sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Sol entre nuvens


Se alguma das pessoas que passavam apressadas por ali tivesse parado por um momento para observá-lo, talvez percebesse que ele estava sangrando. Veria essa testemunha que o sangue escorria dele em grandes filetes, derramando-se pela calçada, formando uma poça que ficava mais e mais volumosa à medida que o tempo ia passando. Poderia ter visto, talvez, que alguns mais distraídos até pisavam no sangue vez por outra, alheios a tudo que não dissesse respeito aos seus próprios problemas, a suas próprias dores e feridas, ao seu próprio sangrar. Seria possível, a esse observador ocasional, notar que a ferida da qual provinha esse sangue estava escondida embaixo das roupas que aquele homem desconhecido vestia, coberta por uma camada de tecidos velhos, sujeira e distanciamento de tudo que diz respeito à vida e ao viver. Perceberia o observador que aquela chaga era do tipo que nenhuma enfermeira poderia tratar, que nenhuma sutura fecharia, cuja dor latejante não poderia ser aliviada com nenhum remédio, pomada ou ungüento. E que, muito mais do que algum exame ou interrogatório, o diagnóstico para a causa de tanta dor só seria preciso caso o interessado superasse as barreiras, visíveis e invisíveis, e olhasse diretamente nos olhos daquele homem. Caso tivesse existido, dentre os tantos caminhantes daquela manhã sem nome e sem tempo, um homem ou mulher capaz de deter sua marcha e olhar nos olhos do ser humano sentado no meio fio, não seria muito difícil ver a alma ferida, o espírito aberto num corte profundo, a consciência desbotada pela dor que surge como um tom de cinza-escuro a cobrir todo o sol daquela manhã. Uma dor tão grande, tão sincera e tão desencantada que, se fosse visível, cobriria de cinza o céu de todos que ali andavam, faria daquela manhã de sol e de vida uma manhã de nuvens pesadas, de céu carrancudo, uma manhã de guarda-chuvas e de mau humor. Uma dor que empestearia o ar, atrairia os ratos, baratas e moscas varejeiras, que deixaria os jovens nervosos e encheria de frio os mais velhos. Porque a dor daquele homem é a dor que move os poetas e loucos, a tristeza sombria que anima os acordes de guitarra, a agonia do que plantam as sementes do sonho irresponsável e colhem um fruto amargo de negativa e azedo de tragédia. Dor que queima por baixo da pele, que atrai tudo para si como buraco negro, que faz da lágrima e do soluço a ante-sala da loucura além de esperança. Uma dor que sangra, silenciosa e implacável, pelo tecido dos anos que se vão sem que ninguém se preocupe em contá-los. Ao que fosse suficiente corajoso para tentar vê-la, eis como a dor daquele homem surgiria, bela como a iminência da morte, terrível e bruta como um diamante que ninguém quer.

Mas nenhuma das pessoas que passou por aquela rua naquela manhã de sol deteve-se para observar o homem sentado ao meio-fio. Todas elas, sem exceção, seguiram seu caminho pelas ruas e calçadas, unidas pela indiferença mútua, compartilhando a bela manhã de sol que nenhuma delas realmente via. Apenas para o homem o céu era nublado, apenas para ele a chuva pesada era iminente, somente ele sentia que naquela rua e naquela vida nunca mais haveria o calor do sol. E ali ficou sentado, aquele mendigo ferido de amor, também ele indiferente aos raios de luz que banhavam a todos, mas não iluminavam ninguém.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Loucos e bêbados brindam ao Deus que está no céu


De uns tempos para cá, a região onde moro em Porto Alegre tem se tornado cada vez mais generosa em figuras que chamaríamos “gente da rua” - ou seja, mendigos, sem-teto, prostitutas e desocupados em geral. Não que eu morasse em alguma espécie de paraíso onde esse tipo de coisa não existisse, mas é visível a presença crescente dos desgarrados em uma área da cidade que costumava ser pouco frequentada por eles. No fundo, é natural: Porto Alegre cresce em direção ao sul, e a metrópole traz consigo aqueles que, a seu modo, sobrevivem melhor do que a maioria de nós no estômago da grande cidade.

Durante algum tempo, um dos meus vizinhos foi um morador de rua que escolheu as quatro ou cinco quadras mais próximas do prédio onde moro como seu pouso habitual. Embora fosse um homem fisicamente saudável, tratava-se visivelmente de uma pessoa que não está no pleno uso de suas faculdades mentais - um maluco, para falarmos de modo mais claro. Não era, no entanto, um louco hostil ou antipático - pelo contrário, até tentava de modo jovial se comunicar com as pessoas que passavam por ele, embora a aspereza de sua voz, a insistência em ligar as idéias com um “né” quase obsessivo e a incoerência de seus assuntos preferenciais geralmente afastassem os transeuntes e impedissem uma conversa mais demorada ou profunda. Sua residência mais fixa ficava nas ruínas do que tinha sido, em tempos idos, a casa de uma amiga da minha avó. As duas se encontravam lá seguidamente para jogar cartas, e cheguei a entrar na casa uma ou duas vezes, antes que a velha moradora morresse, minha vó se mudasse algumas vezes até morrer também e enfim. Aos que perguntassem, dizia que era um "caseiro", tomando conta do terreno para evitar invasões - uma explicação que construiu em sua mente para dar um ar de importância e compromisso à sua condição de vida.

Como muitos outros loucos e desgraçados desta e de outras cidades mundo afora, por algum motivo o cidadão em questão simpatizou comigo. Sempre que me via, aproveitava a deixa para puxar conversa - não muito profunda, muito menos coerente, mas ainda assim uma conversa.

Um dia desses, estava voltando para casa depois de um dia especialmente desgastante de trabalho. Trazia comigo uma sensação bastante ruim, para ser honesto - aqueles momentos em que tudo na vida parece errado e os dias dão a impressão de um arrastar tedioso rumo a lugar nenhum. Andava cabisbaixo, cansado e irritadiço, e ver o vulto do maluco no escuro diante da sua quase-moradia não era exatamente o que eu precisava para me sentir melhor.

Baixei a cabeça, e tentei passar reto por ele sem dar tempo para que me dirigisse a palavra, como já havia dado certo em várias vezes anteriores. Mas quando me aproximei um pouco mais, ele obviamente me viu, e ao invés de falar alguma bobagem sobre o tempo ou de suas tarefas como caseiro do terreno abandonado, ele simplesmente perguntou: “O senhor estuda, né?”.

Olhei de relance para seu rosto, e vi que o homem estava bêbado. Talvez tivesse conseguido uma garrafa de cachaça ou vinho barato, e com ela tinha se embriagado de um modo que me chamou consideravelmente a atenção - de fato, acho que foi a primeira e única vez em que vi o homem bêbado na vida.

Talvez alguns estranhem o fato de eu ter voluntariamente parado no meio de uma rua escura, já tarde da noite, para conversar com um louco bêbado; mas foi o que fiz, acomodando a mochila nos ombros e dizendo que sim, eu tinha sido um estudante até pouco tempo antes, mas a faculdade tinha acabado e eu estava trabalhando, sem frequentar aulas nem nada disso. A partir daí a conversa avançou um pouco, mas não muito - ele perguntou onde eu estudava, disse que jornalismo era “uma profissão importante, né” e mais algumas coisas que não lembro. Quando o silêncio caiu, olhei para o céu estrelado acima de nós, e o homem - com uma perspicácia que talvez não esperemos ver em pessoas que julgamos simplórias ou loucas - disse: “tá bonita a noite, né?”. Eu concordei, e ele aproveitou a deixa para entrar no assunto que de fato o interessava, dizendo “hoje é aniversário da minha avó, sabia?”.

Explicou-me então que a bebedeira que tinha tomado era em homenagem à sua falecida avó - “eu não sou de bebida, né”, lembro dele dizendo, “mas tava me sentindo mal, né, e bebi um pouco, uma garrafinha que eu consegui, né?”. Soube então que o louco que eu geralmente encarava como um pequeno incômodo eventual havia sido criado pela avó paterna, pessoa que ele considerava sua mãe de fato, e a quem tencionava homenagear naquela data. Aparentemente, a mãe biológica não tinha sido exatamente boa para ele, pois em determinado momento ele quase gritou: “minha mãe era a minha vó, porque minha mãe mesmo era uma vagabunda, né, me odiava e eu odiava ela!”.  Fiquei ouvindo, e o homem se emocionou mais ainda, dizendo que já tinha tido “coisas de gente importante” e agora não tinha nada e não se importava com isso, mas sentia saudades de sua avó e queria que ela ainda pudesse estar tomando conta dele. “Mas é assim, né? A vida é assim mesmo”, disse, e subitamente se voltou em direção às ruínas que chamava de casa, virando as costas para mim e murmurando uns “fique com Deus, né? O senhor fique com Deus” enquanto ia em direção à escuridão onde se sentia seguro e onde ninguém o poderia ver.

Achei, no momento, que a súbita retirada tinha sido um gesto de timidez de um homem que se viu prestes a chorar diante de um quase-desconhecido. Fosse como fosse, pensei um bocado no que ele havia me dito, e voltei a pensar bastante nisso nos últimos dias. É que começaram a construir uma nova residência no terreno onde ficava a quase-casa do homem; passo seguidamente lá, e mais de uma vez vi homens trabalhando na limpeza do terreno e na instalação de alicerces para um novo empreendimento qualquer. Foi ontem, passando pelo terreno em questão, que lembrei dessa pequena história e me dei conta de que há tempos não tenho nenhuma notícia do protagonista dela. Desde que ficou definitivamente sem lar ou esconderijo, o maluco que às vezes me parava na rua para conversar simplesmente sumiu. Talvez ele tenha aparecido uma ou duas vezes por ali, mas acho que partiu logo em seguida, em busca de outro lugar onde se sentisse mais à vontade.

E eu fico pensando em como uma pessoa que quase nem pessoa é mais, alguém pelo qual passamos ao largo e tentamos evitar como um incômodo ou uma doença, mesmo assim tem uma história, uma vida, coisas que nos ligam a ela e que, por repugnância ou desprezo, nos recusamos a enxergar. Penso nas muitas vezes que passei por ele rápido para não dar chance de ele falar, ou das outras tantas em que o ouvi rapidamente a contragosto, e em como nunca imaginei que ele talvez pudesse ter tido uma vida “de verdade”, amigos, parentes, amores e uma avó a quem amava do mesmo jeito que eu amo a minha mãe. Alguém tão humano que, diante de uma situação difícil ou de uma lembrança dolorida, simplesmente optou por encher a cara, como tantos de nós mesmos fizemos tantas vezes na vida. Uma pessoa que chamamos de louco, mas que ainda mantém a dignidade de se esconder para chorar no escuro, sozinho, sem esperar que ninguém interceda para ajudá-lo ou consolá-lo. E penso em como os malucos e desgraçados, quando sentem que devem partir, simplesmente o fazem, atendendo às próprias necessidades e urgências, sem dar adeus e sem olhar para trás.

Aos que sofrem, restam poucos consolos. Talvez um deles seja justamente o de achar, na multidão de olhos que não o veem e de ouvidos que não o ouvem, alguém que retribua suas tentativas de ser visto e ouvido com um pouco que seja de atenção. Quanto a mim, carrego essa história no coração como uma lição. Tento com dedicação cada vez maior não ser o cego que olha para o outro lado, o surdo que finge não ouvir. Porque sei que essa cegueira e essa surdez são, no fundo, o grande problema do mundo que construímos para nós mesmos. E mais importante que saber é nunca esquecer das coisas que a gente sabe.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Sobre encontros que nunca serão

Quantas vezes já terei eu a visto? Quantas vezes terão meus olhos passado por ela em alguma esquina sem nome, em alguma celebração sem motivo, em alguma noite que a memória esqueceu e os calendários não mais recordam? Quantas vezes terei eu pensado que moça bonita, que bonita a luz do sol em seus cabelos, que lindo ar de desprezo e que belo dar de ombros e que belo caminhar ou qualquer coisa do tipo - qualquer coisa igualmente tola, breve e pueril?

Sei que muito andamos pelas mesmas ruas, sentamos na mesmas mesas, ouvimos as mesmas músicas e as mesmas vozes. Quantas vezes teremos brindado em mesas vizinhas, a poucos palmos de distância um do outro? Que estranha barreira é essa que faz duas pessoas que se precisam, que necessitam e anseiam e ofegam uma pela outra, estarem tão próximas que basta um olhar, um toque acidental, um sorriso para a salvação - e o olho não olha, a pele não toca, a alma não sorri porque nem sabe ser possível o sorriso? Será mesmo que é necessário tanto poder ser antes que a barreira caia, que a verdade surja, que a distância se torne subitamente frágil como gelo fino?

Eis minha mente, amigos. Mais do que o fascínio do encontro, pesa sobre meu pensar a incerteza do encontro que se perdeu e, mesmo sendo, nunca será.