, a mãe biológica não tinha sido exatamente boa para ele, pois em determinado momento ele quase gritou: “minha mãe era a minha vó, porque minha mãe mesmo era uma vagabunda, né, me odiava e eu odiava ela!”. Fiquei ouvindo, e o homem se emocionou mais ainda, dizendo que já tinha tido “coisas de gente importante” e agora não tinha nada e não se importava com isso, mas sentia saudades de sua avó e queria que ela ainda pudesse estar tomando conta dele. “Mas é assim, né? A vida é assim mesmo”, disse, e subitamente se voltou em direção às ruínas que chamava de casa, virando as costas para mim e murmurando uns “fique com Deus, né? O senhor fique com Deus” enquanto ia em direção à escuridão onde se sentia seguro e onde ninguém o poderia ver.

Achei, no momento, que a súbita retirada tinha sido um gesto de timidez de um homem que se viu prestes a chorar diante de um quase-desconhecido. Fosse como fosse, pensei um bocado no que ele havia me dito, e voltei a pensar bastante nisso nos últimos dias. É que começaram a construir uma nova residência no terreno onde ficava a quase-casa do homem; passo seguidamente lá, e mais de uma vez vi homens trabalhando na limpeza do terreno e na instalação de alicerces para um novo empreendimento qualquer. Foi ontem, passando pelo terreno em questão, que lembrei dessa pequena história e me dei conta de que há tempos não tenho nenhuma notícia do protagonista dela. Desde que ficou definitivamente sem lar ou esconderijo, o maluco que às vezes me parava na rua para conversar simplesmente sumiu. Talvez ele tenha aparecido uma ou duas vezes por ali, mas acho que partiu logo em seguida, em busca de outro lugar onde se sentisse mais à vontade.

E eu fico pensando em como uma pessoa que quase nem pessoa é mais, alguém pelo qual passamos ao largo e tentamos evitar como um incômodo ou uma doença, mesmo assim tem uma história, uma vida, coisas que nos ligam a ela e que, por repugnância ou desprezo, nos recusamos a enxergar. Penso nas muitas vezes que passei por ele rápido para não dar chance de ele falar, ou das outras tantas em que o ouvi rapidamente a contragosto, e em como nunca imaginei que ele talvez pudesse ter tido uma vida “de verdade”, amigos, parentes, amores e uma avó a quem amava do mesmo jeito que eu amo a minha mãe. Alguém tão humano que, diante de uma situação difícil ou de uma lembrança dolorida, simplesmente optou por encher a cara, como tantos de nós mesmos fizemos tantas vezes na vida. Uma pessoa que chamamos de louco, mas que ainda mantém a dignidade de se esconder para chorar no escuro, sozinho, sem esperar que ninguém interceda para ajudá-lo ou consolá-lo. E penso em como os malucos e desgraçados, quando sentem que devem partir, simplesmente o fazem, atendendo às próprias necessidades e urgências, sem dar adeus e sem olhar para trás.

Aos que sofrem, restam poucos consolos. Talvez um deles seja justamente o de achar, na multidão de olhos que não o veem e de ouvidos que não o ouvem, alguém que retribua suas tentativas de ser visto e ouvido com um pouco que seja de atenção. Quanto a mim, carrego essa história no coração como lição. Tento com dedicação cada vez maior não ser o cego que olha para o outro lado, o surdo que finge não ouvir. Porque sei que essa cegueira e essa surdez são, no fundo, o grande problema do mundo que construímos para nós mesmos. E mais importante que saber é nunca esquecer das coisas que a gente sabe.

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Retomei esse texto, quase cinco anos depois de ter sido escrito, por uma singela razão: reencontrei hoje o homem maluco que morava na casa abandonada, que me interrompeu em uma noite do passado para falar de sua vó e de sua vida. Encontrei-o enquanto tomava café no centro de Porto Alegre, pequena pausa antes dos muitos compromissos do dia e da semana. Não parecia nada mal, na verdade; estava com ainda menos dentes na boca, mas estava aparentemente bem nutrido (tinha até uma certa barriga, para falar a verdade) e sem sinais visíveis de qualquer moléstia ou deficiência física. Eu o reconheci imediatamente; estava ao fundo da lancheria, de onde pude observá-lo bem. Deteve-se por não mais que dois minutos junto ao balcão de entrada, conversando em frases breves com um senhor que tomava o segundo cafezinho da manhã. Como era de se esperar, não foi uma conversação muito profunda - resumiu-se o morador de rua a frases simples como "tomando um cafezinho, doutor?", "é bom, né, começar o dia com um café" e coisas do tipo. Parecia bem-humorado, querendo apenas uma conversa fiada antes de fazer seja lá o que se propunha naquela manhã cinzenta e carrancuda de chuva. Desapareceu em questão de instantes, soltando um "então tá, né" convicto antes de sumir da minha vista rumo a sabe Deus onde. Gostei do reencontro; estivesse mais perto, talvez até tivesse dirigido ao homem uma ou duas palavras. Mas não o fiz, e tampouco quis me levantar para ir até onde estava. Estou acostumado a observar as coisas a certa distância, e sou bastante bom nisso: tenho certeza que pude vê-lo sem que ele desse por minha presença, embora eu duvido que tivesse me reconhecido, caso me visse. Ou talvez me engane? Vai que me pergunta se ainda estudo, ou se recordo dos tempos em que trabalhava como caseiro em uma residência abandonada lá longe, na cidade que existe cada vez menos na medida em que mergulha na memória.

sábado, 18 de maio de 2013

A máscara

[caption id="attachment_463" align="aligncenter" width="800"]Foto: Lee Edwin Coursey / Flickr Foto: Lee Edwin Coursey / Flickr[/caption]

Não sei quando volto, gritou enquanto saía porta afora. Correu, mal conseguindo manter o fôlego, tomado de cima a baixo por imensa, inarredável urgência. Pelo caminho, foi se desfazendo de tudo: gravata, sapato, meias, carteira, paletó. O relógio jogou longe com força, ânsia; mal ouviu o som do metal e do vidro caindo e quebrando contra o asfalto quente atrás de si. Ouviu que diziam algo a ele, que estendiam os braços, tentavam detê-lo. Não se voltou nem por um instante: seguiu correndo, ainda que arquejante, deixando para trás os pedaços de tudo que havia sido.

Mal conseguia respirar quando finalmente chegou à costa. Mergulhou na água gelada sem tomar fôlego, braçada após braçada, nadando, arfando. Tinha pressa. Não sei quando volto, gemeu uma vez mais.

A essa altura, ninguém mais se colocava em seu caminho.

Nadou por muito, muito tempo, até chegar a uma praia de areias escuras, pequena enseada de minúscula ilha. A essa altura, já estava quase nu. Fixou os pés na areia, tentando acalmar o peito descontrolado e enlouquecido. Não conseguia respirar.

Tomado de ânsia, levou a mão ao rosto. E jogou longe a máscara, que foi cair na estreita linha de água delimitando solo e oceano, formando pequenas ondas.

domingo, 5 de maio de 2013

Sobre a jornada

Uma das questões que mais comumente ocupavam meu cérebro quando eu era um gurizote de seis ou sete anos era como estaria a minha vida no ano 2000. Sou nascido em 1980, de forma que quando chegasse a virada do milênio - não exatamente matemática, mas certamente simbólica - eu teria entre dezenove e vinte anos de idade. Para mim, era uma distância absolutamente imensa para viver, e levaria uma eternidade até chegar a ser o que eu, na época, julgava ser a idade de um adulto completo, já com a vida encaminhada e tudo o mais. E eu gostava dessa ideia de distância, gostava de imaginar onde eu estaria, o que eu seria da vida, se eu teria uma namorada, se eu estaria morando na minha própria casa, em outra cidade talvez...

Mais do que uma expectativa, era uma espécie de projeção. Não sei se me farei entender mas, embora jamais tenha me sentido uma criança infeliz, eu não tinha nenhuma satisfação especial na minha condição - era, digamos assim, uma criança bastante ensimesmada e um tanto auto-consciente demais para de fato usufruir a infância. Então os meus vinte anos eram uma espécie de ponto mágico no futuro, onde as coisas estariam acomodadas, onde eu seria eu mesmo, enfim. Eram óbvias ingenuidades de uma criança que pouco ou nada sabia do mundo - mas, como toda a ingenuidade, ela foi profundamente convincente até o momento (agora para mim indefinível) em que se quebrou.

Desnecessário dizer que vieram e passaram os vinte anos e a tal tranquilidade nem perto de passar pela minha vida. Minha vida ganhou movimento, aumentou-se meu círculo social, muito vivi e muito aprendi - mas segui com aquela sensação difícil de definir, aquela inadequação localizada mais no tempo do que no espaço. Durante muito tempo, não entendi bem as raízes do desconforto não opressivo mas permanente que eu sentia, como sensação incômoda que se esquece às vezes mas nunca vai embora de fato. A tal idade em que se curte a vida, para mim, não tinha tanta atração. Não era nada sofrida, com certeza, mas a euforia permanente que se espera da vida na faixa etária dos vinte e poucos nunca chegou de fato a instalar-se em mim. Eu já tinha atravessado o longo caminho, já estava no novo milênio e era um jovem adulto como esperava ser lá longe na infância - mas continuava aguardando a sensação de estar na época certa, de firmeza no caminhar, de desenvoltura (ou ao menos alguma segurança de mim mesmo) quando confrontado com as coisas do mundo e da vida.

E é curioso escrever essas coisas todas agora, que já estou na faixa dos trinta e poucos e finalmente me ocorre a epifania. Afinal de contas, me sinto em paz. Não com a vida feita, não com o tipo de sucesso que eu imaginava quando criança nem com a estabilidade que eu talvez desejasse quando na fronteira dos vinte anos. Mas em paz. E talvez essa sensação que eu sinto venha justamente de ter finalmente aprendido que, ao menos para mim, estabilidade, sucesso e outros valores do tipo simplesmente não fazem sentido. Saboreio a vida com grande satisfação, apreciando sinceramente a maior parte dos momentos. Não tento mais me iludir com conquistas ou com uma série de eventos pontuais e espetaculares - pois aprendi que, para mim, esses valores de pouco ou nada valem. Talvez o desconforto que tanto senti fosse, na verdade, a incapacidade de aceitar como naturais as exigências do mundo, ou ao menos o que eu achava que eram as exigências inerentes àquela fase do existir. Hoje, eu posso não estar exatamente na posição que gostaria, mas me percebo capaz de atuar sobre o mundo de forma clara, além de muito mais seguro sobre quem sou e qual meu papel. E se por um lado não tenho mais expectativas quanto ao inevitável processo de envelhecer, não tenho temores sobre ser mais velho, nem vejo nos meus dias a necessidade maluca de sorvê-los até o bagaço antes que a idade venha para supostamente levar tudo embora. Minha paz atual, agora percebo, vem também da suave consciência de que envelhecer não é tão ruim assim, muito antes pelo contrário.

Estou bem, em suma. E mesmo que me tirem tudo ou quase tudo, é bem possível que eu continue me sentindo bem - porque achei um ponto de equilíbrio que, ao não depender de posições sociais ou predicados comuns às coisas humanas, acaba sendo perfeito para mim. Fico pensando, então, o que o guri de seis ou sete anos pensaria ao contemplar o adulto barbudo e careca de trinta e dois, quase trinta e três. Não sei se ele se reconheceria no que sou hoje - mas, lembrando de quem eu era naqueles tempos e de como as coisas do mundo me perturbavam e atingiam, tenho certeza que ele perguntaria se as coisas parecem melhores quando se fica mais velho. Tivesse esse encontro ocorrido quando eu tinha vinte e um anos, eu responderia que não. Hoje, seria com o coração leve e um sorriso no rosto que eu diria: sim, rapaz, as coisas melhoram em parte quando a gente vira adulto. Talvez seja isso, no fim das contas: nasci com trinta e poucos anos de idade. E sei lá, talvez minha alma vá ter trinta e poucos anos para sempre. Por mim, tudo bem.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Relato de um sonho sobre um trem

[caption id="attachment_456" align="alignright" width="300"]Foto: Paul Townsend Foto: Paul Townsend[/caption]

(publicado originalmente em 29 de julho de 2009)

Era uma estação de trem, ou ao menos era para ser uma estação de trem, imagino. Eu estava lá, mas não tinha nenhuma idéia de como diabos eu tinha ido parar lá - era como se eu tivesse simplesmente me materializado, surgido do nada, conjurado naquele lugar por algum estranho e caprichoso tipo de feitiçaria. Tinha a vaga impressão de ter me despedido de algumas pessoas, mas parecia algo que tinha se passado há muito tempo, que já estava para trás, escondido debaixo dos degraus rangentes da escada que leva para o sótão da memória. Longe, longe. Diante de mim, e logo além dos limites daquela estação de paredes cinzentas e manchadas de umidade, um enorme terreno descampado, interminável, estendendo-se muito além do meu campo de visão. Era possível ver o sol se pondo na linha do horizonte - uma visão bonita, sem dúvida, mas não me sentia especialmente impressionado com ela, como se no fundo ela não tivesse nada de mais. De onde quer que eu tivesse vindo, era bem óbvio que eu não ia conseguir voltar, pelo menos não sem ajuda. Mas não tinha ninguém comigo lá, ninguém que pudesse me levar de volta se fosse o caso, ninguém para me mostrar como pegar o trem, ninguém para me encorajar ou me dizer o que fazer. Eu estava sozinho, de pé naquela estação desconhecida, e sozinho ia ter que me virar. Sozinho.

Eu não estava com medo, apenas me sentia um pouco chateado de estar sozinho e um pouco confuso por não saber direito o que fazer. Fiquei parado ali um pouco, pensando em muitas coisas, a maior parte delas não mais do que ideias tênues que não ficavam no meu cérebro tempo suficiente para que eu pudesse contemplá-las, por um instante que fosse. O tempo passava, o sol se punha no horizonte, logo ia ficar escuro, e me ocorreu que era um tanto idiota da minha parte ficar ali parado, de pé, esperando sem saber o quê, sem saber a quem. Esperando uma ajuda que, eu sabia, não ia vir. Eu já tinha esperado demais - e, se ninguém me ajudava, então eu ia ter que me ajudar, antes que fosse tarde e a noite tomasse conta de tudo de vez.

Comecei a andar meio a esmo, indeciso ainda, tentando pensar no que fazer. O movimento na estação era pequeno, e as pessoas que eu via passar não me davam atenção, não me ouviam, sequer olhavam para mim quando eu tentava pedir a elas alguma informação. Não parecia um gesto de grosseria da parte delas, era mais como se elas não me vissem, mesmo. E eu queria ser visto, queria que me ouvissem, queria conversar com elas - mas por mais que eu tentasse, elas não reparavam em mim, seguiam seu caminho sem que eu provocasse nelas qualquer reação. Comecei a me sentir um pouco irritado, e pensei, Que merda, Deus sabe o quanto estou tentando, e não dá certo nunca! No que estou errando? Por que não querem me ouvir?... Mas foi um sentimento curto, e logo depois comecei a me sentir muito só, e uma tristeza grande foi tomando conta de mim. Cansado de andar e de implorar em vão por atenção, sentei num pequeno banco de madeira, frustrado, magoado, engolindo em seco o choro. Era errado, de algum modo, que eu estivesse ali? Era por isso que ninguém reparava em mim, porque eu estava no lugar errado, no tempo errado, e não fosse mesmo para ninguém me ver por enquanto? E por que meus amigos, nos quais eu tinha confiado tanto, tinham me deixado lá, sozinho naquele lugar estranho, e nenhum deles vinha me ajudar? Rostos e vozes me vinham à mente, mas de novo era tudo muito rápido, muito tênue, e eu não conseguia achar nenhum sentido naquele monte de sons e imagens desconexas. Já estava quase totalmente escuro, e eu não ia conseguir sair dali, e ia ter que ficar ali até amanhecer, esperando. Que bosta, pensei, e pensei também, Eu quero ir embora. Eu quero ir para casa. Chega. Vão todos para puta que o pariu. Eu quero ir para casa.

De repente, levantei os olhos, olhei para a frente e vi um pouco ao longe algo que me animou. Era uma espécie de escada circular, de pedra, que levava para um andar inferior àquele no qual eu estava. Ali embaixo tinha pessoas, eu conseguia ouvir o barulho dos passos delas e o som de suas vozes. Levantei de um salto, andei rápido até a escada, e desci depressa, com a esperança renovada. Cheguei ao andar inferior e era tudo diferente - muitas pessoas, pessoas humildes, trabalhadores, mães de família, crianças, velhos. Pessoas que sorriam, que falavam alto, cantarolavam e davam risadas, andando para todos os lados. Lá não havia mais noite, pelo contrário - já era manhã, um dia novo, um dia cheio de desafios e coisas para fazer. Ali era mais divertido, mais caloroso, ali eu era visto pelas pessoas, elas me diziam Bom dia, e eu respondia para elas, Bom dia, e elas me ouviam e sorriam para mim, e eu sorria de volta para elas. Aquele era o lugar certo, o lugar onde eu pegaria o trem que me levaria para o lugar onde deveria ir. Era certo eu estar ali, mesmo que fosse algo breve e transitório, e esqueci toda a tristeza, e me senti feliz.

Mas eu não podia ficar esperando muito tempo, e eu sabia disso. Eu já estava atrasado, tinha perdido muito tempo no andar de cima, e era hora de partir. Parei uma das pessoas que passavam por mim, uma senhora que usava roupas pobres de lã e um lenço na cabeça, e perguntei para ela onde deveria pegar o meu trem. Aí mesmo, moço, ela me disse, aí nessa entrada. Foi quando vi aos meus pés uma espécie de alçapão, uma porta bastante pequena no meio do chão, feita de um metal já enferrujado e com uma pintura estragada pelo tempo. Aqui?, eu disse, apontando para o alçapão, e me abaixei para poder ver melhor. Sim senhor, disse a senhora, e logo uma velhinha se juntou a ela, carregando uma criança pelo colo, e disse É aí sim, moço, aí o senhor entra para embarcar.

Abri aquela porta, que mais parecia a tampa de um fogão, e dei uma olhada para o que tinha ali dentro. Meio que colada naquela tampa, algo que mais parecia um pequeno e estreito poleiro, uma armação que rangia a cada movimento que eu fazia com a porta. Além dele, não se via nada - era uma escuridão intensa, quase sólida, um negro cor de piche que os raios daquela manhã não conseguiam penetrar. Não cheguei a ficar com medo, mas pensar que aquela era a entrada para o embarque me deixou chocado, e eu disse Como assim, vocês também embarcam por aqui? Sim, disse a velhinha que tinha chegado, todo mundo embarca aí, esse é o caminho que todos nós seguimos. Tem o outro trem, disse a senhora que tinha falado comigo primeiro, mas esse é o trem lá de cima, não é o nosso, ele vai para outro lugar. O trem deles não deve ser como esse, eu falei, e elas riram e disseram, Claro que não, o embarque deles é muito mais bonito, o trem é novo, a viagem muito mais fácil. E vocês ficam com isso aqui, pensei em voz alta, e uma delas me ouviu e falou Para nós, meu filho, nada nunca é fácil. E eu entendi o que ela queria dizer, e percebi que ela tinha razão, e fiquei quieto e não respondi nada.

Levantei uma vez mais aquela porta, ainda em dúvida, sem saber se deveria ir ou não. Era estranho, não parecia seguro, e eu não tinha ideia do que tinha ali dentro nem do que fazer depois que tivesse entrado. Mas pensei no que elas tinham me dito, sobre todas aquelas pessoas humildes terem que fazer aquele mesmo caminho, e me ocorreu que eu não era melhor que nenhuma delas, que aquele caminho era o meu caminho também, e que se elas podiam passar por aquilo e ainda assim serem sorridentes e atenciosas é porque não tinha motivo algum para que eu não fizesse exatamente o mesmo que elas. E pensando isso me veio uma sensação de que aquele era um caminho novo, sim, mas ao mesmo tempo era um caminho que eu no fundo já conhecia, um caminho que de algum modo me levaria de volta a algo que era meu desde sempre. E então não tive mais medo. Lembrei rapidamente das pessoas que tinha visto no andar de cima, pessoas que tinham me ignorado e me tratado como se eu não existisse, e senti pena delas, e imaginei que bom seria para elas se elas um dia vissem aquela escada e tivessem a presença de espírito de descer. Talvez então eu as pudesse rever e elas me ouvissem também, pensei, e essa ideia me deixou um pouco comovido.

Bom, acho que tenho que ir, não é?, eu disse, tentando soar animado e cordial. Sim senhor, pode ir, um bom dia para o senhor, me disseram. Respirei fundo, e pensei, Pois é, Igor, o trem não vai ficar te esperando, vamos lá então. Abri a porta, enfiei um dos pés naquele poleiro, tomei um impulso e pulei na escuridão.