Deus não é fato:
É trajetória
Linhas de luz que deixam traços no vazio.
Deus não existe;
Ele acontece.
Pages
sábado, 12 de abril de 2014
domingo, 6 de abril de 2014
Breve consideração sobre os que têm mais é que morrer
Postado por
Igor Natusch
Primeiro, a dolorosa mas necessária descrição do acontecimento. Um jovem de 15 anos tomava conta de outros quatro irmãos mais novos quando, em uma aparente brincadeira, feriu mortalmente uma das crianças (de 5 anos) com uma faca. No momento em que escrevo essas linhas, a polícia acredita que a facada no peito da criança mais nova, que acabou causando sua morte, foi acidental. Desesperado, o adolescente vai até a avó dizendo que matou o próprio irmão - e em seguida é perseguido por vizinhos revoltados, que o espancam até a morte.
O caso deu-se na Vila Protásio Alves, em Porto Alegre. Não é fictício - pelo contrário, é dolorosamente real. Aqui é possível ler um brevíssimo relato do que ocorreu: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=522521
O que temos? Uma família que agora chora a morte de dois de seus filhos, ao invés de um só. Uma tragédia, já suficientemente horrível, multiplicada pela irracional vontade de vingança de um grupo de vizinhos. Mortos que nunca mais viverão - um deles vítima de um acidente trágico, outro de um conceito doentio e incontrolável de justiça. Ninguém sai justiçado, no fim das contas. O mundo não é um lugar melhor depois do linchamento deste jovem que matou o próprio irmão. O tipo de ação que muitos defendem como necessidade de nosso tempo (qual seja, justiçar criminosos imediatamente, atalhando os caminhos legais e, não raro, de forma fatal) mostra uma vez mais para que serve: para espalhar dor, morte e desgraça pelo mundo.
Há um aspecto especialmente ilustrativo nessa história, de qualquer modo: mostrar como a lei do talião, travestida de justiça, é na verdade de um egoísmo horrendo, repugnante. Duvido que os pais da primeira vítima aprovassem a morte de outro de seus filhos para justiçar a primeira tragédia. Duvido que o próprio morto, se pudesse opinar, pedisse a morte do irmão que o matou. A nenhum dos envolvidos interessava essa bárbara vingança, a não ser ao senso doentio de justiça dos que a perpetraram. Para que eles sentissem que a justiça foi feita, foram atrás do jovem de 15 anos, em uma paródia ridícula de justiça. Pela própria satisfação, mataram o segundo filho da mesma família, sem refletir na insanidade que cometiam. Fizeram tudo isso não pelo mundo, mas por si próprios e mais ninguém.
E não se iludam, pois é exatamente nisso que pensam os que dizem "tem mais é que matar" e congêneres: em si próprios. Não buscam justiça, não almejam o bem coletivo nem nada parecido: o que querem é a própria satisfação, egoísta e imediata. Os que amarraram o jovem negro em um poste no RJ queriam a satisfação pessoal de uma dose imediata de justiça; os que lincharam o jovem na Vila Protásio Alves agiam com a mesma motivação. Irracional e irrefletida, sim, mas nem por isso menos egoísta. Eis o fruto dos que pregam a punição imediata, dos que plantam medo no coração dos homens, dos que gritam que ninguém nunca é punido e que a lei não serve para nada: a morte. Essa solução resulta em morte. Em crianças mortas. Em famílias esfaceladas. Em um mundo cada vez mais violento, cada vez mais brutal. Cada vez mais desligado do outro. Cada vez mais egoísta.
Não se ausentem agora, respeitáveis defensores da justiça pelas próprias mãos. Venham ao centro do palco. Essas mortes estão na sua conta. Saboreiem o espetáculo que defendem todos os dias, em todas as horas. Neste momento, precisamente neste momento, o silêncio de vocês será intolerável e repugnante. Precisamente agora eu faço questão de ouvir a voz de vocês. Digam as palavras. Vocês já as conhecem tão bem. Estamos todos ouvindo, atentos. Não pedimos: exigimos. Assinem a obra que cometeram. Digam as malditas palavras de uma vez.
Digam: "tinha mais é que morrer".
ATUALIZAÇÃO: segundo a Zero Hora, o jovem de 5 anos não morreu: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/04/adolescente-e-morto-apos-ferir-irmao-de-cinco-anos-a-facadas-4467175.html Um pouco menos de desgraça, ainda que a desgraça ainda seja abundante nesse caso. De qualquer modo, o argumento central do texto segue inalterado. Agradeço a Laura Salaberry que me chamou a atenção para essa nova informação.
O caso deu-se na Vila Protásio Alves, em Porto Alegre. Não é fictício - pelo contrário, é dolorosamente real. Aqui é possível ler um brevíssimo relato do que ocorreu: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=522521
O que temos? Uma família que agora chora a morte de dois de seus filhos, ao invés de um só. Uma tragédia, já suficientemente horrível, multiplicada pela irracional vontade de vingança de um grupo de vizinhos. Mortos que nunca mais viverão - um deles vítima de um acidente trágico, outro de um conceito doentio e incontrolável de justiça. Ninguém sai justiçado, no fim das contas. O mundo não é um lugar melhor depois do linchamento deste jovem que matou o próprio irmão. O tipo de ação que muitos defendem como necessidade de nosso tempo (qual seja, justiçar criminosos imediatamente, atalhando os caminhos legais e, não raro, de forma fatal) mostra uma vez mais para que serve: para espalhar dor, morte e desgraça pelo mundo.
Há um aspecto especialmente ilustrativo nessa história, de qualquer modo: mostrar como a lei do talião, travestida de justiça, é na verdade de um egoísmo horrendo, repugnante. Duvido que os pais da primeira vítima aprovassem a morte de outro de seus filhos para justiçar a primeira tragédia. Duvido que o próprio morto, se pudesse opinar, pedisse a morte do irmão que o matou. A nenhum dos envolvidos interessava essa bárbara vingança, a não ser ao senso doentio de justiça dos que a perpetraram. Para que eles sentissem que a justiça foi feita, foram atrás do jovem de 15 anos, em uma paródia ridícula de justiça. Pela própria satisfação, mataram o segundo filho da mesma família, sem refletir na insanidade que cometiam. Fizeram tudo isso não pelo mundo, mas por si próprios e mais ninguém.
E não se iludam, pois é exatamente nisso que pensam os que dizem "tem mais é que matar" e congêneres: em si próprios. Não buscam justiça, não almejam o bem coletivo nem nada parecido: o que querem é a própria satisfação, egoísta e imediata. Os que amarraram o jovem negro em um poste no RJ queriam a satisfação pessoal de uma dose imediata de justiça; os que lincharam o jovem na Vila Protásio Alves agiam com a mesma motivação. Irracional e irrefletida, sim, mas nem por isso menos egoísta. Eis o fruto dos que pregam a punição imediata, dos que plantam medo no coração dos homens, dos que gritam que ninguém nunca é punido e que a lei não serve para nada: a morte. Essa solução resulta em morte. Em crianças mortas. Em famílias esfaceladas. Em um mundo cada vez mais violento, cada vez mais brutal. Cada vez mais desligado do outro. Cada vez mais egoísta.
Não se ausentem agora, respeitáveis defensores da justiça pelas próprias mãos. Venham ao centro do palco. Essas mortes estão na sua conta. Saboreiem o espetáculo que defendem todos os dias, em todas as horas. Neste momento, precisamente neste momento, o silêncio de vocês será intolerável e repugnante. Precisamente agora eu faço questão de ouvir a voz de vocês. Digam as palavras. Vocês já as conhecem tão bem. Estamos todos ouvindo, atentos. Não pedimos: exigimos. Assinem a obra que cometeram. Digam as malditas palavras de uma vez.
Digam: "tinha mais é que morrer".
ATUALIZAÇÃO: segundo a Zero Hora, o jovem de 5 anos não morreu: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/04/adolescente-e-morto-apos-ferir-irmao-de-cinco-anos-a-facadas-4467175.html Um pouco menos de desgraça, ainda que a desgraça ainda seja abundante nesse caso. De qualquer modo, o argumento central do texto segue inalterado. Agradeço a Laura Salaberry que me chamou a atenção para essa nova informação.
sábado, 5 de abril de 2014
Essa cervejinha pode te destruir - ou, primeiros apontamentos sobre Brasília
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_729" align="alignright" width="300"] Foto: Silvia Gomide[/caption]
Cheguei em Brasília debaixo de chuva e de espera. A água que caía do céu contradizia a informação dada pelo piloto ao sair de Porto Alegre: o tempo, segundo ele, era bom na capital federal. Não que a chuva seja tempo ruim, de qualquer modo: a cidade estava talvez menos efusiva do que esperado, mas não deixa de ser uma espécie de boas-vindas. A espera foi no desembarque, já que a pista estava cheia de aviões indecisos entre chegar e partir. Obras da Copa, me explicam todos - às vezes com sorrisos amarelos, em outras ocasiões adotando expressões faciais mais condizentes com sua insatisfação.
Ao meu lado na viagem sentou uma moça chamada Natália. Dezoito anos, nascida no Uruguai, com família lá e aqui. Vinha morar na casa da mãe, disposta a estudar Direito por aqui, mesmo acreditando que o ensino uruguaio seja muito melhor. "O que aprendesse lá não poderia usar aqui", explicou, com um sorriso bonito de insegurança e sincera simpatia. Falou bastante, mas não foi de forma alguma desagradável: parecia alguém com poucas chances de falar sobre certos aspectos de sua vida, e achei agradável ouvi-la, perceber as intromissões do espanhol em seu português de outro modo impecável. Não nos despedimos: subiu mais atrás no ônibus que nos levou à área de desembarque, pegou sua mala no outro extremo da esteira e logo desapareceu. Que Brasília seja boa com ela, é o que desejo do lado de cá.
Estou na Superquadra 416 da Asa Norte, no ponto mais distante da área central, da Praça dos Três Poderes, da Esplanada dos Ministérios e tudo mais. É uma área bastante arborizada e tranquila, onde os edifícios não vão além dos três andares e onde a impressão é de permanente fim de semana. Verdade que escrevo em uma noite de sábado, ou seja, é fim de semana de fato; mas mesmo nas manhãs e tardes de dias úteis as calçadas eram quase desertas de pessoas, os pássaros gritando entusiasmados nas árvores numerosas e ainda explodindo de verde. Todos parecem estar sempre voltando para casa no extremo da Asa Norte de Brasília - o que não é de todo ruim, já que sempre é bom ter uma casa para a qual se possa retornar.
Ainda não me acostumei com a ausência de esquinas, de qualquer modo.
Tudo divide-se em blocos, em quadras, em centros comerciais bem organizados em cada vizinhança. As grandes avenidas levam aos lugares de poder em linhas retas impositivas, competentes, que não hesitam em desvios ou cruzamentos. Mas o humano sempre vence: há carros demais, mesmo que asfalto também não nos falte. Chove e vira tudo uma bagunça, me diz um dos muito educados e prestativos taxistas da capital federal. Nenhum dos motoristas que me conduziram pela cidade era nascido nela: um era catarinense, dois mineiros, um capixaba. Trabalho com mais catarinenses, uma manauara, paulistas, gaúchos. O Brasil tem um pouco de si em cada lugar do Plano Piloto, o que faz sentido em uma cidade que nasceu para de certo modo resumir uma nação tão imensa e multifacetada.
Tenho agora um chip de celular local, o que me faz um pouco mais cidadão do Distrito Federal - algo que não sou nem serei, já que vou-me embora em menos de vinte dias, mas ainda assim é uma ilusão quase concreta em certos momentos. Estou aqui há poucos dias, mas já começo a entender parte da lógica única da cidade - ainda que, e essa é uma ressalva importante, ainda não tenha colocado meus pés em nenhuma cidade satélite. Imagino que o coração coletivo pulse diferente nesses lugares, como em todos na verdade: somos todos iguais, mas forjamos coisas muito diferentes quando estamos juntos.
No caminho para a residência onde me hospedo, um pequena casinha de madeira destoa da organização do comércio local. É uma sapataria, ainda que até agora eu só a tenha visto fechada. Suas paredes externas são cobertas de mensagens motivacionais e religiosas, escritas à mão com tinta preta e branca. Deduzo, após breve leitura, que o proprietário do estabelecimento abandonou o vício graças à intervenção de grupos ligados a alguma igreja, e tenta encorajar outras pessoas que estejam com o mesmo problema a agir de forma semelhante. Uma das mensagens, em especial, me salta aos olhos. ESSA CERVEJINHA PODE TE DESTRUIR, diz o aviso, as maiúsculas quase escondidas atrás de um assento de madeira.
Há espaço para a imperfeição humana, como se vê, mesmo em uma cidade que se pretende tão bem planejada, tão imponente e funcional. A humanidade triunfa, no fim das contas. Graças a ela, existe alma em meio ao concreto, seja onde for. Brasília tem alma; cabe a mim revelá-la.
De qualquer modo, tenho seguido a recomendação: desde que cheguei, não tomei um gole de álcool sequer.
Cheguei em Brasília debaixo de chuva e de espera. A água que caía do céu contradizia a informação dada pelo piloto ao sair de Porto Alegre: o tempo, segundo ele, era bom na capital federal. Não que a chuva seja tempo ruim, de qualquer modo: a cidade estava talvez menos efusiva do que esperado, mas não deixa de ser uma espécie de boas-vindas. A espera foi no desembarque, já que a pista estava cheia de aviões indecisos entre chegar e partir. Obras da Copa, me explicam todos - às vezes com sorrisos amarelos, em outras ocasiões adotando expressões faciais mais condizentes com sua insatisfação.
Ao meu lado na viagem sentou uma moça chamada Natália. Dezoito anos, nascida no Uruguai, com família lá e aqui. Vinha morar na casa da mãe, disposta a estudar Direito por aqui, mesmo acreditando que o ensino uruguaio seja muito melhor. "O que aprendesse lá não poderia usar aqui", explicou, com um sorriso bonito de insegurança e sincera simpatia. Falou bastante, mas não foi de forma alguma desagradável: parecia alguém com poucas chances de falar sobre certos aspectos de sua vida, e achei agradável ouvi-la, perceber as intromissões do espanhol em seu português de outro modo impecável. Não nos despedimos: subiu mais atrás no ônibus que nos levou à área de desembarque, pegou sua mala no outro extremo da esteira e logo desapareceu. Que Brasília seja boa com ela, é o que desejo do lado de cá.
Estou na Superquadra 416 da Asa Norte, no ponto mais distante da área central, da Praça dos Três Poderes, da Esplanada dos Ministérios e tudo mais. É uma área bastante arborizada e tranquila, onde os edifícios não vão além dos três andares e onde a impressão é de permanente fim de semana. Verdade que escrevo em uma noite de sábado, ou seja, é fim de semana de fato; mas mesmo nas manhãs e tardes de dias úteis as calçadas eram quase desertas de pessoas, os pássaros gritando entusiasmados nas árvores numerosas e ainda explodindo de verde. Todos parecem estar sempre voltando para casa no extremo da Asa Norte de Brasília - o que não é de todo ruim, já que sempre é bom ter uma casa para a qual se possa retornar.
Ainda não me acostumei com a ausência de esquinas, de qualquer modo.
Tudo divide-se em blocos, em quadras, em centros comerciais bem organizados em cada vizinhança. As grandes avenidas levam aos lugares de poder em linhas retas impositivas, competentes, que não hesitam em desvios ou cruzamentos. Mas o humano sempre vence: há carros demais, mesmo que asfalto também não nos falte. Chove e vira tudo uma bagunça, me diz um dos muito educados e prestativos taxistas da capital federal. Nenhum dos motoristas que me conduziram pela cidade era nascido nela: um era catarinense, dois mineiros, um capixaba. Trabalho com mais catarinenses, uma manauara, paulistas, gaúchos. O Brasil tem um pouco de si em cada lugar do Plano Piloto, o que faz sentido em uma cidade que nasceu para de certo modo resumir uma nação tão imensa e multifacetada.
Tenho agora um chip de celular local, o que me faz um pouco mais cidadão do Distrito Federal - algo que não sou nem serei, já que vou-me embora em menos de vinte dias, mas ainda assim é uma ilusão quase concreta em certos momentos. Estou aqui há poucos dias, mas já começo a entender parte da lógica única da cidade - ainda que, e essa é uma ressalva importante, ainda não tenha colocado meus pés em nenhuma cidade satélite. Imagino que o coração coletivo pulse diferente nesses lugares, como em todos na verdade: somos todos iguais, mas forjamos coisas muito diferentes quando estamos juntos.
No caminho para a residência onde me hospedo, um pequena casinha de madeira destoa da organização do comércio local. É uma sapataria, ainda que até agora eu só a tenha visto fechada. Suas paredes externas são cobertas de mensagens motivacionais e religiosas, escritas à mão com tinta preta e branca. Deduzo, após breve leitura, que o proprietário do estabelecimento abandonou o vício graças à intervenção de grupos ligados a alguma igreja, e tenta encorajar outras pessoas que estejam com o mesmo problema a agir de forma semelhante. Uma das mensagens, em especial, me salta aos olhos. ESSA CERVEJINHA PODE TE DESTRUIR, diz o aviso, as maiúsculas quase escondidas atrás de um assento de madeira.
Há espaço para a imperfeição humana, como se vê, mesmo em uma cidade que se pretende tão bem planejada, tão imponente e funcional. A humanidade triunfa, no fim das contas. Graças a ela, existe alma em meio ao concreto, seja onde for. Brasília tem alma; cabe a mim revelá-la.
De qualquer modo, tenho seguido a recomendação: desde que cheguei, não tomei um gole de álcool sequer.