quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Estalo

[caption id="attachment_365" align="alignleft" width="300"] Foto: Grufnik / Flickr[/caption]

Houve um tempo, milhares e milhares de anos antes que as torres fossem tão altas que se tornou impossível enxergar o céu, em que havia apenas o Homem, o Sol e a Lua. O Homem, desconhecedor de todas as grandes verdades, apenas vivia, esperando a Lua após o Sol e o Sol após a Lua, e isso o bastava, e isso era bom. Vivia sem perceber e, assim vivendo, também morria sem se dar conta de que, a cada inspirar de Vida, expirava um sopro de Morte.

Então um dia veio, de algum lugar que ninguém soube muito bem onde era, o Outro Homem. E ao ver que o Homem vivia e morria de forma tão desleixada, sem saber de nada e sem nenhuma preocupação com todas as coisas tão importantes, o Outro Homem resolveu intervir.

"Trago algo para ti", disse ao Homem o Outro Homem. "Um presente. Chama-se Relógio. Com ele medirás o Tempo, e medindo o Tempo poderás sempre saber de onde veio e para onde estás indo. Poderás construir e controlar as Máquinas, e controlando as Máquinas poderás entender o Mundo. Não mais serás dependente do Sol ou da Lua; sendo dono do teu Tempo, controlarás o teu Destino. Toma o Relógio e o mantém sempre contigo; um dia, por meio dele, conseguirás chegar até meu mundo, onde vivem os Outros Homens, e então voltaremos a conversar".

Disse essas coisas, o Outro Homem, e foi-se embora.

O Homem não entendeu muito bem aquele monte de palavras que jamais tinha ouvido, mas ficou muito impressionado com o Outro Homem, com o modo como chegou em meio a fogo e trovão e foi-se embora no mesmo estrondo, sem olhar para trás. Observou o Relógio que tinha consigo, e viu que algo nele se movia, fazendo um estalo, depois outro estalo, depois mais outro. Era um ritmo. Demorou um pouco, mas ficou olhando aquele Relógio até entender que ele era uma Máquina e que aqueles estalos um depois do outro depois do outro eram o Tempo. E tão longo entendeu essas coisas, percebeu que não podia mais ser Homem - porque agora sabia da Vida e da Morte, agora sabia que tinha um Mundo a conquistar, e nem o Sol e nem a Lua estavam livres daquelas Verdades todas, daqueles estalos que marcavam a Vida que ia e a Morte que chegava.

Muito tempo passou. E aquele que havia sido Homem aprimorou ao máximo sua compreensão do Tempo, controlou as Máquinas, criou incontáveis outros Relógios, decifrou a Vida e a Morte e uma porção de outras coisas que quando era Homem nem tinha imaginado que existissem, que dirá que tivesse que entendê-las. Tinha cada vez mais controle sobre o Destino, dominava o Mundo de tal forma que tudo a seu redor era engenho e submissão. Suas torres eram cada vez mais altas; logo seriam tão imensas que talvez pudesse até mesmo tocar o Sol e a Lua e deter o seu já quase inútil caminhar pelo céu. Apenas uma coisa não podia controlar: o estalo, um depois do outro e depois do outro e depois do outro. O ritmo que vinha da ponta da Vida e o levava - cada vez mais rápido, ainda que sem jamais acelerar-se - pelo caminho cinzento que terminava na Morte. Mesmo assim, sempre trazia consigo o Relógio, como única coisa que o lembrasse de onde tinha vindo, único elo entre todas as coisas que sabia e as que precisava compreender.

E das Máquinas criou outras Máquinas, e tantas Máquinas criou que podia cruzar distâncias cada vez maiores. Tanto aprimorou seu engenho que, mesmo sem controlar o Tempo, encontrou a trilha para ir e vir através dele. Acreditou tolamente, aquele que havia sido Homem, que por meio desta trilha poderia vencer o estalo incessante e inverter os canais entre Vida e Morte. Logo percebeu, porém, seu erro. Podia controlar o Tempo de todos os seres, menos o seu próprio; podia vivenciar e mudar infinitas Vidas e Mortes, menos a sua. Era escravo de si mesmo. E como poderia então libertar-se, se sabia apenas que não era mais Homem, sem no entanto saber o que era agora?

Seja como for, navegou pela trilha do Tempo inúmeras vezes, em busca de uma impossível Resposta. E numa dessas viagens encontrou, como que por encanto, um atalho até então desconhecido, que o levou até uma planície brilhante e a uma sacada para o infinito na qual, apoiado em um parapeito, aguardava o Outro Homem.

"Você demorou um pouco mais do que eu esperava", disse o Outro Homem, sorridente. "Cheguei a pensar que não mais voltaríamos a conversar. Seja como for, estou feliz em vê-lo; percebo que aprendeu muitas Verdades e que domina as Máquinas muito bem. Consegues até mesmo viajar no Tempo! Fizeste grande progresso. Ainda trazes contigo o Relógio?"

Neste momento, o Outro Homem e aquele que havia sido Homem olharam diretamente um nos olhos do outro. E era estranho porque, mesmo que aquela fosse uma conversa há tanto aguardada por ambos, fez-se longo silêncio.

"Sim, o Relógio está comigo", disse enfim o que um dia tinha sido Homem.

Estendeu a mão, como quem fosse entregar o Relógio ao Outro Homem. E abriu os dedos, deixando o Relógio cair ao chão, onde bateu com estrondo no piso gelado. Avançou um ou dois passos e, como o Relógio ainda funcionasse, começou a pisar nele com violência, quebrando os vidros e engrenagens, espalhando estilhaços por todos os lados.

O Outro Homem observava aquilo e não entendia nada.

O que um dia havia sido Homem pisou no Relógio incontáveis vezes, até que o Relógio fosse apenas uma carcaça retorcida, até que estivesse ofegante e com as pernas doendo. Então, chutou o que havia restado do Relógio em direção ao Outro Homem e disse:

"Eis o Relógio. Vim devolvê-lo".

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Espera

[caption id="attachment_361" align="alignleft" width="300"] Foto: Melissa Venable[/caption]

Esperava há tanto tempo que não era mais capaz de contar. Sentado na cadeira de estofado pouco confortável, sem espaço para as costas, para esticar as pernas. Chão de pedra, frio. Chão frio em uma sala quente. Ventilador de teto estragado, dizia a folha de ofício ao lado do interruptor. No balcão, ninguém. Todos tinham sumido há muito, sem deixar nem mesmo o eco atrás de si. Estava só.

Espere um minuto, haviam dito. E ele esperou. E ainda esperava, envolto em tempo parado. Cercado de vazio. Paredes, chão, teto. Luz fluorescente. Uma janela.

Levantou-se.

Do lado de fora, um mendigo deitado na grama rala, debaixo da única árvore visível.

Aguarde apenas mais um pouco, disse uma voz atrás de si. Em breve chamarão o senhor.

Respirou muito fundo.

A porta bateu com estrondo atrás de si. Mas ele mal ouviu o barulho - era como algo que vinha de muito longe, de uma sala que nunca havia existido, de um mundo de estranho sonho ao qual nunca mais precisaria voltar.