sábado, 21 de março de 2015

Existem coisas muito mais importantes que política

Foto: Romerito Pontes
Foto: Romerito Pontes
Existem coisas muito mais importantes que política.

Estava sentando diretamente na calçada suja. Embora usasse camiseta azul e bermuda preta, estava todo vestido de cinza. Tinha em torno de si a aura de quem já se transformou em paisagem, sem lucrar nenhum dos pontos positivos que poderiam eventualmente surgir dessa transformação. Era negro e era bastante obeso; era pobre e me parecia bastante solitário. Logo acima dele, uma placa publicitária anunciava óculos de sol parcelados em dez vezes, sem juros.

Tomava um sorvete. Um pequeno copo plástico, cheio de creme branco e rosa, daqueles que se compra por trocados em qualquer máquina de esquina. Levava cada colherada à boca com estudado vagar, como quem pondera o movimento do braço antes que o doce chegue aos lábios.

Mas o que me impressionou foi o vazio do seu olhar. Aqueles olhos não pareciam com os de quem sofre ou desiste, ao contrário: eram os olhos de quem não enxerga o mundo simplesmente por estar demasiado ocupado contemplando a si mesmo. Havia submergido: fossem quais fossem as dores que o atingiam, os cansaços e abandonos de seu viver, tinha achado naquela sobremesa uma compensação incalculável, ainda que momentânea. O sabor o reconciliava com a ausência de perspectivas daquela tarde carrancuda,  anulava o efeito dos olhares ásperos e da calçada indiferente. Naquele momento, ele e o sorvete se bastavam: dentro daquele instante cabiam os consolos de uma vida inteira.

Nem vi direito como desapareceu. Percebi que o conteúdo do copo plástico tinha quase se acabado, que ele agora sugava as colheradas com mais cuidado ainda, que raspava com diligência o fundo do pequeno recipiente. Mas me distraí em meio à espera pelo ônibus, mergulhei brevemente em pensamentos imprecisos, e quando voltei a buscá-lo com o olhar ele tinha desaparecido. Possivelmente precisava dedicar o restante da tarde a seja lá o que fizesse da vida: seja como for, não demorou-se. Ficou só sua imagem, o negro pobre e obeso de olhar vazio, enchendo a boca com colheradas de sorvete barato. Quando olho o canto onde esteve, é um pouco como se ele ainda me assombrasse.

Como disse, existem coisas muito mais importantes que a política.