[caption id="attachment_494" align="alignnone" width="1600"] Foto: Yamini Benites[/caption]
Eu acho que 2013 é um daqueles anos que não acabará tão cedo. Vocês sabem: existem momentos em nossas vidas que, pela profundidade de emoções que evocam, pelos inúmeros desdobramentos que geram e pelas reflexões que ensejam, acabam marcados com especial destaque na nossa história pessoal ou coletiva. Embora gostemos da sensação de controle que nos traz um calendário exato, em que um dia sucede o outro e assim surgem meses que geram anos e décadas pela vida afora, a verdade é que o tempo do mundo é bem diferente do nosso e em geral imprevisível. Espalha acontecimentos importantes por períodos tão longos que tudo se torna quase imperceptível, ao mesmo tempo que concentra grandes descargas emocionais em poucos instantes, como o vento que sopra suave trazendo as nuvens de grande tempestade. O mundo, como sabemos, não se presta muito a retrospectivas.
Sobrevivemos todos, não é? Porque houve momentos em que 2013 parecia que não ia acabar nunca. A passagem do tempo, geralmente uniforme, ganhou momentos de estranha densidade, como se os relógios andassem mais lentos, os passos fossem mais demorados, os dias extensos, as noites quase eternas. Eu andava pela João Pessoa molhada de chuva, vendo ao longe a fumaça e as explosões e pensando meu deus isso nunca vai acabar. As semanas explodiam nas segundas e quintas-feiras, enquanto os demais dias serviam de caldeirão onde o extrato de incontáveis revoltas cozinhava em fogo alto até a próxima explosão. E logo tudo era barulho e gritaria, tudo era correr e esconder-se e andar um pouco mais, sempre em frente. Uma gestação ruidosa e tensa, de algo que ninguém tinha certeza do que pudesse ser. Acabou a fúria, acabou a gestação, seguimos aguardando o parto. Tudo parou, mas nada está encerrado. O mundo novo só nasce depois que o velho já cansou de agonizar.
E eis o que todos somos neste 2013 que, mesmo encerrado, não acaba nunca: atores e testemunhas da lenta agonia de um mundo que deve morrer. Entre tantas dúvidas e incoerências, resta-nos o toque reconfortante de uma verdade coletiva - o mundo que existe não serve mais. E isso todos percebem, mesmo os que juram não perceber coisa alguma. É esse o extrato de todo pesadelo, de toda fobia inexplicável, de todo choro e toda fome e toda tristeza, inadequação, sofrimento e solidão: algo está muito errado no mundo. E em 2013 essa certeza, que não era nada nova, cristalizou-se entre nós. Não é algo que se resolva mudando o partido que está no governo ou colocando criminosos na cadeia: é a angústia coletiva de quem, sentindo tudo errado, não sabe bem por onde começar a mudança. Sabemos todos que a aurora do mundo em que vivemos há muito já passou - alguns sentem na carne, outros no espírito, mas quem sente sabe que sente e não pode mais fingir não sentir nada. Claro que para muitos nada disso faz sentido, uma vez que nada sentem e nada enxergam. Compreensível: não é em casa ou pela televisão que se verá o Fim do Mundo.
Houve muito fogo em 2013. Houve choro e houve dor, houve horror e sangue, mentira e contradição. Houve raiva. Mas é a raiva que nos faz dizer basta, que nos move a exigir algo além. É a raiva que nos impele para a frente - e é apenas a partir do movimento que podemos achar o amor perdido nas esquinas da conveniência e da conformidade. Raiva é o amor que não encontrou sua trilha, e nesse sentido 2013 foi um ano belíssimo: cheio de raiva, com a promessa de incontáveis trilhas de amor.
Fatos não interessam. São pequenas marcas na trilha arenosa, pegadas um pouco mais profundas talvez, mas que logo serão cobertas pelos passos dos que virão. O que importa é a trilha - e essa todos os pés constroem juntos. Falo de trilhas, e é por isso que de fatos e acontecimentos nada menciono por aqui.
E que efeitos teve 2013 sobre mim? Nenhum, e inúmeros. Tudo mudou, mas nada é diferente. Ao contrário: a trilha parece mais clara agora, mais nítida e mais convidativa ao passo. Ainda tateio no escuro (e quem de nós está livre disso?), mas a noite agora é menos densa, insinuam-se os primeiros raios de luz. Não temo os tropeços e quedas; resta, portanto, andar. Se eu fosse fazer alguma ou muitas resoluções pontuais, creio que todas remeteriam ao mesmo centro: há um caminho, já o enxerguei, por ele devo andar. É apenas isso que peço a mim mesmo: não temer os passos que virão. E apreciarei toda a companhia que a vida colocar a meu lado nessa jornada.
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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
domingo, 22 de dezembro de 2013
Um espresso, duas moças, três rapazes (e água mineral)
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_622" align="alignleft" width="300"] Anders Fredenslund / Flickr[/caption]
Resolvo fazer uma pausa na tarde para tomar um café. Os cafés, como muitos sabem, são lugar convidativo para os escritores e farsantes: o fluxo de pessoas estimula a imaginação flutuante, e o ambiente favorece a auto-ilusão de quem, tentando iludir aos demais, triunfa em iludir a si mesmo. No momento, contudo, convencer a mim mesmo de que faz sentido escrever é uma preocupação não mais que acessória - muito mais me interessa o lugar à sombra, o espresso sem açúcar e a pausa necessária entre o vir de algum lugar e o seguir em frente.
Peço um espresso e uma água mineral. O café chega rápido e cheiroso; esquecem, porém, de me trazer a água. Ah sim, desculpe, só um instante, diz a moça que me atende, antes de sumir na cozinha por longos minutos.
Não me zango, mas é uma pena. Prezo muito a água mineral para acompanhar meu espresso, especialmente em dias de muito calor.
Duas moças sentam em uma mesa próxima. Diria que fazem uma pausa no trabalho: ambas usam crachás, embora eu não consiga ler o que está escrito neles. Tinham um assunto em andamento, do qual tomo conhecimento assim que ocupam seus lugares e, pela proximidade das mesas, se torna impossível não ouvi-las.
"Sabe quem está apaixonado?", diz uma delas. "O Luan!"
Nem imagino quem Luan seja, mas a interlocutora parece surpresa com a informação - e de tal forma reage à notícia que eu acabo ficando interessado também. Aparentemente, Luan encontrou a moça pela qual apaixonou-se ao acaso, em alguma festa íntima ou comemoração entre colegas. Não entendo bem os motivos, mas há algo que impede Luan de assumir o relacionamento: a moça que conta a história (e que parece ter ouvido a confissão do próprio Luan em determinado ponto) diz que ambos desejam estar juntos, mas não sentem-se capazes de fazê-lo e tampouco conseguem se distanciar um do outro. "É meio uma história inacabada, como tu e o Lucas", arremata.
A outra moça reage de forma neutra à comparação. Pelo jeito, a história complicada entre ela e Lucas não é segredo entre as duas amigas. "Às vezes, tenho vontade de ligar para ele e marcar alguma coisa, só para acabar tudo de uma vez", confessa a moça que tem uma história inacabada com Lucas. Não é uma moça solitária, porém: logo começa a falar de sua história com outro rapaz, chamado Erick, a quem não consegue dedicar tanto carinho e consideração quanto gostaria justamente porque ainda tem Lucas no pensamento.
Faço um gesto à moça que serve o café. Ocupada com outros clientes, ela infelizmente não me vê. É pena: tenho sede. Chego a cogitar erguer-me e ir até o balcão em busca de água.
Não levanto, porém. Fico sentado. Escutando as duas moças que falam, sentadas em um ângulo que me permite ouvi-las, mas que dificulta e transforma em espalhatosa qualquer tentativa de enxergá-las.
A moça que falava de Luan agora apenas escuta: quem fala é a moça que tem uma história mal resolvida com Lucas. Comenta vivamente seu relacionamento com Erick - um rapaz de quem ela aparentemente gosta bastante, mas que sofre de insegurança e seguidamente deixa-se levar por esse sentimento, cometendo gestos de insensibilidade e grosseria. Conta um incidente no aeroporto: o rapaz pediu que ela comprasse uma água tônica, ela equivocou-se e comprou um outro tipo de bebida, o que deixou Erick bastante irritado. "Me encheu de osso de cima a baixo", enfatiza, enquanto sua amiga solta exclamações de surpresa e indignação. Briga que os manteve em silêncio até depois do embarque, logo antes da decolagem. O clima ruim entre ambos, conta a moça, encerrou-se enquanto o avião movia-se na pista e Erick, de surpresa, pôs sua mão sobre a dela. "Pega na minha mão? Eu tô com medo", teria dito o rapaz.
Chega a água, assim mesmo de surpresa. Agradeço, sirvo o copo e tomo um longo gole, cheio de gratidão. Processo rápido, mas longo o suficiente para me distrair da conversa na mesa ao lado - de tal forma que a perda acaba sendo definitiva. Já não falam sobre Erick nem sobre Lucas e muito menos sobre Luan: estão ambas de pé, rumando ao caixa, preparadas para ir embora.
Não há um final para essa história: simplesmente fiquei sentado ali, refletindo um pouco sobre esse estranho e descosturado diálogo enquanto os minutos passavam sem muita pressa por mim. Logo a vida me puxou de volta e ficou para trás o café, a conversa entre as amigas, os homens que a motivaram e todo o resto. Pois assim são todas as conversas ouvidas ao acaso nas esquinas da vida: referem-se a tudo, sem que tratem exatamente de coisa alguma. E surgem do nada, como o amor, podendo sumir igualmente de surpresa. Há que se ter os ouvidos abertos, portanto. E tomar notas sempre que possível.
Resolvo fazer uma pausa na tarde para tomar um café. Os cafés, como muitos sabem, são lugar convidativo para os escritores e farsantes: o fluxo de pessoas estimula a imaginação flutuante, e o ambiente favorece a auto-ilusão de quem, tentando iludir aos demais, triunfa em iludir a si mesmo. No momento, contudo, convencer a mim mesmo de que faz sentido escrever é uma preocupação não mais que acessória - muito mais me interessa o lugar à sombra, o espresso sem açúcar e a pausa necessária entre o vir de algum lugar e o seguir em frente.
Peço um espresso e uma água mineral. O café chega rápido e cheiroso; esquecem, porém, de me trazer a água. Ah sim, desculpe, só um instante, diz a moça que me atende, antes de sumir na cozinha por longos minutos.
Não me zango, mas é uma pena. Prezo muito a água mineral para acompanhar meu espresso, especialmente em dias de muito calor.
Duas moças sentam em uma mesa próxima. Diria que fazem uma pausa no trabalho: ambas usam crachás, embora eu não consiga ler o que está escrito neles. Tinham um assunto em andamento, do qual tomo conhecimento assim que ocupam seus lugares e, pela proximidade das mesas, se torna impossível não ouvi-las.
"Sabe quem está apaixonado?", diz uma delas. "O Luan!"
Nem imagino quem Luan seja, mas a interlocutora parece surpresa com a informação - e de tal forma reage à notícia que eu acabo ficando interessado também. Aparentemente, Luan encontrou a moça pela qual apaixonou-se ao acaso, em alguma festa íntima ou comemoração entre colegas. Não entendo bem os motivos, mas há algo que impede Luan de assumir o relacionamento: a moça que conta a história (e que parece ter ouvido a confissão do próprio Luan em determinado ponto) diz que ambos desejam estar juntos, mas não sentem-se capazes de fazê-lo e tampouco conseguem se distanciar um do outro. "É meio uma história inacabada, como tu e o Lucas", arremata.
A outra moça reage de forma neutra à comparação. Pelo jeito, a história complicada entre ela e Lucas não é segredo entre as duas amigas. "Às vezes, tenho vontade de ligar para ele e marcar alguma coisa, só para acabar tudo de uma vez", confessa a moça que tem uma história inacabada com Lucas. Não é uma moça solitária, porém: logo começa a falar de sua história com outro rapaz, chamado Erick, a quem não consegue dedicar tanto carinho e consideração quanto gostaria justamente porque ainda tem Lucas no pensamento.
Faço um gesto à moça que serve o café. Ocupada com outros clientes, ela infelizmente não me vê. É pena: tenho sede. Chego a cogitar erguer-me e ir até o balcão em busca de água.
Não levanto, porém. Fico sentado. Escutando as duas moças que falam, sentadas em um ângulo que me permite ouvi-las, mas que dificulta e transforma em espalhatosa qualquer tentativa de enxergá-las.
A moça que falava de Luan agora apenas escuta: quem fala é a moça que tem uma história mal resolvida com Lucas. Comenta vivamente seu relacionamento com Erick - um rapaz de quem ela aparentemente gosta bastante, mas que sofre de insegurança e seguidamente deixa-se levar por esse sentimento, cometendo gestos de insensibilidade e grosseria. Conta um incidente no aeroporto: o rapaz pediu que ela comprasse uma água tônica, ela equivocou-se e comprou um outro tipo de bebida, o que deixou Erick bastante irritado. "Me encheu de osso de cima a baixo", enfatiza, enquanto sua amiga solta exclamações de surpresa e indignação. Briga que os manteve em silêncio até depois do embarque, logo antes da decolagem. O clima ruim entre ambos, conta a moça, encerrou-se enquanto o avião movia-se na pista e Erick, de surpresa, pôs sua mão sobre a dela. "Pega na minha mão? Eu tô com medo", teria dito o rapaz.
Chega a água, assim mesmo de surpresa. Agradeço, sirvo o copo e tomo um longo gole, cheio de gratidão. Processo rápido, mas longo o suficiente para me distrair da conversa na mesa ao lado - de tal forma que a perda acaba sendo definitiva. Já não falam sobre Erick nem sobre Lucas e muito menos sobre Luan: estão ambas de pé, rumando ao caixa, preparadas para ir embora.
Não há um final para essa história: simplesmente fiquei sentado ali, refletindo um pouco sobre esse estranho e descosturado diálogo enquanto os minutos passavam sem muita pressa por mim. Logo a vida me puxou de volta e ficou para trás o café, a conversa entre as amigas, os homens que a motivaram e todo o resto. Pois assim são todas as conversas ouvidas ao acaso nas esquinas da vida: referem-se a tudo, sem que tratem exatamente de coisa alguma. E surgem do nada, como o amor, podendo sumir igualmente de surpresa. Há que se ter os ouvidos abertos, portanto. E tomar notas sempre que possível.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
Notas de rodapé: Porto Alegre, dezembro e suas ausências
Postado por
Igor Natusch
Quando o ano termina, Porto Alegre mergulha em uma quietude que é toda sua. Há, como bem sabemos, os que partem e os que ficam. Alguns rumam ao litoral ou além, buscando ambientes fora de sua rotina, lugares relaxantes ou extraordinários onde possam vivenciar o Natal e Ano-Novo de forma mais prazerosa para si. A mim não cabe qualquer julgamento a esse respeito e nem teria o menor interesse em fazê-lo, caso me coubesse. Mas estou certamente inserido em outro grupo, o daqueles que permanecem na metrópole quando os demais se vão - pessoas e famílias que não têm para onde ir, que ainda estão presas a compromissos profissionais ou familiares, ou que talvez apenas julguem que os eventuais benefícios de um deslocamento não valem o esforço.
Estou entre os que ficam e, sendo o tipo de pessoa que sou, me é natural observar os espaços vazios que surgem no meio do cinza. São numerosas e interessantes as ausências que saltam aos olhos em uma cidade que espera o ano acabar. Estão nos assentos livres nos ônibus, nas lojas que fecham mais cedo, no sinal vermelho sem carros diante de si. Há uma ausência de pessoas, é certo, mas também uma ausência de objetivos: ninguém espera muito mais do ano senão que ele acabe, de modo que nos limitamos a administrar coletivamente o fluxo das horas rumo ao giro do calendário. São sobreviventes, todos os que testemunham uma virada de ano; mas os que aguardam por ela nas ruas semidesertas de uma metrópole sobrevivem a algo além.
Não há exagero em dizer que existe uma camaradagem surda entre os moradores da Porto Alegre de fins de dezembro. De fato, olhamos o outro que passa por nós na rua como um companheiro de causa, um resistente, alguém como nós. Estamos unidos na permanência; mesmo distantes, somos mais próximos. E essa certeza difícil de explicar nos aproxima da própria cidade, como se nosso permanecer fosse uma prova não apenas de lealdade, mas de um laço de parentesco, uma irmandade talvez. Nossa conveniência se torna prova de convicção: mentimos uns aos outros que não estaríamos em outro lugar mesmo que pudéssemos. Amamos Porto Alegre de verdade, é o que dizemos uns aos outros nas ruas da grande cidade esvaziada. Somos fiéis. É uma ilusão reconfortante - e a cultivamos com tanto carinho que ela chega a ganhar um convincente invólucro de verdade.
Imagino que as cidades menores recebam um número considerável de pessoas nesses dias de encerramento. São os filhos que foram para longe, voltando ao aconchego da terra onde nasceram, mesmo que às vezes nem seja tão aconchegante assim. As cidades turísticas, que puxam para si os desgarrados e os fugitivos, também incham durante as festas de fim de ano. Às metrópoles que não se prestam ao turismo, com Porto Alegre, resta a temporária calmaria e a presença reconfortante dos que não partiram. É mais democrática, a Porto Alegre de fim de ano: ressaltam-se os filhos humildes, os bonés e bermudas, os chinelos de dedo. Fica mais simples, espontânea. Mais bonita, inclusive.
Ainda não é tempo, é claro. As pessoas ainda compram presentes de Natal: imagino que muitas irão à praia no fim de semana, mas ainda devemos ter ruas farfalhando de vida até a terça-feira pelo menos. Depois sim, a cidade será toda nossa. Estarei lá, nas esquinas vazias de gente, tomando notas.
Estou entre os que ficam e, sendo o tipo de pessoa que sou, me é natural observar os espaços vazios que surgem no meio do cinza. São numerosas e interessantes as ausências que saltam aos olhos em uma cidade que espera o ano acabar. Estão nos assentos livres nos ônibus, nas lojas que fecham mais cedo, no sinal vermelho sem carros diante de si. Há uma ausência de pessoas, é certo, mas também uma ausência de objetivos: ninguém espera muito mais do ano senão que ele acabe, de modo que nos limitamos a administrar coletivamente o fluxo das horas rumo ao giro do calendário. São sobreviventes, todos os que testemunham uma virada de ano; mas os que aguardam por ela nas ruas semidesertas de uma metrópole sobrevivem a algo além.
Não há exagero em dizer que existe uma camaradagem surda entre os moradores da Porto Alegre de fins de dezembro. De fato, olhamos o outro que passa por nós na rua como um companheiro de causa, um resistente, alguém como nós. Estamos unidos na permanência; mesmo distantes, somos mais próximos. E essa certeza difícil de explicar nos aproxima da própria cidade, como se nosso permanecer fosse uma prova não apenas de lealdade, mas de um laço de parentesco, uma irmandade talvez. Nossa conveniência se torna prova de convicção: mentimos uns aos outros que não estaríamos em outro lugar mesmo que pudéssemos. Amamos Porto Alegre de verdade, é o que dizemos uns aos outros nas ruas da grande cidade esvaziada. Somos fiéis. É uma ilusão reconfortante - e a cultivamos com tanto carinho que ela chega a ganhar um convincente invólucro de verdade.
Imagino que as cidades menores recebam um número considerável de pessoas nesses dias de encerramento. São os filhos que foram para longe, voltando ao aconchego da terra onde nasceram, mesmo que às vezes nem seja tão aconchegante assim. As cidades turísticas, que puxam para si os desgarrados e os fugitivos, também incham durante as festas de fim de ano. Às metrópoles que não se prestam ao turismo, com Porto Alegre, resta a temporária calmaria e a presença reconfortante dos que não partiram. É mais democrática, a Porto Alegre de fim de ano: ressaltam-se os filhos humildes, os bonés e bermudas, os chinelos de dedo. Fica mais simples, espontânea. Mais bonita, inclusive.
Ainda não é tempo, é claro. As pessoas ainda compram presentes de Natal: imagino que muitas irão à praia no fim de semana, mas ainda devemos ter ruas farfalhando de vida até a terça-feira pelo menos. Depois sim, a cidade será toda nossa. Estarei lá, nas esquinas vazias de gente, tomando notas.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
Breve relato de um sonho com uma praça
Postado por
Igor Natusch
Eu era um estudante. É uma das questões centrais mais recorrentes nos meus sonhos: estar no colégio ou na faculdade, no meio de algum curso ou retornando aos estudos, dentro de sala de aula ou me dirigindo para lá. Nunca entendi bem o que isso tem de tão marcante, de tão simbólico para mim ao ponto de eu sempre retornar a esse ambiente. De qualquer modo, era um estudante que tinha saído da escola para fazer qualquer coisa que não lembro o que fosse - eu carregava uma sacola de plástico, de modo que imagino agora, desperto, que eu tivesse feito compras em algum mercado ou qualquer coisa nessa linha. Tendo feito seja lá o que eu tinha me proposto a fazer fora da escola, estava na hora de retornar para lá - e eis o conflito na minha situação, já que eu não fazia ideia de qual fosse o caminho de volta.
É até um pouco difícil explicar a situação agora que estou acordado, ainda que no sonho ela fizesse sentido suficiente para que eu sequer a questionasse. Eu tinha certeza de estar perto da minha escola, mas não sabia onde estava - ou, melhor dizendo, tinha esquecido tudo sobre aquele lugar, em uma espécie de amnésia espacial. Para mim, era como se nunca tivesse estado lá - mesmo assim, eu sabia que já tinha andado muitas vezes por aquelas ruas, visto aqueles lugares, as pessoas. Apenas tinha esquecido tudo. E eu tinha plena consciência do meu esquecimento, ainda que não estivesse nervoso, apenas um pouco apreensivo pelo risco de não me deixarem entrar se eu me atrasasse demais. Era um estrangeiro em uma área que, ainda que desconhecida, me era bastante familiar.
Fui andando. As ruas eram de paralelepípedos; não havia prédios, apenas casas de alvenaria, humildes mas não pobres, com pátios pequenos de grama bem cortada. As calçadas eram feitas de grandes pedras de basalto, e estavam cobertas de folhas. Era outono? Não podia ser: as árvores estavam cheias de vida, transbordando de frutas. Pelo caminho, passo por uma praça circular, que ficava no meio do cruzamento de duas ruas um pouco mais largas. Nesta praça havia uma amoreira enorme, com frutas muito vistosas, maiores do que qualquer porção de amoras que eu tivesse visto antes. Debaixo dela, grupos de crianças brincavam, correndo, gritando, rindo. Comendo amoras que caíam no chão. Era quase uma chuva, que salpicava o chão de grama rala com pontos roxo-avermelhados. Era impossível atravessar a praça sem passar debaixo da árvore - e era impossível seguir procurando meu caminho se não passasse por ali. Fui caminhando o mais rápido que pude, tentando não ser atingido pelas amoras enormes que caíam - não queria manchar a roupa e assistir sujo as próximas aulas. Não me ocorreu provar nenhuma das frutas - o que agora, desperto, eu lamento um pouco.
Cruzei a praça e segui caminhando, metade guiado pelo instinto, metade a esmo. Sentia que não estava longe - mas, ao mesmo tempo, sentia que minha margem de tempo estava acabando, então caminhava um pouco mais rápido, mais atento aos detalhes. De repente, enxergo uma banca de revistas na esquina à frente e imediatamente fico tranquilo. Eu lembrava bem daquela banca: era só dobrar à esquerda naquela esquina, caminhar uns 50 metros no máximo e estaria na frente do prédio da escola. Tinha achado meu caminho.
Caminhei os último metros intencionalmente devagar, encenando uma esquisita peça de preguiça.
Meus colegas estão na frente do prédio, conversando. Junto-me a eles em silêncio, sem comentários, como se o meu retorno fosse casual - como se estar ali, entre colegas que eu sabia meus mas não lembrava de ter visto antes, fosse a coisa mais natural do mundo. Um deles me dirige a palavra, e aponta para uma terceira pessoa quando diz:
- Vocês combinam isso? Sempre chegam na mesma hora, mas por caminhos diferentes.
Respondo, fingindo o ar mais despreocupado do mundo, concentrado em meu papel:
- Isso é saber fazer as coisas, cara.
E entramos no prédio enquanto eu volto para a consciência, o mundo material começando a se insinuar por entre as pálpebras.
É até um pouco difícil explicar a situação agora que estou acordado, ainda que no sonho ela fizesse sentido suficiente para que eu sequer a questionasse. Eu tinha certeza de estar perto da minha escola, mas não sabia onde estava - ou, melhor dizendo, tinha esquecido tudo sobre aquele lugar, em uma espécie de amnésia espacial. Para mim, era como se nunca tivesse estado lá - mesmo assim, eu sabia que já tinha andado muitas vezes por aquelas ruas, visto aqueles lugares, as pessoas. Apenas tinha esquecido tudo. E eu tinha plena consciência do meu esquecimento, ainda que não estivesse nervoso, apenas um pouco apreensivo pelo risco de não me deixarem entrar se eu me atrasasse demais. Era um estrangeiro em uma área que, ainda que desconhecida, me era bastante familiar.
Fui andando. As ruas eram de paralelepípedos; não havia prédios, apenas casas de alvenaria, humildes mas não pobres, com pátios pequenos de grama bem cortada. As calçadas eram feitas de grandes pedras de basalto, e estavam cobertas de folhas. Era outono? Não podia ser: as árvores estavam cheias de vida, transbordando de frutas. Pelo caminho, passo por uma praça circular, que ficava no meio do cruzamento de duas ruas um pouco mais largas. Nesta praça havia uma amoreira enorme, com frutas muito vistosas, maiores do que qualquer porção de amoras que eu tivesse visto antes. Debaixo dela, grupos de crianças brincavam, correndo, gritando, rindo. Comendo amoras que caíam no chão. Era quase uma chuva, que salpicava o chão de grama rala com pontos roxo-avermelhados. Era impossível atravessar a praça sem passar debaixo da árvore - e era impossível seguir procurando meu caminho se não passasse por ali. Fui caminhando o mais rápido que pude, tentando não ser atingido pelas amoras enormes que caíam - não queria manchar a roupa e assistir sujo as próximas aulas. Não me ocorreu provar nenhuma das frutas - o que agora, desperto, eu lamento um pouco.
Cruzei a praça e segui caminhando, metade guiado pelo instinto, metade a esmo. Sentia que não estava longe - mas, ao mesmo tempo, sentia que minha margem de tempo estava acabando, então caminhava um pouco mais rápido, mais atento aos detalhes. De repente, enxergo uma banca de revistas na esquina à frente e imediatamente fico tranquilo. Eu lembrava bem daquela banca: era só dobrar à esquerda naquela esquina, caminhar uns 50 metros no máximo e estaria na frente do prédio da escola. Tinha achado meu caminho.
Caminhei os último metros intencionalmente devagar, encenando uma esquisita peça de preguiça.
Meus colegas estão na frente do prédio, conversando. Junto-me a eles em silêncio, sem comentários, como se o meu retorno fosse casual - como se estar ali, entre colegas que eu sabia meus mas não lembrava de ter visto antes, fosse a coisa mais natural do mundo. Um deles me dirige a palavra, e aponta para uma terceira pessoa quando diz:
- Vocês combinam isso? Sempre chegam na mesma hora, mas por caminhos diferentes.
Respondo, fingindo o ar mais despreocupado do mundo, concentrado em meu papel:
- Isso é saber fazer as coisas, cara.
E entramos no prédio enquanto eu volto para a consciência, o mundo material começando a se insinuar por entre as pálpebras.