terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sobre o dia em que descobri que era pai

Ligação telefônica de um número restrito. A cobrar.

Na primeira vez, desligo sem atender.

Insistem. Desta vez resolvo atender, embora já imaginando que fosse problema.

"Pai?", pergunta uma voz masculina, hesitante.

Descubro neste instante, via ligação telefônica, algo que não sabia até então: sou pai. E devo ser pai há tempos, uma vez que a voz é de um adolescente entrando na idade adulta, no mínimo. Um filho bem criado, eu diria.

A descoberta me deixa mau-humorado. Que diabos, se era para eu ser pai, que ao menos tivesse curtido as alegrias de ver meu filho crescer. Que tivesse as gratificações de conviver com uma criança, o prazer de vê-lo ir bem na escola, as brincadeiras, o afeto, o orgulho. Um filho que aparecia assim, me informando de forma súbita meu caráter de pai, ligando a cobrar sem me dar sequer a dignidade de saber qual o número de seu telefone, não me provocava nenhuma satisfação.

Pelo contrário: fiquei até um pouco ofendido.

"Que foi?", respondo, interpretando uma voz irritada tão bem quanto podia.

"PAI ME AJUDA PAI PELO AMOR DE DEUS ELES ME PEGARAM PAI ME AJUDA ME AJUDA", choraminga a voz.

Que diabos. Ainda me liga para me passar problemas. Realmente, criei muito mal essa criança. Só pode ser.

"Por quê? Que que tu aprontaste agora?", pergunto, controlando a custo a falsa raiva em minha voz.

"PAI ME ESCUTA ELES ME SEQUESTRARAM PAI PAI POR FAVOR PAI ME AJUDA" - o lamento é choroso, insistente e estridente.

Detesto gritaria ao telefone. Detesto.

De-tes-to.

"Ah, AGORA tu quer minha ajuda?", respondo com firmeza. "Pois quer saber? Te vira, moleque. Eu é que não vou fazer nada para te ajudar. Tu nunca me deu ouvidos, vivia se metendo com essa gente e agora quer que EU te ajude? Mas bem capaz. Dá um jeito na tua vida e depois vem falar comigo. Eu fora!"

Desligo o telefone sem nenhum remorso, o outro lado da linha tomado de silêncio.

Descubro neste instante, via ligação telefônica, algo além da paternidade. Percebo que posso ser um pai bastante severo, se for o caso.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Anotações sobre a chuva em Porto Alegre

[caption id="attachment_604" align="alignnone" width="900"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Atravessar a cidade em meio à chuva intensa é ao mesmo tempo um exercício de abandono e de compromisso. Há que se amar a cidade para cruzá-la de ponta a ponta nessas circunstâncias - mesmo porque, mais do que mero desestímulo, a barreira que impede o avanço é concreta, ainda que nem sempre tangível. É a água cinza e de mau cheiro que invade a minha rua, ameaçando me deixar ilhado, e é a água cinza e de mau cheiro que transborda do arroio e invade as casas dos humildes, certamente bem mais autorizados a reclamações do que eu próprio. Água que inunda as residências e também as avenidas pelas quais eu geralmente avanço rumo ao centro da cidade - trilha tornada impossível e que me força, depois de escapar da barreira da rua transbordante, a novos tipos de improviso.

Há algo de incomum no modo como os ônibus despejam as pessoas para fora em dias como esse. Não é exatamente como se elas desembarcassem nos lugares desejados, como se tivessem completado o trajeto normal de todos os dias: é muito mais como se desistissem, abandonassem o trajeto pela metade, cansadas da lenta tortura de um ônibus que avança devagar em meio à enxurrada. Na rua os pés molham rápido e a caminhada é difícil, mas há um ganho considerável de autonomia. Sei que é assim que pensam porque assim pensei eu, descendo antes do centro e avançando pela Redenção rumo ao Colégio Militar. A pé, quem dá o ritmo somos nós. Pelo menos isso.

A carona é generosa e bem-vinda, mas na prática resulta em pouco mais do que companhia para enfrentar o trajeto impossível. A cidade entra em suspenso: muitos tentam, mas ninguém vai e ninguém volta. Não deixa de existir um toque de anárquica poesia nisso tudo: o relógio humano é humilhado, os compromissos são ridicularizados, a hora de chegada vira um conceito impossível. A chuva impõe seu tempo - e é um tempo bastante lento, ainda que vigoroso. Toma para si as ruas, faz do asfalto seu remanso. Aos homens trancados em suas máquinas inúteis ou ilhados nas calçadas e residências, resta o estoicismo de ocasião ou uma renovada, ainda que eventualmente oportunista, fé em Deus. Do poder dos homens, como de hábito, não virá auxílio algum.

Pelo caminho ficam os guarda-chuvas, pontuando o avançar das almas pela chuva que não alivia. Vi grande quantidade deles: alguns completamente retorcidos, outros parecendo quase usáveis, só o olhar cuidadoso podendo revelar os estragos que justificam o abandono. Nas lixeiras, quase nenhum: eles ficam mesmo é nos canteiros, na beira das calçadas, junto às bocas de lobo. São cadáveres abandonados exatamente onde tombaram, sem muita cerimônia.

O meu guarda-chuva foi um desertor, talvez possamos dizer. Na verdade, quem o abandonou fui eu: paramos o carro para abastecer, entrei rapidamente na loja de conveniência para comprar água e comida e o esqueci dependurado junto aos bombons, ao lado da caixa registradora. Uma necessidade apagou a outra, creio eu: tão preocupado estava em preencher o buraco no estômago que ignorei a chuva que, mesmo em breve trégua, obviamente voltaria a cair. Um esquecimento quase admirável pelo absurdo.

Era um bom guarda-chuva. Espero que seja lá quem o tomou para si esteja fazendo bom proveito.

Comprei um novo guarda-chuva debaixo do viaduto, quase na Salgado Filho. Preto, hastes duplas, sem luxos mas sem aparentes carências. Doze reais. Não sei dizer se o valor é bom ou não. "Esse é um pouquinho mais caro, mas é mais resistente, vale a pena", acentuou o senhor que vendia os guarda-chuvas, abrindo um deles para eu ver que estava funcionando e já deixando-o aberto para que eu pudesse usá-lo imediatamente. Estava sorridente e falante, o vendedor, de certo contente com os consideráveis lucros do dia. "Vai chover amanhã também", advertiu-me ele, sem tentar esconder o sorriso otimista.

Vai sim, concordei com ele. Vai chover e vai ventar e trovejar; a água vai acumular nas ruas, invadir as casas dos humildes, atrapalhar a vida dos que trabalham e estudam. Guarda-chuvas vão ficar deitados na calçada, outros guarda-chuvas serão vendidos nos viadutos e nas esquinas. Vai ser uma chuvarada daquelas, sem dúvida. E a vida vai continuar. Porque essa é a natureza do homem, mesmo na cidade tornada impossível pela chuva: ele vai em frente. Molha os pés na água, abre o guarda-chuva e vai em frente, porque é para frente que todas as coisas devem ir. E que culpa tem a chuva, no fim das contas?

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Adeus à rasura

[caption id="attachment_601" align="alignleft" width="211"]Rascunho de "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector. Foto: reprodução Rascunho de "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector. Foto: reprodução[/caption]

Nunca tinha parado para pensar em como o fim dos manuscritos e das rasuras é, em certo sentido, trágico. Escreve algo no papel, muda de ideia, risca e escreve outra coisa: é uma trilha de pensamento que se desenha. Uma curva que o além-palavra faz em direção à palavra, talvez possamos dizer, já que esse trajeto nunca é uma linha reta. Fica ali a marca, o testemunho da eterna imprecisão da palavra em relatar o singular dentro de nós: é um registro histórico, digamos assim. Um registro de nossa história além da história, eu corrigiria - do mesmo modo que fatos contam de nossa caminhada pelo mágico absurdo do mundo, rasuras em um manuscrito falam da mágica de dentro, do esforço de nosso ser-além-do-que-somos em registrar, de algum modo eternamente precário, um pouco do seu próprio existir.

Hoje, a gente escreve quase tudo com teclados, de todos os tipos: a curva ainda existe, mas não deixa traço algum, desvanece rapidamente em algum lugar entre o homem e a tela. Fica só o texto final, belo, perfeito - e, nesse ponto específico, falso. Não traz mais em si as cicatrizes de seu surgimento. Em certo sentido, é puro externo, por mais interno que traga em si.

Há algo humano que se perde nesta ausência.

(não que os livros impressos tragam em si as rasuras, o esforço de reescritura permanente rumo à curva mais suave entre o sentir e o expressar: bem sabemos que quase nenhum livro sai da gráfica com anotações do tipo. isso perdeu-se desde que os livros pararam de ser exemplares únicos, lá longe nas areias do tempo. mas o papel permite que nós, enquanto leitores, preenchamos ativamente essa ausência, de lápis em punho - sublinhando, fazendo observações, concordando e discordando da ideia, do cenário, do autor. acrescentando nossas próprias rasuras, dividindo com o autor a tarefa criativa. com a palavra na tela, e somente nela, isso também se perderá.)

Concluo que a rasura ainda nos fará muita falta.

 

(inspirado em um comentário de Phillipe Willemart em "Bastidores da Criação Literária" - um bom e interessante livro, diga-se de passagem)