domingo, 30 de junho de 2013

Junho de 2013: um canto

[caption id="attachment_522" align="alignnone" width="900"]Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21 Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21[/caption]

Acho que desde o início percebi que junho não seria um mês qualquer. Ele já nasceu intenso, puxando o chão dos meus pés como alguém que tira de um só golpe a toalha de cima de uma mesa. Não havia tempo para contemplar o que quer que fosse. Confuso, mas sem medo, me vi solto no espaço por instantes - para em seguida cair em solo acidentado, uma voz na minha mente dizendo apenas corre, corre, corre. Então corri, com o mundo explodindo ao meu redor - a vida estendeu-me uma mão, a agarrei e corri, mal sabendo por onde ia, conquistando a custo cada respiração. Quando parei, vi o mundo lançado em linda e terrível desordem. E avancei em direção ao perigo, sem nenhuma certeza de estar fazendo o que era certo, movido apenas pela inarredável necessidade de ver o que o mundo mostrava, ouvir o que ele dizia. Entender.

O primeiro gás lacrimogêneo foi perto do prédio da Zero Hora. Não fomos capazes de correr; a fumaça nos tragou e nada nos restou senão andarmos um abraçado no outro, ambos sem enxergar quase nada, tossindo, ofegando. Alguém borrifa algo no meu rosto, consigo respirar melhor, mas quem me salva é a chuva - abençoada chuva que surge como milagre em meio à fumaça, que lava meus olhos e minhas narinas com o cuidado de quem sempre me amou. Reconcilio-me com a chuva ali mesmo, no meio da confusão dos homens, e peço que ela me perdoe por tê-la tratado de maneira tão injusta. Chovendo em pequenas gotas, ela afaga meu rosto e sorri.

Na esquina da Duque de Caxias com Doutor Flores, um contêiner de lixo arde em chamas. Alguém surge com um extintor de incêndio para apagá-lo. Ouço aplausos e vaias; vejo uma pedra que voa para o alto, rumo a pessoas que assistiam a cena da janela de um apartamento. Ouço o som de uma arma de choque; vejo pessoas correrem. Todos correm, o tempo todo. Eu muito já corri; apenas me afasto, devagar. Não sei para onde ir. Não há onde esconder-se do Tempo.

Leio e releio as mesmas palavras. Já sou capaz de repeti-las de forma exata, e ainda assim as memorizo um pouco mais a cada noite. E o Tempo condensa-se em novas formas, junta o que foi e o que está sendo, ri da hierarquia ridícula dos dias. Durmo pouco, acordo sobressaltado. Tomo café. Vou à rua. Por vezes, ando só. E logo desisto de entender as coisas, percebendo que não há nelas nada para ser antecipado, nenhum acontecimento sobre o qual eu possa acautelar-me ou pretender ter qualquer tipo de controle. Tudo escapa de minhas mãos. Nada tenho. E estou em todas as coisas.

Faço uma longa caminhada. Saio da esquina com a Osvaldo Aranha, desço pela Venâncio Aires, pego a João Pessoa até a Salgado Filho, passo pela Esquina Democrática. Pelo caminho, vejo os vidros quebrados, as frases escritas com tinta berrante no meio do cinza. Há um toque de humano em cada coisa que vejo; meu coração lembra de cada detalhe. Meus olhos estão cheios de beleza. Ao fim da caminhada, detenho-me longamente no Largo Glênio Peres. Percebo imediatamente que, para mim, ele jamais voltará a ser o mesmo. É madrugada de sexta-feira, e estou só. Mas estou pleno.

Consigo sorrir.

Perguntam-me o que acho. Não acho nada. Não há o que dizer em meio ao turbilhão. Ontem foi segunda, hoje já é quinta-feira, e então o fim de semana, e ja é segunda-feira de novo. Após o almoço de domingo, faço um longo retorno para casa; desvio o trajeto e vou até o colégio onde passei parte da infância. Está fechado, e hoje as grades de arame viraram muros de tijolos, altos. Só um dos pavilhões segue o mesmo; mesmo assim, nada mudou. A calçada da rua de trás segue tomada pela grama não cortada. Lembro da menina que, com um sorriso no rosto, me revelou que eu um dia seria o que hoje sou: um contador de histórias. Meus olhos enchem de lágrimas de pura gratidão.

Não consigo parar de andar. É uma caminhada que liga pontos inexistentes, sem partida e sem chegada: é uma jornada sentimental no coração da cidade que grita e sangra. O mundo todo está louco. O cachorro que foi meu amigo fiel por tantos anos morre enquanto estou preso no engarrafamento, incapaz de dizer a ele pela última vez o quanto ele foi um bom cão o tempo todo. A última vez que o vi foi na noite anterior, chegando em casa depois de uma noite de bombas, balas e fugas. Me recebe feliz, mas sem muito fôlego: tosse e geme baixinho. Digo a ele que é um bom cão e que ele pode voltar a dormir. Ele vai, e nunca mais o verei: no começo da manhã o levam até a clínica veterinária, e à noite ele está morto. Morreu de olhos abertos, boca aberta. Querendo viver. Afago rapidamente sua cabecinha sem vida e digo uma última vez, em silêncio: bom cachorro. Bom cachorro.

Não há tempo para luto. Amor e morte se misturam, sentimentos antagônicos lutam para achar algum tipo de calmaria dentro de mim. Não posso parar de andar; o mundo não me permitiria. O amor que vejo em todas as coisas me impulsiona. Sento brevemente diante de pessoas importantes; elas não me trazem explicação alguma. Olho nos olhos de um homem transtornado em meio a carros destruídos por uma onda de revolta além palavra, além explicação. Eram uns quinhentos, ele diz, e porque ninguém faz nada, ele diz, só deixam quebrar tudo e jogam bombas sobre a gente. O senhor está trabalhando?, me pergunta outra voz. Tá na linha de tiro, qualquer coisa a gente não se responsabiliza. Sussurro dizendo que não tem problema, eu me garanto, muito obrigado. Mas não me garanto de coisa alguma, isso eu bem sei. Que garantia existe em um mês como esse, em um mundo como esse?

Surge música. Sinto cheiro de pipoca, churrasco, quentão. Consolo efêmero: não será desta vez que a vida fará sentido. Nenhum odor alegre consegue mascarar o cheiro do gás. Não corram, eu grito. Não corram. Mas todos acabam correndo, atropelando uns aos outros, empurrando, gemendo, gritando. Cheios de medo. Alguns cheios de ódio. Contra a parede. Alguns dormem. Passo por dentro de suas casas e peço desculpas, mas sigo andando sem nem saber mais por quê, apenas porque não consigo mais parar de andar. De ver. Sai e vê, diz a besta; eu saio, e vejo. Ando em sentido contrário aos que correm, na exata direção do mundo que explode.

Pego a vida pela mão e a arrasto até uma esquina ligeiramente mais segura. Não há fuga: estamos encurralados. Gás sobe e desce pela rua onde estamos; há ruído e terror em todos os lados. Querem entrar aqui?, nos perguntam da porta de um hotel, que dias depois seria ele também alvo das pedras ausentes de razão. Olho para a vida, ela olha para mim, e ficamos do lado de fora. Não há esconderijo; não há saída senão encarando de frente a confusão.

Respiro fundo. Vamos?, pergunto. E começo a andar de novo, os lábios úmidos com lembranças distantes, uma música absurda tocando repetidamente na minha mente. Uma música que não existe.

Há um toque de humano em tudo que vejo.

Ao fim da jornada, um anjo me dá um doce. É a mais saborosa de todas as iguarias. Como com o coração cheio de gratidão, os olhos voltados para o céu.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

O gás lacrimogêneo e o medo que não serve mais

[caption id="attachment_517" align="alignnone" width="900"]Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21 Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21[/caption]

A noite de terça-feira parecia quase normal no centro de Porto Alegre. Desci a General Câmara, segui pela Andrade Neves rumo à Salgado Filho, e no trajeto quase todas as coisas pareciam estar no lugar: o comércio, as barbearias, os bares, as pessoas, os sons, os odores. Era quase possível acreditar que, naquele instante mágico, tudo estava bem. Mas havia o cheiro que seguia em todas as coisas, tênue mas ainda perceptível, o odor que nenhum restaurante ou padaria ou barraquinha de pipoca conseguia disfarçar.

O cheiro de gás lacrimogêneo.

Respirei muito gás, nos últimos dias. É uma sensação terrível: irrita a garganta, provoca tosse incontrolável, transforma a visão em borrões, cega e deixa aturdido qualquer um. Arde e dói. Dependendo da quantidade, demora um pouco até a pessoa se recuperar. E fica um tempo no ar, flutuando quase invisível, entrando pulmão adentro. Não é nada agradável, a sensação do gás lacrimogêneo entrando na garganta. Posso afirmar isso a vocês.

E foi muito gás lacrimogêneo na noite de segunda-feira em Porto Alegre. Muita bomba e muitos cavalos e muita bala de borracha sobre pessoas que, em sua imensa maioria, nada mais faziam do que rumar pacificamente até a Esquina Democrática. Gente jovem. Muitos adolescentes ali presentes certamente estavam tendo, na prática, seu primeiro contato com a atividade política - e foram recebidos pelo Estado do modo que o Estado geralmente recebe os seus: com truculência, desprezo e brutalidade. Tiveram a sorte, pelo menos, de serem alvejados com balas de borracha - como sabemos, quando cai o poder aquisitivo médio de quem grita sua revolta, a bala costuma ser letal.

A Brigada Militar estava preparada para a guerra. Não existia policiamento em Porto Alegre na noite de segunda-feira: enquanto o gás lacrimogêneo imperava em uma das esquinas históricas da democracia gaúcha, saqueadores faziam a festa na João Alfredo sem serem importunados. A ideia, de qualquer modo, não era deter eventuais criminosos: desde o início, a disposição da BM era conter uma turba enlouquecida. Como não havia uma turba enlouquecida, tratou a Tropa de Choque de criar uma. Aproveitou a tentativa de saque na Paquetá da Borges de Medeiros - um acontecimento grave, mas que poderia ser contido sem intervenção direta sobre a multidão - para colocar em prática um nada sutil plano de dispersão da massa. Conseguiu seu intento, de forma que felizmente (e por sorte) não foi trágica.

Eu estava no meio da massa quando estourou a correria. Vi rostos de quase crianças tomados de terror. Vi pessoas absolutamente inexperientes em qualquer confronto com a polícia tentando desesperadamente correr, atropelando umas às outras. Ouvi vozes gritando para que não corressem; eu mesmo ergui a voz e pedi calma gurizada, não corram, não corram. Mas o medo era mais estrondoso que a razão, o pulmão ardendo falava mais alto que o raciocínio, e logo tivemos uma correria insana e desenfreada Borges de Medeiros acima. Sou alto, mais forte fisicamente que a maioria dos que ali estavam, e temi sinceramente pela minha integridade física. E nem cito as muitas vezes em que engoli grandes doses de gás, nem as palavras rudes ditas por policiais em mais de uma ocasião, nem a estranha (e palpável) sensação de estar mais seguro entre os manifestantes do que no meio das forças que supostamente deveriam me proteger. Refiro-me desta vez exclusivamente ao que vi na esquina da Borges de Medeiros com a Salgado Filho - uma polícia cometendo uma brutalidade contra aqueles que são tratados, em todos os lugares, como a maioria dos manifestantes. Os pacíficos, os que não querem arruaça, os que gritam "sem violência" ao menor sinal de depredação - foram esses que mais engoliram gás, na noite sem sentido de uma Porto Alegre transformada em praça de guerra.

Como ato de guerra, como ação necessária em um campo de batalha, o ato das tropas de choque da Brigada Militar pode ser considerado um sucesso. Durante uma manifestação popular, em área central da cidade e em meio a um regime que diz-se democrático, foi uma estupidez próxima do desastre. E que apenas ampliou um problema: transformou um grupo coeso em vários grupos menores, encheu de revolta quem antes estava tranquilo, motivou violência onde antes só havia disposição de caminhar. Basta fazer a crua matemática de quantos focos de depredação e saques existiam antes da ação militar, compará-los com o que tivemos depois da desastrada intervenção e chegarmos à conclusão de que o problema aumentou após o exercício de guerra da BM, ao invés de diminuir. O Comando da BM recusa-se a chamar isso de dispersão e afirma que foi uma ação "adequada". Não sou especialista em ações de guerra, muito menos em policiamento urbano, mas estava no meio dos acontecimentos e afirmo: aquilo foi pura tática de dispersão, e não apenas não foi adequado como faltou pouco para colocar algumas mortes na conta do governador Tarso Genro. Um governador identificado com a esquerda e que agora, graças à polícia que demonstra ser incapaz de controlar, terá que carregar a responsabilidade de ser o chefe de um governo que, em plena democracia, impediu o povo de acessar o Palácio Piratini e a Prefeitura de Porto Alegre - coisa de que, salvo engano, nem o regime de exceção foi capaz.

E aí a pergunta quase previsível torna-se inevitável. Se assim agem contra os jovens de classe média, os filhos de famílias que podem até não ser ricas mas certamente não passam necessidade, o que farão contra os que não assinam jornais, contra os que moram longe das áreas nobres, os que vivem com pouco e precisam viver de fé porque de Estado fica mais difícil? Na terça-feira, a Favela da Maré no RJ nos deu um triste testemunho nesse sentido - gente que morreu na bala da Polícia Militar, que saiu do lugar onde moravam enrolados em sacos pretos de plástico e que, sem nenhum tipo de julgamento formal, ganharam rótulo de bandidos em rede nacional. Retaliação à morte de um policial, dizem alguns. E eu fico pensando se eu preciso mesmo de uma polícia que retalie o que quer que seja. Se o Rio Grande do Sul, se o Rio de Janeiro, se o Brasil todo precisa de uma polícia que trate crime como guerra, que trate protesto como revolta civil, que transforme toda ação em operação no campo de batalha. Que mate e coloque vidas em risco e mesmo assim só responda a si mesma, mesmo assim tenha seus atos rotulados como adequados por um comando que na verdade - e todos o sabem - comanda pouco, quase nada. Um poder que não saiu, nem no discurso nem na prática, das trevas nojentas de um passado recente que ainda nos assombra com sua carranca detestável.

Que se ache um meio de reciclar e reaproveitar essa multidão de profissionais e seres humanos, pessoas que em sua maioria apenas querem fazer um bom trabalho e que têm pouca ou nenhuma responsabilidade sobre as decisões de seu comando ou de seus colegas que, mesmo de farda, andam fora da lei. Que possam ser direcionados de forma a servirem mais e melhor à população, em uma estrutura onde recebam treinamento e orientação e onde respondam pelos seus atos de forma justa, sem excessos nem leniência. E que os protestos em todo Brasil compreendam que temos uma pauta comum, necessária e urgente, passo decisivo para deixarmos de ser uma promessa e começarmos a ser de fato um país: a extinção completa das polícias militares. Um organismo que governa a si mesmo, que empareda governos impotentes para controlá-lo e que, pensado para a guerra contra o povo, não deixará de fazê-lo enquanto existir, simplesmente porque é essa sua natureza. Um organismo que sustenta a si mesmo no medo e não deveria ter espaço em uma sociedade que já teve medo demais e agora exige liberdade. Que vai seguir enchendo de terror as nossas noites, que vai seguir matando nossos irmãos sem julgamento, que vai seguir enchendo nossas esquinas de truculência e gás lacrimogêneo. Porque é para isso que ela existe. E é disso que não precisamos mais. Que nunca precisamos. Porque nenhum de nós aguenta mais viver com medo, por um instante que seja.

Quando penso nessas coisas, ainda sinto o gás na minha garganta e nos meus olhos. E sou um privilegiado, porque até agora não tive senão gás e algumas corridas assustadas fugindo de balas de borracha para lamentar. Tem gente que perdeu bem mais. Bem, bem mais. E encho o ar de pulmões, agradecido pela sorte que tenho, enquanto tomo um ônibus para bem longe do lugar onde vi tantas coisas terríveis na noite de segunda-feira em Porto Alegre.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Os protestos: uma tentativa de análise

Acho que o que está acontecendo no Brasil não precisa, em absoluto, do meu entendimento. Está vindo, é forte e intenso, e o que eu acho ou deixo de achar no fundo não faz a mínima diferença. E isso é belíssimo.

Mas gostaria de apontar o fato de que essa situação toda está começando a me lembrar de Londres 2011 um pouco mais do que eu gostaria.

[caption id="attachment_512" align="alignnone" width="900"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Não tenho medo dos reacionários ou do recrudescimento do autoritarismo, como percebo em muitos neste momento. Que as Polícias Militares mantêm a ditadura em plena (e um tanto frágil) democracia, infelizmente já era algo sabido. Quanto às tentativas conservadoras de puxar os protestos para si, acredito que elas vêm e passam, como já vi acontecer anteriormente. Esses grupos veem algo acontecendo, tentam se agregar (já que falta força neles para legitimar um movimento próprio), acabam não conseguindo e se afastam.

O que começa a me causar preocupação é um outro grupo, que não tem nenhuma identificação específica com bandeiras, que legitima-se na própria revolta e mais nada. Gente que sim, vai à rua buscando a pura catarse de umas vidraças quebradas e do confronto com as forças policiais. Gente que quer o confronto porque precisa dele para sentir-se mais vivo. E que, na medida em que os protestos ficam mais acéfalos, ganham mais e mais espaço. Uma revolta que existe e que não julgo, mas que me causa as primeiras pontadas de preocupação.

Porque, no momento, meu coração diz que ISSO SIM é potencialmente perigoso.

Eu poderia passar semanas aqui explicando como essa violência, essa destruição que basta em si mesma, essa disposição pura e simples pelo confronto com a PM, como eu vejo tudo isso servindo ao Estado em todos os níveis possíveis, ao invés de prejudicá-lo. Não é à toa que tanto se fala em maioria pacífica e minoria de vândalos no noticiário - porque quem legitima a truculência do Estado não é a maioria, e sim a minoria. São eles que ganham destaque e será em nome deles (ainda que não por causa deles) que as bombas e as balas e o gás e o cassetete continuarão caindo sobre nós. Limitando tudo às regras que o Estado tão bem conhece e tão bem sabe manipular a seu favor.

Para mim, o que estamos vendo aqui é um processo de apoderamento político - grupos que haviam perdido a voz e agora estão a reencontrando. São grupos que se somarão aos antigos, e os reforçarão, como agentes políticos e movimentos da sociedade. Esse, para mim, é o potencial dividendo positivo, muito maior (ainda que não capaz de anular) reduções de tarifa e coisas assim - e certamente muito maior do que os confrontos na rua ou o lero-lero vazio de mensalões e corrupções que tentam de forma canhestra nos empurrar goela abaixo. Mas não consigo deixar de lembrar Londres 2011, e não consigo deixar de pensar que, quanto mais a gente reforçar a lógica de violência que alimenta a si mesma nessas situações, mais perto estaremos do simples evento que vira memória de juventude e do fim prematuro de algo lindo e imenso e que merece e precisa existir. Porque do mesmo modo que eu acho que é o amor que nos leva para a rua, é a falta de amor que nos afasta dela. Foi assim até há pouco e pode voltar a ser.

É o que o meu coração está dizendo no momento.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O amor não acaba

[caption id="attachment_509" align="alignnone" width="900"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

"Acabou o amor", gritaram alguns durante os protestos em Porto Alegre e, imagino eu, em outros lugares do Brasil. Tratava-se, é evidente, de um recado não exatamente literal. A ideia era afirmar que estava encerrada a trégua, que agora a coisa era na rua e que, se viesse guerra de um dos lados, haveria guerra em resposta, sem hesitações - além de, é claro, realçar uma unidade internacional com o que acontece também lá, quase do outro lado do mundo. Era um grito com boa aceitação: muitos erguiam a voz e diziam que sim, acabou mesmo o amor, Porto Alegre ia virar Turquia e não havia muito o que as autoridades, de qualquer natureza, pudessem fazer para impedir.

Talvez os mais impressionáveis possam dizer que ontem, 17 de junho de 2013, o grito de ameaça se concretizou em Porto Alegre. Pois a caminhada virou batalha, a noite virou explosão, tivemos sangue e gritos e choro e gente correndo para todos os lados. Tivemos cavalarianos de sabre em punho, bala de borracha, gás lacrimogêneo, gente presa abaixo de espancamento. Tivemos ônibus queimado, contêineres de lixo ardendo em chamas, vidro quebrado, gente ameaçada sem nenhum sentido no meio da rua. Tivemos pedras voando. Gente acuada. Tivemos medo. E tivemos ódio, sem dúvida tivemos muito ódio ontem, na noite iluminada pelas labaredas em Porto Alegre.

Mesmo assim, eu tenho que dizer que não acabou o amor coisíssima nenhuma. Nem no mundo, nem dentro dos protestos. Porque não existe amor que não movimente alguma coisa, e o que estamos vendo Brasil adentro é puro movimento - puro amor, portanto. Amor torto às vezes, amor de quem anda desaprendido de amar, mas ainda assim uma energia comum que a todos perpassa e que junta o pessoal na rua para dizer que do jeito que está não dá mais para ir levando.

Não haverá amor em pessoas que se dispõem a ir para a rua mesmo sabendo que podem levar bala de borracha, spray de pimenta no rosto, golpe de cassetete, pontapé e humilhação? Não temos amor, por acaso, em quem sabe que pode sim se machucar, mas ainda assim vai em frente, de cara limpa ou coberta, muitas vezes sem nem saber exatamente por quê, sabendo apenas que tem que ir e que assim será? Uma pessoa que decidiu que as coisas precisam mudar e resolve, de modo politizado ou impulsivo, entendendo tudo certo ou tudo errado, andar pelas ruas da cidade dizendo que sim, as coisas mudarão - não estará essa pessoa, por acaso, transbordando de amor? Amor por inúmeras coisas, por coisas às vezes desconexas, sem relação ou pouco elaboradas - mas sempre amor pelo mundo que achamos que precisa existir e que, de algum modo, nos é negado.

Tem amor dentro da pessoa que vira o contêiner de lixo e tem amor nos que vão até lá para reerguê-lo. A diferença é de voltagem, eu diria - ou melhor dizendo, de direcionamento. Porque amor também é estar alerta sempre, e qualquer descuido transforma-o em desperdício, em desequilíbrio, em destruição. Sou pacifista, adepto dedicado da não-violência e não espero que ninguém concorde comigo, até porque não é disso que eu falo - refiro-me, na verdade, à grande energia que colocou mais de 10 mil nas ruas de Porto Alegre, 65 mil em São Paulo, 100 mil no RJ, multidões em Brasília, Belo Horizonte e por aí vai. É gente que olha para os aparelhos de estado e não enxerga a si mesmo, que sente-se fora do jogo, sem voz. Gente que carrega um amor imenso e potencialmente explosivo dentro de si e quer que ele tenha som, tenha cor, tenha forma e visibilidade. E é justamente nessa hora em que o coração doente de tanto amor represado olha pela janela e encontra seu lugar: a rua.

De fato, não apenas o amor não acabou como está transbordante. Não o amor patriótico vazio, o amor pela pátria amada deitada em berço esplêndido e que descobre que um filho seu não foge a luta e por aí vai. É um amor mais profundo: um amor de quem não vê seu amor em lugar algum e, por isso, quer mudança. É amor por nós mesmos: é amor próprio, da melhor espécie. E não achem que dá para usar esse amor para trocar um governo por outro, colocar um novo chefe igual ao chefe antigo mas de outra cor, outro rosto, outra sigla partidária. Porque esse amor que grita, que explode, que abraça e que quebra e que corre de mãos dadas para fugir da bomba e das balas - esse amor quer algo novo. Quer um mundo que corresponda a esse amor. E o mundo vai ter que ouvir esse apelo, cedo ou tarde.

Vai ter que ouvir. Porque o amor pode às vezes perder-se de si mesmo, mas acabar ele não acaba nunca.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Sobre os protestos

[caption id="attachment_494" align="alignnone" width="1600"]Foto: Yamini Benites Foto: Yamini Benites[/caption]

O tempo de explicações passou. Não há mais espaço para responder sobre os motivos dos protestos que se espalham pelo país. Não há mais tempo para tentar esclarecer que alguns centavos não são apenas alguns centavos, que o aumento de passagens é mais que o aumento de passagens, que árvores não são apenas árvores e que um tatu de plástico, embora seja apenas um tatu de plástico, é bem mais do que um tatu de plástico. Passou a época em que fazia sentido dizer que um vidro quebrado não é obra de milhares ao mesmo tempo, e não cabe mais argumentar para explicar que a violência da Brigada, por vir diretamente do Estado, é sempre mais grave, mais preocupante e terrível do que milhares eventuais atos de vandalismo, baderna, desordem e outros chavões do tipo. Não é mais tempo dessas coisas. Simplesmente porque o tempo acabou.

Acredito que, a partir de agora, quem ainda não tinha entendido vai ter que dar um jeito de entender. Vai ter que olhar as fotos de jornalistas com olhos estourados por bala de borracha ou levando spray de pimenta no rosto em pleno exercício profissional e formar uma opinião sobre isso. Vai ter que olhar imagens de pessoas de joelhos, mãos para cima, levando bala de borracha e bomba de gás e pensar um pouco a respeito. Vai ter que levar em conta o fato de que foram presas pessoas portando vinagre em SP, que invadiram um restaurante em Porto Alegre para prender quem estava fugindo da confusão criada pela própria polícia, que crianças e idosos foram agredidos em nome da suposta proteção de seus próprios interesses. Vai ter que olhar mais para as redes sociais e menos para a televisão e para os jornais. Vai precisar olhar para as pessoas e enxergar nelas outras pessoas, ouvir o que elas dizem, entender o que elas sentem. Vai precisar compreender que é cada vez mais gente na rua, cada vez mais indignação, e que o discurso político está cada vez mais desligado do que as pessoas querem, necessitam, exigem. E vai ter que entender tudo isso por si só, a essa altura. Sozinho.

Porque não dá mais tempo de explicar. A onda está chegando, ganhando volume, e não vai fazer uma pausa para que algumas pessoas tenham tempo de entendê-la. Ela vai fazer exatamente o que ondas costumam fazer - levar tudo e todos de arrasto. É um vagalhão que encontrou no aumento de passagens uma materialização mais evidente, mas que diz respeito a inúmeras outras coisas - desde índios sendo mortos em nome de latifúndios até jovens apanhando numa área pública em nome de um totem de borracha. Dá testemunho de um desencanto profundo, genuíno e potencialmente violento de boa parte da população com o discurso do Estado, completamente desconectado da realidade que as pessoas vivem diariamente, de seus anseios e necessidades. Porque o Estado é cada vez mais um serviçal do poder financeiro, e cada vez esmaga mais as pessoas para atender interesses cada vez mais irreais e desumanos. E cada vez menos gente consegue suportar. É uma crise de modelo e de representação, e ela não vai tomar conta do Brasil: ela já tomou. Do mundo todo, na verdade. E nada adiantará gritar contra os vândalos, ridicularizar suas demandas ou diminuir sua relevância. Porque a onda ganhou corpo, e o discurso foi além das próprias limitações: agora, a indignação alimenta a si mesma. E é por isso que o Estado é cada vez mais brutal e que a reação é cada vez mais barulhenta, volumosa e não raro violenta: porque não há, nessa conjuntura, quem possa recuar. A coisa vai crescer até onde puder, e então explodirá. E a nós não cabe senão assistir ou tomar, de alguma forma, parte nisso.

Não é mais tempo de explicar nada.

É o melhor dos tempos, é o pior dos tempos, e são todos de uma vez só.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Praça Aratiba, sem número

"Tu nunca pensou em ser jornalista?"

Quem me perguntou foi uma menina da oitava série, no pátio da Escola Estadual Visconde do Rio Grande, Praça Aratiba, sem número, zona sul de Porto Alegre. Se eu bem lembro, eu estava na quarta série - na quinta talvez, mas certamente não além disso. Naquela época, o tempo ainda se deslocava de forma mágica e particular: os dias pareciam intermináveis, quinze minutos de recreio eram tempo de sobra para fazer um monte de coisas, e a oitava série ainda era um estágio de maturidade quase inalcançável, um ponto da vida onde já se era mais velho do que eu era capaz de imaginar.

Era final de manhã. Eu esperava a minha mãe, que lecionava na mesma escola, para que fôssemos juntos para casa; a menina, eu acho que apenas matava tempo antes de ir embora. Não preciso fechar os olhos para lembrar do cenário com riqueza de detalhes. O banco feito de pedra não aplainada, dura e desconfortável. A quadra de vôlei torta, com uma das linhas laterais tendendo mais ao centro do que a outra. O pavilhão de madeira, insuportavelmente quente no verão, gelado quando fazia frio. A árvore não muito frondosa, com minúsculos frutos verdes. A cerca de arame já meio derrubada naquele ponto, sustentada por precários postes de pedra, pintados de branco. A laje áspera debaixo dos nossos pés.

A menina tinha um cabelo longo, cor de terra, preso logo abaixo da nuca e que lhe caía quase até a curva dos quadris. Tinha um rosto redondo, de bochechas bem realçadas, aquele tipo de rosto que mesmo sério parece de alguma forma ainda estar sorrindo. Usava bermudas jeans justas, que batiam pouco acima do joelho. Tênis brancos. Para mim, era uma menina linda. Uma beleza que talvez só jovens de cerca de dez anos possam enxergar em meninas de quatorze ou quinze - um misto de fascínio e admiração ingênua, compreensível apenas quando se é um moleque conversando com uma moça no começo da adolescência, ambos ainda novos demais para entender plenamente a grande ânsia que move o mundo.

Não era a primeira vez que conversávamos. Era quase fim de ano letivo: disso lembro bem, pois ela ia terminar a oitava série e, como o excelso Visconde do Rio Grande não tinha e até hoje não tem ensino médio, iria continuar as aulas em outro lugar no ano seguinte. Por algum motivo, ela se afeiçoou a mim. Talvez enxergasse em meu comportamento, desde sempre contemplativo e dado a períodos de solidão, algum tipo de fragilidade que desejasse proteger. Quem sabe, certamente sabendo ela quem eu era, achasse divertido falar de vez em quando com o filho da professora de inglês. Ou quem sabe o que houvesse entre nós fosse apenas a amizade simples e pura que surge entre pessoas que, de alguma forma, percebem-se iguais - eu me sentindo à vontade diante de uma pessoa como ela, ela enxergando alguma coisa de si mesma em mim. Acho, no fim das contas, que apenas simpatizávamos um com o outro - e isso, certamente, nos bastava.

Sei que outras pessoas estavam mais ou menos presentes nessa ocasião - conversando entre si, próximas de nós, mas sem maiores interações conosco. Nossa conversa, no entanto, era séria, e era exclusivamente nossa: dos demais, lembro senão breves relances, borrões distorcidos de memória, suficientes apenas para indicar os vultos, mas incapazes de fornecer detalhes.

Falávamos sobre profissões. Ela tinha me perguntado o que eu queria ser quando crescesse. Na época, eu tinha comigo que seria um cartógrafo, que viveria de fazer mapas físicos e políticos, desenhar contornos de continentes, determinar latitudes e longitudes. Ela não sabia o que um cartógrafo fazia, ou fez de conta que não sabia, e pediu que eu explicasse. Respondi do modo que pude e ela não pareceu satisfeita.

"Não sei... Acho que tu não vai ser cartógrafo, não".

"Ah, é? E o que tu acha que eu vou ser, então?"

Ela parou e pensou. De todas as coisas, lembro do sorriso em seu rosto. Discreto, nada expansivo, mas sincero. Um sorriso de quem evoca algo dentro de si e, satisfeita com a sensação, deixa escapar seu contentamento sorrindo, sem ao menos percebê-lo completamente. Um sorriso de quem sonha.

Foi então que ela fez a pergunta.

"Tu nunca pensou em ser jornalista?"

A ideia, embora tenha me pego desprevenido, não trazia em si nenhuma carga de absurdo. Sempre gostei de jornais: os lia todos em casa, recortava, recitava trechos em voz alta, guardava algumas páginas. Era capaz de ler as manchetes bem antes de ser devidamente alfabetizado. Às vezes, quando minha mãe estava trabalhando e eu em casa, ligava apenas para avisá-la de alguma notícia em primeira mão. Assistia os jornais televisivos, gostava de comentar notícias, lia trechos das revistas que meus pais assinavam e estava sempre atento ao noticiário, da forma possível para um moleque de menos de onze anos.

No entanto, jamais tinha me ocorrido realmente a ideia de ser jornalista.

"Eu quero ser jornalista", ela me disse, ainda ostentando o sorriso discreto no rosto. "Quando for para a faculdade, quero fazer jornalismo. Acho que tu tem jeito para ser jornalista também".

Fiquei pensando naquilo. Nossas conversas eram assim, do tipo que ofereciam pausas para pensar.

"Mas como é ser jornalista?", perguntei enfim. "O que a gente tem que fazer para ser jornalista?"

"Ah, a gente tem que ser bem-informado, curioso sobre as coisas. Tem que ter espírito questionador. Tu acha que tu tem espírito questionador?"

Eu não fazia a menor ideia do que pudesse ser espírito questionador. Disse isso a ela e pedi que me explicasse.

"Imagina uma casa e tu quer saber como ela é por dentro. O dono da casa não te deixa entrar, mas te diz que as paredes são vermelhas. Se mesmo depois de dizerem que são vermelhas tu ainda quer entrar e ver de que cor são, tu tem espírito questionador. Tu quer ver com os próprios olhos".

Para mim, naquelas circunstâncias, foi uma ótima explicação. Pensei alguns instantes a respeito. Alguém tentou interromper nossa conversa, fazendo algum tipo de menção para que eu fosse embora; a menina com quem eu conversava não deixou que eu sequer cogitasse aceitar a ordem. "Deixa ele", falou, o rosto em seguida voltando-se para me observar em suave expectativa, esperando a minha resposta.

Pensei um pouco mais. Queria ter certeza se de fato ia ficar insatisfeito com a resposta do dono da casa, se ia realmente querer que ele abrisse a porta mesmo assim e me deixasse ver por mim mesmo se as paredes daquela residência eram vermelhas ou brancas, azuis ou cinzentas, com papel de parede ou azulejos, de madeira ou de tijolos.

Tive certeza. E respondi exultante, quase gritando, feliz com a descoberta:

"Sim, eu tenho isso!"

A menina me ouviu, viu meu entusiasmo e sorriu, agora mais abertamente.

"É, eu também tenho", respondeu. "Então, tu pode ser um jornalista, que nem eu quero ser".

"Posso", disse eu, orgulhoso de mim mesmo. E ficamos os dois ali, sorrindo um para o outro, naquela manhã de sol que ficou para sempre dentro de mim.

O que aconteceu com ela, creio que jamais saberei. Despedi-me dela pouco depois, quando minha mãe me chamou para ir embora - aquela despedida típica de criança, pouco mais que um grito antes de sair correndo para longe. Posso estar enganado, a memória romantiza algumas coisas e dramatiza outras, mas tenho a impressão de que aquela foi a última vez que nos falamos. O bimestre acabou, com ele o ano letivo, a moça bonita de cabelos cor de terra e bermuda jeans foi para outro colégio e sabe Deus o que foi feito dela. Não recordo nem mesmo o seu nome: lembro que era composto, ou tenho a impressão de que fosse um nome composto, mas dificilmente conseguiria me lembrar qual fosse, mesmo que me esforçasse muito. Como disse antes, o tempo se move de forma peculiar quando se é uma criança: quando dizemos tchau nunca é um adeus, e o nunca mais sempre parece reversível. No entanto, a menina que, antes de todos, recomendou-me que eu tentasse ser jornalista dobrou a esquina da minha vida e foi-se em definitivo, para não mais voltar.

Por algum motivo, não consigo acreditar que ela tenha sequer cursado Jornalismo, que dirá ingressado de fato na profissão. Me parece mais provável que tenha, como tantos outros alunos e alunas daquela humilde escola de classe média-baixa, desviado do rumo de seus sonhos em algum ponto do caminho. Não é, no fim das contas, o que acontece com a maioria de nós? É difícil, de qualquer modo, imaginar o que tenha sido feito dela - se tem filhos, um marido, um emprego, uma casa. Para mim, ela ainda tem quatorze anos, ainda prende o cabelo logo abaixo da nuca, ainda usa tênis brancos e senta em um banco de pedra da Escola Estadual Visconde do Rio Grande, Praça Aratiba, sem número, para conversar com um moleque de dez anos sobre o que ambos pretendem fazer de seu futuro.

Espero, de qualquer modo, que esteja bem. Que, realizado ou não seu sonho profissional de oitava série, sinta-se feliz com o rumo que sua vida tomou. E ao mesmo tempo surge dentro de mim, que fiz o ensino médio e entrei na faculdade e hoje sou jornalista formado trabalhando em site de notícias e muito satisfeito com isso, uma sensação que mistura gratidão e responsabilidade. Sou, de certo modo, herdeiro do sonho daquela moça; talvez tenha restado a mim a chance de concretizar aquela conversa, de mostrar que às vezes a gente sonha algo e esse sonho pode, de algum modo que ninguém jamais consegue prever, virar realidade.

As chances são de que nunca mais nos vejamos. Mas, se eu a encontrasse hoje - ou melhor, se eu pudesse voltar no tempo e sentar de novo naquele banco de pedra áspera da Praça Aratiba, sem número, local onde até hoje se ergue a Escola Estadual Visconde do Rio Grande - eu a agradeceria por ter me emprestado um pouco do seu sonho, pois ele até hoje tem sido muito útil para mim. E me despediria dela um pouco melhor - dando um abraço talvez, mesmo que rapidamente. Afinal de contas, o amor que surge puro dura para sempre, e as pessoas que amo são sempre alvo do meu melhor abraço.

sábado, 8 de junho de 2013

Pequeno desencontro em uma estação de trem

[caption id="attachment_485" align="alignleft" width="300"]Foto: Zeca Baronio / Flickr Foto: Zeca Baronio / Flickr[/caption]

Vi o casal bem antes que se juntassem a mim na estação de trem. Vinham quase ao lado do outro, o rapaz ligeiramente mais à frente, como quem abre caminho para a moça que vem logo atrás. A partir de um ponto, não era mais possível acompanhar visualmente o trajeto que faziam - então fiquei imaginando eles terminando de subir a longa rampa, dobrando em direção às catracas, pagando o bilhete primeiro um, depois o outro. Descendo as escadas. Olhando em meio às grades para ter certeza que o trem não tinha chegado ainda.

Desceram e vieram a mim.

O rapaz sentou-se. A moça preferiu ficar em pé. Foi ela quem iniciou a conversa, com alguns gestos expansivos e rápidos movimentos de dedos e mãos. O homem respondeu brevemente, de forma descuidada, enquanto ela retirava da pequena bolsa uma máquina fotográfica de modelo simples, a qual passou rapidamente a seu companheiro.

Não compreendo linguagem de sinais, de forma que não faço ideia do que diziam. De qualquer modo, percebi rapidamente que não era uma conversa amistosa. Deduzi, dentro das minhas precárias possibilidades de compreensão, que havia algo errado com o funcionamento da máquina, e que a moça esperava que o rapaz pudesse de alguma forma consertar o aparelho. Ele, por sua vez, não estava muito disposto a tentar. De qualquer modo, ambas estavam insatisfeitos e irritados com a situação. A moça gesticulava rápido, exaltada; o jovem, sentado com displicência cheia de desafio, mexia no aparelho de forma descuidada, fazendo gestos como quem pede paciência.

O rapaz deixou cair uma peça, que soltou um breve estalo metálico ao tocar o chão. A moça, irritada, tomou a máquina de suas mãos e afastou-se. Em resposta, cheio de revolta, seu companheiro deu um tapa no ar - um gesto que os surdos e os que escutam, os mudos e os que falam demais, todos certamente compreendem muito bem.

Em silêncio, desligo a música nos fones de ouvido e observo.

O trem já não está distante.

Entro por uma porta, eles por outra. Ficamos um pouco distantes; no entanto, me posiciono de forma a poder vê-los pelos pequenos vidros das portas que levam de um vagão a outro. Estão um de frente para o outro, mas sem comunicarem-se, sem troca de olhares. O jovem segura o corrimão, e põe-se a contemplar a própria mão que agarra a barra de metal como quem encontra nela um pretexto pobre para não olhar para mais nada. A moça não agarra-se em nada: mantém-se em pé com o rosto fechado, os braços cruzados.

O trem sofre um breve solavanco. A moça perde brevemente o equilíbrio. O rapaz faz menção de ampará-la.

Na estação, as portas se abrem. Passageiros embarcam e desembarcam. O trem vai cheio. Para que as pessoas possam passar, sou forçado a me movimentar.

Quando volto a olhar em direção ao casal, já estão abraçados.

Não pude testemunhar os últimos movimentos daquela cena, a dança gestual que levou àquele gesto definitivo de reconciliação. Não que faça falta, na verdade - no fim das contas, as histórias são também suas lacunas, os espaços em branco entre o que foi e o que pode ter sido. Sei apenas que assim surgiram, no fim da primeira manhã de uma semana que a minha memória há de manter: abraçados, um dando apoio ao outro na viagem, os rostos antes crispados agora próximos em pacificada contemplação. Depois do desencontro, em um vagão adjacente do trem que os levava para um ponto qualquer onde nunca mais os verei de novo, eram a certeza um do outro uma vez mais. Juntos, negavam o silêncio. Não estavam mais sós.

Eram um sinal. E eu nem sabia.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Sobre rostos escanhoados no centro de Porto Alegre

A mão me toca no ombro de surpresa, interrompendo meu devaneio-caminhada na manhã de muitos rostos e ausente de conhecidos no centro de Porto Alegre.

- Cara, tu é um privilegiado - me diz o homem de meia altura, cabelo castanho claro, rosto bem escanhoado, boca tremendo em um sorriso que tentava ser simpático. Obviamente, não entendi nada.

- Mesmo? - respondi, tentando sorrir de volta. - E por quê isso?

Ele sorri, agora de forma mais aberta, e aponta para o próprio rosto.

- A barba - acrescenta, quase em júbilo, como se ao dizer isso magicamente tivesse ele também o rosto coberto de fios. - Quisera eu ter uma barba como a tua. Sempre quis ter e nunca cresceu.

Contou-me rapidamente, com frases breves, que nunca lhe surgiu mais do que breves fios de bigode e uns tocos de barba no queixo, o que certamente o tinha deixado bastante frustrado com a própria genética. Elogiou mais de uma vez minha barba e completou:

- Porque barba bonita é bem cheia, assim que nem a tua!

Despediu-se com um aperto de mão breve e comovido, como se eu lhe tivesse prestado algum grande favor, pelo qual se sentisse muitíssimo grato.

Incrível, o que às vezes faz falta às pessoas.

Sigo sem entender o que a minha barba fez para merecer tanta deferência. Mas vou esperar mais uns dias antes de apará-la, por via das dúvidas.