segunda-feira, 19 de maio de 2014

Carona

[caption id="attachment_764" align="alignright" width="200"]Foto: Travis Forsyth Foto: Travis Forsyth[/caption]

O trem ia. A vida seguia.

Eu voltava. O vagão vinha cheio de vida - rostos que sentavam lado a lado, expressões cansadas agarradas nas barras de metal. O trem balançava um pouco; o sentimento, porém, era de que tudo estava em suspenso, como se o mundo todo fosse aquele vagão distraído, pensando em nada além dos próprios problemas. Eu estava entre os que iam de pé, uma mão na barra de ferro sobre a minha cabeça, a outra no bolso da jaqueta, uma música desconhecida nos ouvidos. Os lábios em silêncio.

Sinto um pequeno movimento na minha mão. Algo como uma cócega que se desloca. Volto o olhar: é uma aranha. Uma pequena aranha marrom-claro, de pernas curtas, que parecia um tanto confusa enquanto tentava superar os obstáculos capilares das costas de minha mão. Acho que tinha descido do teto do trem. Fiquei, é claro, um pouco surpreso com a inesperada interferência aracnídea no meu final de manhã, mas não cheguei a sentir qualquer sobressalto - além de pequena, a aranha não dava o menor sinal de hostilidade, parecendo tão preocupada com a própria vida quanto todos os outros passageiros daquele vagão. Felizmente, não foi necessária nenhuma atitude brusca contra o diminuto animal: encaminhou-se sabiamente em direção a um de meus dedos, e não foi necessário mais que um breve movimento de pulso para que se reacomodasse com alguma segurança na superfície lisa da barra de metal.

Mais pessoas embarcaram. Três jovens de roupas coloridas, usando bonés que imagino que estejam na moda, colocaram-se ao meu lado, de pé, conversando animadamente. Um deles coloca a mão na barra de ferro e por muito pouco não esmaga a aranha: tivesse fechado o punho de todo, ao invés de apenas sustentar-se pelos dedos sem agarrar de fato a barra, e o aracnídeo certamente seria fulminado. Nenhuma fatalidade se deu, porém: a aranha seguiu viva, o rapaz seguiu alheio à existência da criaturinha, e eu fiquei contemplando a cena meio de soslaio, tentando não ser percebido, interessado no desfecho daquele pequeno e inusitado drama de vida e morte.

Mesmo tendo escapado da morte certa, o bicho seguia alheio ao que ocorria a seu redor. Caminhava agora um pouco mais devagar, sem realmente sair da posição onde se encontrava, como quem pondera o que fazer a seguir. De repente, decidiu-se. A teia era invisível, mas o bailado do minúsculo corpo praticamente solto no espaço era inconfundível. Descia lentamente a aranha rumo a lugar nenhum, enquanto logo abaixo dela o rapaz que instantes antes quase a tinha esmagado balançava o corpo para lá e para cá, empolgado com os rumos da conversa. O choque era questão de instantes, de milímetros.

E então pousou a aranha, convicta, no boné do cidadão.

Fez o restante da viagem ali, incógnita, sem chamar atenção nem do rapaz que a dava carona nem dos outros dois jovens que conversavam com ele. Fiquei controlando seus movimentos, completamente envolvido com a situação, temendo que o aracnídeo não conseguisse concluir a viagem. Movimentou-se bastante, na verdade: ia e vinha pela parte superior do boné de cor escura, foi até a aba, voltou. O jovem chegou a mexer brevemente na aba do boné, mas de forma que não colocou em risco a integridade física do pequeno animal que carregava. Tinha achado, no meio da série de criaturas gigantescas que talvez nem seja capaz de compreender minimamente, um campo de pouso - e ali ficou, em inusitada segurança enquanto alguns iam, outros voltavam e todos prosseguiam suas vidas nas mais insuspeitadas direções.

Ao fim da linha, todos desembarcamos. Consegui acompanhar os rumos da aranha e de seu insuspeitado meio de transporte por um trecho muito curto: descemos por escadas diferentes, e quando cruzei as catracas de saída não fui capaz de localizá-los. Seja como for, deduzi, as chances de sobrevivência do bicho aumentavam muito na medida em que ele estivesse na rua. Ele estaria bem, ou ao menos tentei convencer a mim mesmo disso. Do lado de fora, fazia um sol enorme, um sol imenso - e era agradável o sol depois da temporada dentro do trem, da viagem cercada por rostos sem emoção. Para todos os seres vivos, de todas as espécies.

domingo, 18 de maio de 2014

Ensaio sobre o que resta ser dito

Seria difícil escolher o que eu diria, se tivesse a chance. Trago em mim uma enorme coleção de coisas não feitas, palavras não pronunciadas, gestos que só fiz em minha imaginação. Tenho a língua afiada com argumentos que só me ocorreram horas, dias, semanas depois do instante decisivo. Escolher, em meio a esse enorme repertório de possibilidades, a frase perfeita e o conjunto mais adequado de palavras: este seria um desafio imenso, quase impeditivo. Mas é o que todos somos, no fim das contas: o resultado das coisas que não foram, mas que poderíamos ter sido. Se eu digo, já não mais existo: surge um outro, alguém que não era sequer possível antes daquela frase, alguém que está indefeso no mundo e sobre o qual não tenho mais controle algum. Eu apenas sou na medida em que não me permito ir além. Conheço minhas fronteiras. O que não fiz permanece dentro de mim, e apenas assim pode ser eterno. Recordo cada detalhe: quem mais poderia apreciar com tanta paixão a beleza dessas palavras que nunca encontraram voz? Amei de forma tão sincera nesses silêncios! Senti escapar entre os dedos aquilo que mais desejava - e nesse momento tudo foi mais belo, mais intenso. Na inexistência encontrei a eternidade.

E ainda assim gostaria de esmagá-la. Eis a dor eterna do humano: quer ser eterno, mas a eternidade o sufoca. Conheço minhas fronteiras - elas me oprimem, esmagam-me além do que posso suportar. É o que todos somos, no fim das contas: o resultado das fronteiras que construímos com afinco e que ansiamos profundamente por destroçar. Agir é conclamar a destruição. O movimento, uma vez feito, não pode mais ser aperfeiçoado na imaginação, na fantasia cada vez mais perfeita; cada gesto é um mergulhar na mortalidade. Diante da segurança da vida eterna, ansiamos por arriscar a própria vida. Quero colocar tudo a perder. Mas que palavras diria eu, se tivesse a chance?

Lá fora, a chuva insinua-se. Do lado de dentro das minhas fronteiras, as paredes são frias, o quarto é estreito. Mal consigo ficar de pé.

E então me ocorre. Não vá embora, sopra um fiapo de voz entre meus lábios. É o que eu diria diante do abismo. Não vá embora.

Acende-se uma luz. É como estrela. No céu acima de mim, vagarosamente, a chuva se desfaz.

sábado, 17 de maio de 2014

Óbito

não há mais tempo
para nada.

o tempo acabou.

descanse
em paz.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Relato de um sonho sobre uma reportagem

Eu estava trabalhando como repórter. Havia uma ocupação de espaço público em andamento - uma grande praça semi-urbanizada com diferentes níveis e ambientes, com áreas de muito verde e uma espécie de largo central. Um esforço policial de desocupação estava prestes a acontecer, e eu estava lá para a cobertura da coisa toda. Ramiro, fotógrafo do Sul21, estava em algum lugar também, mas eu não fazia ideia de onde. Era madrugada e chovia muito, muito mesmo - um temporal horroroso, de gotas enormes, capaz de deixar alguém encharcado em questão de segundos.

O clima era estranho, um misto de tensão e tentativas de descontrair. Eu tinha chegado um pouco atrasado; por algum motivo, estava hospedado em um hotel contíguo ao parque, de forma que basicamente desci do quarto direto para o olho do furação - sem capa de chuva, sem equipamentos adequados, apenas um bloco de notas e um lápis. Os policiais recomendavam que todos os jornalistas ficassem na mesma área, supostamente mais segura - um ambiente amplo, mas horrivelmente escuro e onde era praticamente impossível enxergar qualquer coisa. A chuva era tanta que fazia uma espécie de neblina, e todas as luzes estavam apagadas naquela área; a única iluminação vinha de postes de rua, distantes e indistintos. Além disso, para que não tomássemos chuva, a área estava coberta por uma espécie de lona, que complicava ainda mais a luminosidade. Os colegas jornalistas pareciam satisfeitos em estarem ali, sem tomar chuva, mesmo que fosse impossível ver qualquer coisa do que supostamente deveriam cobrir: conversavam com policiais, usavam celulares como lanternas e tomavam notas, alguns deles aos risos. De todos, eu mal enxergava os vultos.

Estava incomodadíssimo de estar ali. Era ridícula aquela posição subserviente, distante de tudo, onde mal conseguia enxergar a mim mesmo, que dirá as coisas que deveria relatar. E me irritava a postura dos colegas de profissão, aceitando sem críticas - até com certo agrado - aquela posição precária. Cheguei a tentar acender a luz do meu celular para tomar algumas notas, mas a bateria estava fraca e a luz era quase inexistente - e foi quando decidi que simplesmente não dava para permanecer ali. Tentei focar minha visão nas luzes distantes, localizar de onde vinham, buscando algum caminho a seguir no meio da vegetação fechada, da chuva forte e da quase completa escuridão. Cheguei à conclusão de que havia um caminho à esquerda que valia a pena arriscar e comecei a andar, sem avisar ninguém da minha intenção, procurando me manter debaixo da lona para evitar o temporal. Ninguém viu que eu me afastava - se viram, não tentaram me deter.

Andei às cegas por algum tempo, sem enxergar por onde ia, tomando cuidado em não pisar em falso ou tropeçar. A chuva, que já era intensa, ficava mais e mais forte; eu não enxergava a lona, mas conseguia sentir ela balançando logo acima da minha cabeça, resistindo com dificuldades à tempestade. Depois de algum tempo, consegui ver um espaço ligeiramente mais iluminado à frente: era o fim da lona. Avancei até lá, em passos mais rápidos. Ao chegar lá precisei parar rápido: era um ângulo muito íngreme - o calçamento encerrava de forma abrupta em considerável abismo, o chão simplesmente escapava debaixo dos pés. Cheguei a sentir um pouco de vertigem. Estava um pouco mais claro, porém - a chuva era absurdamente forte, mas a luz de um poste mais ou menos próximo e a ausência de lona me permitiam ver um pouco melhor ao meu redor. O desnível era agudo, mas não muito profundo: eu poderia descê-lo sem me machucar, caso me agachasse e colocasse as pernas no piso abaixo, um pé de cada vez. Mas aí eu estaria à mercê da chuvarada, o que me pareceu ruim. Um pouco à esquerda, porém, havia uma continuação no mesmo nível em que eu estava - bastante estreita, mas coberta por uma pequena marquise. Resolvi tentar chegar até lá: sentei na beira do pequeno abismo e fui meio que me arrastando até lá, tomando cuidado para não fazer nenhum movimento brusco demais.

Chegando lá, tudo ficou surpreendentemente fácil. A chuva, antes cruel, amainou repentinamente - foi perdendo força, ficando mais e mais mirrada até que simplesmente parou. O fiapo de espaço foi ficando mais largo, virou uma espécie de rampa, desembocou numa trilha de grama baixa. Ao fim dela, não muito longe, pude ver uma grande concentração de pessoas: eram os responsáveis pela ocupação, já expulsos pela polícia, que aos poucos se dispersavam. Um facho forte de luz, que imaginei ser emitido por equipamento dos próprios policiais, as iluminava com clareza. Não havia confronto. Meu coração deu um salto e corri em direção a eles. Não havia nenhum outro jornalista por perto.

Já não lembro mais, obviamente, as coisas que apurei nessa pauta do subconsciente. Lembro que entrevistei pelo menos cinco pessoas - todas um tanto indignadas com a expulsão, mas ao mesmo tempo tranquilas e muito seguras do que faziam e da validade de suas ideias. Tomei muitas notas, empolgado com a força de algumas frases. Estava escrevendo em minha mente a matéria na medida em que conversava com as pessoas. De repente, me chamam: é o Ramiro, câmera dependurada no pescoço, usando capa de chuva. Eu sabia que ele estaria lá. Fotografei tudo, ele diz. E então a consciência surge, começo a despertar, e logo antes de abandonar o mundo do sono me ocorre pensar puxa que pena, a matéria ia ficar tão boa, nunca poderei escrevê-la.

Passei o dia todo com muita vontade de fazer uma reportagem.