Uma das coisas mais agradáveis de votar no Colégio Santa Teresa de Jesus é a água do bebedouro. Sou uma pessoa que se preocupa com essas coisas: gosto de saber onde estão as fontes de água gratuita, de preferência gelada, para momentos imprevisíveis de sede. E poucas vezes na vida encontrei um bebedouro com água tão imensamente, tão satisfatoriamente gelada quanto o do Colégio Santa Teresa de Jesus, na zona sul de Porto Alegre. Verdade que só saboreio essa maravilha duas vezes a cada dois anos, no máximo: não estudo nem nunca estudei na citada escola, então inexistem compromissos que me levem até lá em outros momentos que não o período eleitoral. Tivesse filhos, talvez os matriculasse no Colégio Santa Teresa de Jesus apenas para poder sorver a água deliciosamente gelada do bebedouro todos os dias, ao deixá-los e buscá-los da escola; não os tenho, porém, de forma que ao menos no momento essa solução não me é possível. Contento-me em transformar esse prazer em uma espécie de segundo compromisso eleitoral: vou até minha seção, deposito o voto na urna e na volta dou uma passada pelo eficiente bebedouro do Colégio Santa Teresa de Jesus, que sempre me fornece água geladinha, com eficiência invejável.
Voto sempre bem cedo, tão cedo quanto consigo na verdade. Sendo a votação num domingo, ela sempre submete-se a uma hierarquia do dia anterior: não que eu seja exatamente um frequentador das noites de sábado, mas os finais de semana naturalmente convidam a madrugadas mais extensas. Desta vez consegui estar na urna por volta das 9h30, o que considero um bom horário. Pude caminhar tranquilo pelas ruas de paralelepípedos, passar pela praça deserta, ouvindo os gritos das caturritas. Atravessar a avenida é sempre demorado, mas não costumo ter pressa. Do outro lado da Cavalhada, surgem os panfletos. Já foram bem mais volumosos, é verdade: em tempos idos formavam um espesso tapete multicolorido, uma trilha inconfundível levando às zonas eleitorais da região. Dava quase para adivinhar os locais onde se votava, observando apenas o trajeto desenho pelos papéis ao chão. Hoje há bem menos papel, de tal modo que é quase possível prestar atenção neles, ler os nomes impressos. É bom: menos trabalho aos garis no dia seguinte.
O dia de eleição sempre carregou um ar meio mágico para mim. Sou um filhote do processo de redemocratização, da eleição de 1989: acompanhei aquele período de forma febril, interessadíssimo, como se algo em mim despertasse a partir daqueles dias. Seja o que for, segue desperto, já que a política é assunto que sempre me cativa - e sigo enxergando essa coisa em todos os cantos, em todas as pessoas. Ouço em todas as vozes. Mesmo que algumas gritem muito alto, e gritem umas por cima das outras, tão alto e tanto que às vezes parece que nada existe para se ouvir. A tranquilidade do trajeto até a urna é um intervalo em meio ao ruído, talvez a calmaria antes de uma tempestade de ansiedade e raiva. Porque hoje há raiva demais na mistura. E ela anda explodindo com uma facilidade que não raro me deixa bastante assustado.
Esperança, como sabemos, está na caixa dos objetos valiosos que, quando quebram, dificilmente podem ser remendados com sucesso. Não tenho dúvida que foi isso que me atraiu para a política, lá na segunda metade dos anos 80. Que era a esperança que animava os brasileiros a assistir Marronzinho e Eldes Mattar nos horários eleitorais de 1989. Que conduziu Lula, metalúrgico e nordestino, à Presidência da República. E que hoje, ferida e deformada, junta a sua voz na gritaria dos que querem derrotar muito mais do que vencer, seja de que lado for. Que a esperança seja ferida no processo político brasileiro não é algo inédito ou surpreendente: não posso falar exatamente de como pensava o Brasil quando da derrubada de João Goulart, mas lembro bem da minha mãe chorando na frente da TV durante o enterro de Tancredo Neves - e eu chorando junto, sem entender nada do que estava acontecendo, chorando apenas porque minha mãe chorava e a tristeza dela virava tristeza dentro de mim. Acho que foi ali que me nasceu o interesse político, tentando entender o que havia naquelas imagens na televisão que deixavam minha mãe tão chateada. Comecei na política a partir de uma expectativa frustrada e de um choque de realidade, no caso José Sarney e a inflação galopante; talvez por isso as decepções não me sejam tão penosas, as traições e dissimulações políticas não me tragam grande desconsolo. É assim desde sempre, ao menos para mim. Política é decepcionar-se. E tentar de novo. E ir achando o caminho, avançando um pouco a cada retomada, quase sem perceber. Chega-se a algum lugar? Não sei: anda-se, ao menos.
Estou voltando para casa quando vejo um homem que vai pelo caminho que retorno. Pele escura, bigode, cabelos brancos ameaçando conquistar o negro em sua cabeça. Roupas surradas, mas limpas. Olha para o chão; contempla os santinhos espalhados na calçada, no meio-fio, alguns já derramados para a área do asfalto. Detenho, da forma mais discreta de que sou capaz, para observá-lo. Parece procurar algo. Hesita. Então agacha-se e pega um dos papéis. Aproxima-o dos olhos como quem tem um defeito de visão, afasta de leve, traz o papel de novo para si. Pensa. E então faz uma careta quase imperceptível, deixa o santinho cair de seus dedos, rodopiando de volta ao monte de papel colorido no chão. Retoma a caminhada. E eu também retomo meu caminho, pensando em como cada um faz suas escolhas, com seus critérios e dignidades. Às vezes fazemos política assim, pegando um papel no meio da rua sem levá-lo conosco, deixando a resposta fácil para trás. Terá votado em quem? Não importa: decidiu-se. E isso já é uma grande coisa.