domingo, 6 de abril de 2014

Breve consideração sobre os que têm mais é que morrer

Primeiro, a dolorosa mas necessária descrição do acontecimento. Um jovem de 15 anos tomava conta de outros quatro irmãos mais novos quando, em uma aparente brincadeira, feriu mortalmente uma das crianças (de 5 anos) com uma faca. No momento em que escrevo essas linhas, a polícia acredita que a facada no peito da criança mais nova, que acabou causando sua morte, foi acidental. Desesperado, o adolescente vai até a avó dizendo que matou o próprio irmão - e em seguida é perseguido por vizinhos revoltados, que o espancam até a morte.

O caso deu-se na Vila Protásio Alves, em Porto Alegre. Não é fictício - pelo contrário, é dolorosamente real. Aqui é possível ler um brevíssimo relato do que ocorreu: http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/?Noticia=522521

O que temos? Uma família que agora chora a morte de dois de seus filhos, ao invés de um só. Uma tragédia, já suficientemente horrível, multiplicada pela irracional vontade de vingança de um grupo de vizinhos. Mortos que nunca mais viverão - um deles vítima de um acidente trágico, outro de um conceito doentio e incontrolável de justiça. Ninguém sai justiçado, no fim das contas. O mundo não é um lugar melhor depois do linchamento deste jovem que matou o próprio irmão. O tipo de ação que muitos defendem como necessidade de nosso tempo (qual seja, justiçar criminosos imediatamente, atalhando os caminhos legais e, não raro, de forma fatal) mostra uma vez mais para que serve: para espalhar dor, morte e desgraça pelo mundo.

Há um aspecto especialmente ilustrativo nessa história, de qualquer modo: mostrar como a lei do talião, travestida de justiça, é na verdade de um egoísmo horrendo, repugnante. Duvido que os pais da primeira vítima aprovassem a morte de outro de seus filhos para justiçar a primeira tragédia. Duvido que o próprio morto, se pudesse opinar, pedisse a morte do irmão que o matou. A nenhum dos envolvidos interessava essa bárbara vingança, a não ser ao senso doentio de justiça dos que a perpetraram. Para que eles sentissem que a justiça foi feita, foram atrás do jovem de 15 anos, em uma paródia ridícula de justiça. Pela própria satisfação, mataram o segundo filho da mesma família, sem refletir na insanidade que cometiam. Fizeram tudo isso não pelo mundo, mas por si próprios e mais ninguém.

E não se iludam, pois é exatamente nisso que pensam os que dizem "tem mais é que matar" e congêneres: em si próprios. Não buscam justiça, não almejam o bem coletivo nem nada parecido: o que querem é a própria satisfação, egoísta e imediata. Os que amarraram o jovem negro em um poste no RJ queriam a satisfação pessoal de uma dose imediata de justiça; os que lincharam o jovem na Vila Protásio Alves agiam com a mesma motivação. Irracional e irrefletida, sim, mas nem por isso menos egoísta. Eis o fruto dos que pregam a punição imediata, dos que plantam medo no coração dos homens, dos que gritam que ninguém nunca é punido e que a lei não serve para nada: a morte. Essa solução resulta em morte. Em crianças mortas. Em famílias esfaceladas. Em um mundo cada vez mais violento, cada vez mais brutal. Cada vez mais desligado do outro. Cada vez mais egoísta.

Não se ausentem agora, respeitáveis defensores da justiça pelas próprias mãos. Venham ao centro do palco. Essas mortes estão na sua conta. Saboreiem o espetáculo que defendem todos os dias, em todas as horas. Neste momento, precisamente neste momento, o silêncio de vocês será intolerável e repugnante. Precisamente agora eu faço questão de ouvir a voz de vocês. Digam as palavras. Vocês já as conhecem tão bem. Estamos todos ouvindo, atentos. Não pedimos: exigimos. Assinem a obra que cometeram. Digam as malditas palavras de uma vez.

Digam: "tinha mais é que morrer".

ATUALIZAÇÃO: segundo a Zero Hora, o jovem de 5 anos não morreu: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2014/04/adolescente-e-morto-apos-ferir-irmao-de-cinco-anos-a-facadas-4467175.html Um pouco menos de desgraça, ainda que a desgraça ainda seja abundante nesse caso. De qualquer modo, o argumento central do texto segue inalterado. Agradeço a Laura Salaberry que me chamou a atenção para essa nova informação.