sábado, 24 de março de 2012

A pomba e o Gavião Casaca-de-Couro

O Gavião Casaca-de-Couro observava o movimento no passeio público, mantendo seu ar de majestosa indiferença enquanto a vida passava diante de sua gaiola. Em um dos galhos da pequena árvore sem copa, tomava sol com a imponência das aves mais nobres, dos animais que nada temem e que tomam a natureza para si sempre que necessário.

Após um tempo que não nos importa mensurar, pousou diante do Gavião Casaca-de-Couro uma pomba manchada de preto e marrom. Aterrissou no chão batido, ciscou uma ou duas vezes e depois ergueu a cabeça, contemplando o Gavião Casaca-de-Couro com respeitosa seriedade. O Gavião Casaca-de-Couro pouca atenção deu à pomba miserável no começo, mas depois resolveu conceder-lhe um olhar de soslaio, misto de desprezo e piedade, como se desse à pomba maltrapilha um presente ao destinar a ela um mínimo de atenção. E se olharam por instantes - a pomba vagabunda com os pés na areia rala, o Gavião Casaca-de-Couro pousado na árvore nobre em sua jaula imponente.

Disse a pomba apenas uma frase:

- Que triste, ficar preso aí dentro o tempo todo.

E saiu voando, diante do olhar chocado de seu interlocutor, carregando no coração uma piedade genuína do coitado Gavião Casaca-de-Couro.

sábado, 17 de março de 2012

Sonho

Tive um sonho bastante movimentado e intenso hoje. Envolvia velhos amigos, escadarias, meu pai, pizza, um beijo roubado e ruas pavimentadas com paralelepípedos fora do lugar. Em determinado momento, me sentia a ponto de chorar de felicidade por estar vivo; em outro, senti o peso de complicadas decisões e desagradáveis certezas. Ao final, me dei conta de forma surpreendentemente suave de que dormia e estava, afinal de contas, sonhando. Ciente dos últimos segundos antes do despertar, permiti a mim mesmo a consciência de saborear os instantes finais daquilo tudo. E sorri enquanto caminhava rumo ao nascer do sol, no sonho e na vida.

domingo, 11 de março de 2012

Sobre a urgência (versão 1)

Dos caminhos que segui, nada sobrou. Do abraço de despedida, resta a memória aleijada, simulacro falso e absurdo da sensação que foi e não existe mais. Dou o passo, e ele já é passado; olho, e no instante seguinte o que vi já não está mais lá. Nas esquinas e corredores, passo por pessoas que nunca mais verei em minha vida, e as esqueço para sempre no instante seguinte ao que as vi. Cada júbilo e cada dor trazem em si a fragilidade do que nasce condenado a morrer. Vida infinitesimal, milésimos de segundo, um raio fugidio do qual apenas ouvimos o eco. Encerrou, e eis que volta, e eis que acaba de novo, para nunca mais voltar, para ser alguma outra coisa que surge do nada, que nos pega de surpresa, que mal percebemos e nos escapa antes mesmo de nascer dentro de nós. Viras as costas, vais embora, e o que me garante que um dia voltarás? Nada volta, nada jamais voltou: o mundo só anda para a frente. Sempre para frente, indo indo indo rumo ao que ainda não existe e deixando o que um dia foi no limbo do nunca mais. Nunca mais. Porque nenhuma memória é boa suficiente, nenhuma palavra é boa suficiente, nenhuma foto, vídeo, desenho ou poesia captura o que só pode existir em seu caráter inalcançável. Faremos o melhor que pudermos; jamais será o bastante. Nada está ao nosso alcance. Nada jamais esteve e jamais estará. Acabou. Não volta mais. Acabou.

Quem tirará de meu coração toda essa urgência?