terça-feira, 24 de setembro de 2013

O que somos

Dizem um nome. Uma ocupação. Um local de trabalho. Um endereço residencial, uma caixa postal, instituições de ensino, telefone celular. Um e-mail válido. Uma data de nascimento. Uma posição política. Um estado civil. Coisas que foram adquiridas durante a marcha dos anos. Amigos em comum. Lugares onde se esteve. Músicas, livros, filmes, espetáculos de teatro e dança. Um time de futebol. Um restaurante ou casa noturna. Longas sequências de situações inusitadas e eventos extraordinários. Opiniões. Certezas.

Ouço tudo com paciência, mas mal consigo disfarçar os bocejos.

O que são os seres humanos, além da soma de tudo aquilo que ninguém (ou quase ninguém) faz ideia que sejam?

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Breve relato sobre a segunda-feira chuvosa e as coisas importantes

[caption id="attachment_581" align="alignleft" width="300"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

O centro de Porto Alegre tem uma qualidade toda particular nas manhãs chuvosas de segunda-feira. A cidade se encolhe para proteger-se das gotas finas: andam as pessoas rente às paredes, acumulam-se debaixo das marquises, enquanto as ruas de pedestres se esvaziam. Surgem os casacos com capuz e as pessoas que não sabem andar carregando guarda-chuvas. É um mau-humor suave, o da região central de Porto Alegre tomada pela chuva - o sentimento de quem, já enxergando tão menos do céu quanto gostaria, lamenta não ter contato, se não com a luminosidade, ao menos com o calor do Sol. Ainda mais em uma manhã de segunda-feira.

Há um toque de humano em tudo que vejo. Isso é inegável.

Para mim, esse tipo de observação é fácil: mesmo carregando guarda-chuva, como hoje, raramente o uso.

Depois de tomar café em uma pequena lancheria, resolvi aguardar debaixo de uma das marquises da Esquina Democrática. Um pouco à frente, um homem tentava distribuir panfletos do que imagino que fosse um centro médico ou algo do tipo. Tarefa complicada em uma segunda-feira chuvosa: mesmo o que não têm pressa estão apressados, e ninguém parece dispor de tempo para ler panfletos, por mais coloridos que sejam. Não desistia, porém. A cada transeunte que passava, estendia um papelzinho colorido, substituindo eventuais palavras por um sorriso que não recebia atenção de quase ninguém.

Uma das pessoas hesitou. Pareceu ver no pedaço de papel algo interessante para si; porém, não decidia-se em pegá-lo, por mais que a ela sorrisse o homem com os panfletos. Sentiu ele então que precisava reforçar a abordagem, e disse brevemente, enquanto a voz tentava sorrir:

"Pode pegar, moça, é bem importante".

Rompida a barreira de silêncio entre ambos, e persuadida pela eficaz argumentação, tomou a senhora o panfleto para si. Chegou a murmurar um obrigado antes de partir.

O sucesso do novo método não passou despercebido ao homem. Tomado de renovada confiança, acrescentou o número a seu esforço de panfletagem, e passou a realçar incansavelmente a importância do material que ofertava. "É importante! Pode pegar, senhor, que é bem importante! Leva, amigo, é importante!". E a pilha de panfletos foi diminuindo a olhos vistos, as pessoas que passavam convencidas de que tratava-se de algo importante, algo que merecia alguns instantes de sua atenção, algo que merecia sair das mãos do homem que panfletava, ir em direção aos bolsos e mochilas, às bolsas e pastas de trabalho, uma trilha colorida que nascia naquela esquina e de lá se espalhava pelos mais diferentes caminhos da cidade tingida de segunda-feira, preguiçosa de chuva.

Se era mesmo importante eu não sei: me distraí na hora de ir embora e acabei não pegando o papel. Mas não deixou de ser agradável perceber que, mesmo nas manhãs mais chuvosas das segundas-feiras menos animadoras, as pessoas ainda sabem que existem coisas importantes que exigem nossa atenção - mesmo que as confundam com um pequeno pedaço de papel vendendo seguros ou tratamento dentário. Imagino que tenha sido importante ao menos para o homem que distribuía panfletos, de qualquer modo.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

pontuação

nada quero
pontuar

antes busco na vida o texto fluido

mas que, tenha,
muitas, virgulas
pelo caminho,
assim, mesmo, espalhadas
de, qualquer, jeito sem, sentido
para, encher o texto, de lindas, pausas
mágicas,
imprevisíveis,

até a hora de ir
dormir.

sábado, 14 de setembro de 2013

Treze de setembro: recomeço

- Está tudo correto para o senhor? Alguma dúvida ou retificação? - me pergunta educadamente a moça com os papéis da rescisão de contrato, em um tom de voz bastante gentil, ainda que enfático. É alguém que certamente faz isso várias vezes por dia - afinal, jornalistas entram e saem de contratos de trabalho o tempo todo, ainda mais dentro da lógica de precário equilíbrio que se tornou quase sinônimo de trabalhar em uma redação no Brasil.

A moça em questão trabalha no Sindicato dos Jornalistas e está à minha direita. À esquerda, senta-se outra moça, da empresa de recursos humanos, que há pouco havia me explicado tudo - esse valor é referente a isso, esse desconto é devido a aquilo, esse é o crédito de férias, aqui o desconto da previdência social. Ouço tudo, mas não escuto nada: são números apenas, dígitos que se empilham em uma lógica que não me é de todo estranha, mas que me parece distante demais do que realmente motiva minha presença naquele local. Irrelevâncias, em suma.

Nenhuma dúvida, respondo eu. Nada a retificar.

Existe uma sensação de reencontro em cada partir. Limpar as gavetas é um pouco como remover o que está sobrando em nós mesmos - os papéis acumulados que jamais serão lidos novamente, as canetas que levarei para casa, os cartões com nome endereço telefone e-mail que não serão entregues a ninguém. O carregador extra de celular, que sempre ficava na redação para o caso da bateria acabar sem aviso. A pasta com nossos arquivos no computador. A pasta está vazia. A escova de dentes. O crachá. Pedaços do que a gente foi e de certo modo continua sendo, mesmo já não sendo mais. Reencontro com o que somos e que independe de onde estamos, do horário de chegar e de ir embora, de cargo ou posição. Despidos de um compromisso contratual que de certo modo nos define, voltamos a ser nada mais que a simples imagem de nós mesmos.

Recolho tudo que eu era e coloco algumas coisas dentro da mochila. O resto, no lixo.

São cinco vias. Assino uma a uma, sem pressa, colocando data e dia da semana. Sexta-feira, treze de setembro de dois mil e treze. Foi numa quinta-feira, doze de agosto de dois mil e dez, três dias antes de fazer trinta anos de idade, que coloquei meus pés na redação pela primeira vez. Desembarquei em Porto Alegre pouco depois das dez da manhã, pouco depois da uma da tarde já estava sentando na frente do computador, uma pauta vaga para ser cumprida, rostos simpáticos mas em sua maioria desconhecidos olhando para mim. E foi numa segunda-feira, doze de agosto de dois mil e treze, que comuniquei minha chefe que havia decidido pedir desligamento. Três anos exatos. Três anos.

Não há despedida; há um almoço, há café na redação, há chopp no fim de expediente. Seguirão havendo almoços, cafés, chopp, contato, amizade, convivência. Uma gangue não se separa assim tão fácil, disto eu sei muito bem. Tem muitas histórias lá fora: seguiremos, eu e eles, indo atrás delas. Em trilhas que podem parecer separadas agora, mas seguem mais unidas do que nunca. Tanta coisa precisando acontecer. Tanta coisa para semear.

É tempo de semeadura.

Do lado de fora, os papéis guardados na mochila, a cidade prometendo vento em meio ao sol e ao céu azul, detenho-me na esquina da Rua da Praia com a General Câmara. Observo. É um pouco como se fosse a primeira vez.

O natural seria subir a ladeira. Com os olhos, é como se subisse. Passo em frente ao Tuim, já cheio de gente no meio da tarde, pessoas que tomam chopp enquanto observam a sexta-feira ir embora. Contorno a pequena trincheira, atravesso a Andrade Neves, sigo subindo. Passo em frente ao cartório, à Lancheria Ladeira, dou uma olhada breve para o interior do Beco dos Livros, parte de mim querendo entrar e perder algumas horas procurando livros ao acaso. Detenho-me breve instante ao lado do Sindbancários, tentando lembrar qual o filme em cartaz lá dentro. E então cheguei. Quase entro no Edifício Montreal, corredor rumo ao elevador, quarto andar. Meu andar por quase três anos. Anos que valeram por décadas de vivência, da maior vivência e do melhor aprendizado que a vida pode oferecer.

Olho a ladeira, mas não subo. Volto a andar, em direção à Praça da Alfândega. No momento, é esse o meu lugar: junto aos velhos e vagabundos, aos casais que namoram em um intervalo do expediente, aos senhores que jogam damas, aos homens que vieram do interior e aguardam por entrevistas de emprego. Tenho tempo livre: em um banco da praça, ficarei observando as pessoas que passam, tomando notas em meu caderno enquanto o tempo vai embora lentamente. Cada um tem seu retorno, seu reencontro consigo mesmo: este é o meu.

Feliz de me ter de volta, a praça me oferece um de seus assentos mais confortáveis, à sombra.

Treze de setembro de dois mil e treze.
Nada acabou.
Tudo recomeça.