[caption id="attachment_334" align="alignleft" width="211" caption="Foto: Coletivo Muralha Rubro Negra / Divulgação"][/caption]
Sonhei que estava em uma coletiva de imprensa na qual falaria o Brilhante Ustra. Pelo jeito, ele ia anunciar que estava livre de processos judiciais, comemorar a impunidade garantida a ele pela Lei da Anistia - ao menos, é essa a pauta que eu recordava ter recebido. A sala era ampla e estava cheia de entusiastas, muitos militares, alguns poucos repórteres. Um deles, conhecido meu de pautas em Assembleias e Câmaras por aí, comentou comigo, em voz baixa:
- Pelo jeito, esse cara se escapou mesmo...
Respondi em um cochicho:
- Se escapou nada, nem imagina a matéria que eu vou fazer sobre essa palhaçada toda!
Ustra estava com uma expressão radiante, plena de confiança. Sorria. Recebia tapinhas nas costas. No centro da sala, uma imensa bandeira brasileira, de verde vivo e chamativo. Nos cantos do palco (pelo jeito, a coletiva seria em um palco), estranhos arranjos misturando rosas brancas, lírios e metralhadoras.
Eu, sentado a um canto, sinto nojo daquilo tudo.
Começa a tocar o hino nacional. Todos se erguem, em júbilo absoluto, para saudar a pátria mãe. É como a abertura de uma convenção partidária. Eu permaneço sentado, segurando o bloquinho e a caneta.
- O senhor precisa se levantar. É o hino - diz uma pessoa, cujo rosto eu não enxergo.
- Não vou me levantar - respondo eu, em voz branda, mas já prevendo incomodação.
- Levante e saúde o líder - disse outro, mais ríspido, me tocando no ombro. Repeli sua mão. Outras pessoas começam a se aproximar. Meu colega jornalista (que estava de pé, mas sempre esteve de pé, então não era por adesão a eles que se erguia) tentava debilmente me defender.
- Não vou levantar. Não vou! - continuava eu, já cercado, levando os primeiros empurrões, enquanto o hino tocava mais alto, cada vez mais alto.
Acordo a instantes do linchamento.
Pages
sábado, 22 de setembro de 2012
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
A Balada do Rapaz que saiu para tomar Chuva
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_329" align="alignnone" width="512" caption="Foto: crvdude / Flickr"][/caption]
Originalmente publicado em 05 de novembro de 2009
Era uma vez um rapaz que resolveu sair para tomar chuva. E fazia tempo que não chovia naquele mundo, para falar a verdade. Os escritores por aí gostam de falar de raios trovões que bagunçam e chovem todos os dias, mas às vezes se esquecem, por desatenção ou por desinteresse lírico, de falar dos trovões que nunca soam, das chuvas fugidias que nunca caem e acabam não bagunçando coisa nenhuma. Eis como era a situação do tempo no mundo do rapaz em questão – sol entre nuvens, um dia mais úmido ali, uma semana de ar seco ali, mas chuva mesmo não caia nunca.
Até que apareceu uma grande nuvem cinzenta no céu daquele mundo, e o rapaz animou-se bastante com aquilo. Era uma nuvem vendaval céu preto trovoada que prometia uma chuva daquelas, o que era uma tremenda novidade e deixou o rapaz imediatamente atento e com os olhos e ouvidos bem abertos. Estava longe ainda, não dava para ter certeza de quão grande era a nuvem e de quanta chuva trazia dentro de si – e, como a coisa toda estava demorando bastante para se aproximar, o que era animação foi virando ansiedade e o rapaz começou a ficar preocupado. Era só o que faltava, depois de tanta espera e tanta promessa, o trovão virar estalinho e a chuva virar vento molhado. Uma brisa gostosa vinha da direção na qual a nuvem surgia, trazendo um frescor agradável e um cheiro bom de terra molhada. O rapaz gostava daquilo, mas não achava que fosse o suficiente, e começou a caminhar na direção da nuvem, com uma ideia absurda na cabeça de que, se chegasse mais perto, a espera ia diminuir e ia ter mais chuva na qual se molhar.
Ficou andando o rapaz por um tempinho, mas a nuvem não parecia estar mais perto – na verdade, ela parecia estar se distanciando, como se um vento inoportuno surgisse sabe-se lá de onde para levá-la embora e fazê-la chover em outra freguesia. Começou a andar mais rápido, quase correr, mas não dava jeito de conseguir se aproximar da nuvem vento contrário relâmpago surdo não posso chover aqui desculpe até outro dia. Foi atrás dela por um bom tempo ainda, cada vez menos esperançoso, até que parou, frustrado e cansado, fechando os olhos enquanto tentava recuperar o fôlego.
De repente, assim mesmo sem aviso e sem sentido, começou a chover. Uma chuvinha bem leve de início, uma chuvinha ventinho frio barulho na janela carícia no rosto que pegou o rapaz de olhos fechados totalmente desprevenido, tanto que ele levou um tempo até perceber que de alguma maneira ele tinha alcançado a nuvem ou a nuvem tinha ido em direção a ele ou ambos ou nem um nem outro enfim não faz diferença. Abriu os olhos, viu encantado a chuva fraca caindo, sorriu com a timidez de quem nem lembrava que uma chuva de vez em quando podia ser tão agradável e bem-vinda. E ficou na chuva, e deixou que a chuva chovesse.
E então, tão de repente quanto tinha chegado, a chuva fraca dobrou-se num barulho de trovão e virou um temporal daqueles de meter medo. Uma chuvarada barulhão luz de relâmpago guarda chuva quebrado rua alagada engarrafamento que surpreendeu muito o rapaz, ao mesmo tempo que o deixou extasiado. Mal acostumado que estava, achava ele que qualquer garoa de quinta-feira à tarde era digna de ser chamada de chuva, de modo que nunca tinha imaginado que uma chuva pudesse ser tão forte, tão bonita e tão poderosa. Ficou totalmente encharcado em questão de instantes, e achou aquilo simplesmente sensacional, fechando de novo os olhos para saborear a sensação.
Pena, para o rapaz, que o temporal foi rápido – e parou tão de repente que, não estivesse o rapaz ensopado da cabeça aos pés, poderia até pensar que nunca tinha chovido. A chuva sumiu num vento gelado calçada molhada passarinho cantando chovi demais nem devia ter chovido chega de chuva adeus boa sorte, e veio um sol forte, um sol de protetor solar fator 50 para cima, um sol daqueles que parece dizer já era, rapaz, aqui não vai chover é nunca mais se depender de mim. Aceitou bem até o rapaz aquele final abrupto; afinal, uma chuva bonita e forte como aquela não podia mesmo ser normal. Ficou triste, mas ao mesmo tempo satisfeito de ter saído para tomar chuva, e resolveu ficar um tempo no sol, para ver se ficava seco e podia então voltar para casa.
Mas, e isso era uma coisa engraçada, ele nunca ficava plenamente seco. Por mais tempo que passasse, sempre parecia que tinha uma dobra da camisa, um espaço entre a meia e o tênis, algum lugar que continua molhado com as águas daquele temporal cada vez mais distante na memória. E dependendo de como o rapaz se mexesse, dependendo de como movesse a cabeça ou balançasse os braços ou olhasse para o horizonte, a descoberta de uma nova região úmida causava um calafrio dolorido, uma sensação debaixo da pele que era fria e quente ao mesmo tempo, uma espécie de dor que não doía mas que mesmo assim dava vontade de chorar.
Ficou um tempo bem grande ali, esperando que algo acontecesse, embora não soubesse àquela altura o que estava esperando no fim das contas. Então decidiu ir embora. Olhou rapidamente para o sol, que continuava ardendo como se fosse o único e eterno dono do céu, e começou a caminhar de volta para o mundo de sol entre nuvens do qual tinha saído. E foi com um susto e com uma correria no coração que viu o fiapo de nuvem cinza, bem longe na fronteira do céu com a terra, tão distante que um pouco mais de desatenção e o rapaz nunca teria reparado. Era parecida com a nuvem que tinha visto antes, a que tinha chovido tão bonito e o deixado todo molhado, mas podia muito bem ser uma nuvem diferente, de uma outra qualidade de chuva: estava muito longe, e ele não conseguia ter certeza. Ficou olhando, e começou a lembrar do vento gostoso, do cheiro de terra molhada e de tudo que tinha vindo depois daquilo.
Ficou na dúvida: ia até lá, ou ficava esperando? Tinha sido uma linda chuva, mas a sensação de estar todo molhado no meio do sol tinha sido muito ruim, e ele ainda lembrava, e ele tinha medo de sentir aquilo de novo. De mais a mais, estava tão longe… Hesitou um tempo, mas na verdade a hesitação era apenas da sua mente: seus pés já estavam andando na direção da tempestade.
Originalmente publicado em 05 de novembro de 2009
Era uma vez um rapaz que resolveu sair para tomar chuva. E fazia tempo que não chovia naquele mundo, para falar a verdade. Os escritores por aí gostam de falar de raios trovões que bagunçam e chovem todos os dias, mas às vezes se esquecem, por desatenção ou por desinteresse lírico, de falar dos trovões que nunca soam, das chuvas fugidias que nunca caem e acabam não bagunçando coisa nenhuma. Eis como era a situação do tempo no mundo do rapaz em questão – sol entre nuvens, um dia mais úmido ali, uma semana de ar seco ali, mas chuva mesmo não caia nunca.
Até que apareceu uma grande nuvem cinzenta no céu daquele mundo, e o rapaz animou-se bastante com aquilo. Era uma nuvem vendaval céu preto trovoada que prometia uma chuva daquelas, o que era uma tremenda novidade e deixou o rapaz imediatamente atento e com os olhos e ouvidos bem abertos. Estava longe ainda, não dava para ter certeza de quão grande era a nuvem e de quanta chuva trazia dentro de si – e, como a coisa toda estava demorando bastante para se aproximar, o que era animação foi virando ansiedade e o rapaz começou a ficar preocupado. Era só o que faltava, depois de tanta espera e tanta promessa, o trovão virar estalinho e a chuva virar vento molhado. Uma brisa gostosa vinha da direção na qual a nuvem surgia, trazendo um frescor agradável e um cheiro bom de terra molhada. O rapaz gostava daquilo, mas não achava que fosse o suficiente, e começou a caminhar na direção da nuvem, com uma ideia absurda na cabeça de que, se chegasse mais perto, a espera ia diminuir e ia ter mais chuva na qual se molhar.
Ficou andando o rapaz por um tempinho, mas a nuvem não parecia estar mais perto – na verdade, ela parecia estar se distanciando, como se um vento inoportuno surgisse sabe-se lá de onde para levá-la embora e fazê-la chover em outra freguesia. Começou a andar mais rápido, quase correr, mas não dava jeito de conseguir se aproximar da nuvem vento contrário relâmpago surdo não posso chover aqui desculpe até outro dia. Foi atrás dela por um bom tempo ainda, cada vez menos esperançoso, até que parou, frustrado e cansado, fechando os olhos enquanto tentava recuperar o fôlego.
De repente, assim mesmo sem aviso e sem sentido, começou a chover. Uma chuvinha bem leve de início, uma chuvinha ventinho frio barulho na janela carícia no rosto que pegou o rapaz de olhos fechados totalmente desprevenido, tanto que ele levou um tempo até perceber que de alguma maneira ele tinha alcançado a nuvem ou a nuvem tinha ido em direção a ele ou ambos ou nem um nem outro enfim não faz diferença. Abriu os olhos, viu encantado a chuva fraca caindo, sorriu com a timidez de quem nem lembrava que uma chuva de vez em quando podia ser tão agradável e bem-vinda. E ficou na chuva, e deixou que a chuva chovesse.
E então, tão de repente quanto tinha chegado, a chuva fraca dobrou-se num barulho de trovão e virou um temporal daqueles de meter medo. Uma chuvarada barulhão luz de relâmpago guarda chuva quebrado rua alagada engarrafamento que surpreendeu muito o rapaz, ao mesmo tempo que o deixou extasiado. Mal acostumado que estava, achava ele que qualquer garoa de quinta-feira à tarde era digna de ser chamada de chuva, de modo que nunca tinha imaginado que uma chuva pudesse ser tão forte, tão bonita e tão poderosa. Ficou totalmente encharcado em questão de instantes, e achou aquilo simplesmente sensacional, fechando de novo os olhos para saborear a sensação.
Pena, para o rapaz, que o temporal foi rápido – e parou tão de repente que, não estivesse o rapaz ensopado da cabeça aos pés, poderia até pensar que nunca tinha chovido. A chuva sumiu num vento gelado calçada molhada passarinho cantando chovi demais nem devia ter chovido chega de chuva adeus boa sorte, e veio um sol forte, um sol de protetor solar fator 50 para cima, um sol daqueles que parece dizer já era, rapaz, aqui não vai chover é nunca mais se depender de mim. Aceitou bem até o rapaz aquele final abrupto; afinal, uma chuva bonita e forte como aquela não podia mesmo ser normal. Ficou triste, mas ao mesmo tempo satisfeito de ter saído para tomar chuva, e resolveu ficar um tempo no sol, para ver se ficava seco e podia então voltar para casa.
Mas, e isso era uma coisa engraçada, ele nunca ficava plenamente seco. Por mais tempo que passasse, sempre parecia que tinha uma dobra da camisa, um espaço entre a meia e o tênis, algum lugar que continua molhado com as águas daquele temporal cada vez mais distante na memória. E dependendo de como o rapaz se mexesse, dependendo de como movesse a cabeça ou balançasse os braços ou olhasse para o horizonte, a descoberta de uma nova região úmida causava um calafrio dolorido, uma sensação debaixo da pele que era fria e quente ao mesmo tempo, uma espécie de dor que não doía mas que mesmo assim dava vontade de chorar.
Ficou um tempo bem grande ali, esperando que algo acontecesse, embora não soubesse àquela altura o que estava esperando no fim das contas. Então decidiu ir embora. Olhou rapidamente para o sol, que continuava ardendo como se fosse o único e eterno dono do céu, e começou a caminhar de volta para o mundo de sol entre nuvens do qual tinha saído. E foi com um susto e com uma correria no coração que viu o fiapo de nuvem cinza, bem longe na fronteira do céu com a terra, tão distante que um pouco mais de desatenção e o rapaz nunca teria reparado. Era parecida com a nuvem que tinha visto antes, a que tinha chovido tão bonito e o deixado todo molhado, mas podia muito bem ser uma nuvem diferente, de uma outra qualidade de chuva: estava muito longe, e ele não conseguia ter certeza. Ficou olhando, e começou a lembrar do vento gostoso, do cheiro de terra molhada e de tudo que tinha vindo depois daquilo.
Ficou na dúvida: ia até lá, ou ficava esperando? Tinha sido uma linda chuva, mas a sensação de estar todo molhado no meio do sol tinha sido muito ruim, e ele ainda lembrava, e ele tinha medo de sentir aquilo de novo. De mais a mais, estava tão longe… Hesitou um tempo, mas na verdade a hesitação era apenas da sua mente: seus pés já estavam andando na direção da tempestade.
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
O tapa
Postado por
Igor Natusch
Sabe quando alguém morre? É algo bem curioso o que acontece quando alguém morre, pessoal. Quando uma pessoa é morta, por incrível que possa parecer, ela fica morta para sempre. Tipo, eternamente, sabe? Quando alguém estava vivo e por algum motivo morre, essa pessoa nunca mais irá viver. O que ela foi, o que ela era e o que poderia ter sido: tudo acabou. Para sempre. Porque ela está morta. Morta.
Não dá para apertar o botão RESET e recomeçar o jogo. É como se você simplesmente morresse de verdade, de forma definitiva e sem chance de mudar. Sabe aquela sensação boa de tomar banho quando a gente se sente sujo e cansado? Para quem morre, isso não existe mais. Afinal de contas, essa pessoa morreu. Você gosta de queijo, por exemplo? Para a pessoa que está morta tanto faz quanto tanto fez se ela gosta ou não de queijo, se ela já gostou de queijo ou se poderia, um dia, ter gostado ou vir a gostar de queijo ou de açúcar ou de banana ou de arroz à grega ou de peixe grelhado ou seja lá do que se queira falar. Dar um beijo, deitar no sol, fazer amor, tirar um cochilo, ouvir música, correr atrás do ônibus, rir de uma piada. Nada disso pode acontecer, nada disso faz mais nenhuma diferença. Porque essa pessoa morreu. Está morta. Mortinha. E nunca mais vai viver. Nunca mais. Nunca.
Imagina um amigo seu morrer assim, para sempre, de forma inapelável e sem poder voltar atrás. Imagina um parente seu morrer desta maneira. Uma pessoa que você ama, seja qual for o seu modo de amor. Uma pessoa importante dessas morrer e você nunca mais vê-la, nunca mais tocá-la ou beijá-la ou amá-la ou mesmo ouvir a voz dela. Nunca mais. Eternamente impossível. Porque ela morreu. Porque mataram ela.
Imagina só isso e depois de tudo isso, depois de saber de forma inapelável que alguém que faz diferença morreu para sempre e nunca mais vai viver nem se as carruagens de Deus rasgarem o céu em um estrondo de trovão, vem alguém e te diz que ela tinha mesmo que morrer. Que ela fez algo errado. Se revoltou demais, perdeu o controle, não aceitou as regras e tentou provocar mudanças nas regras e aí, bom, daí ela morreu. Daí tiveram que matar ela. Porque sei lá, é mais importante que as coisas sigam funcionando exatamente assim, exatamente como são, sem mudarem jamais, de jeito nenhum, não importa quantos tenham que morrer eternamente para que as coisas fiquem assim, congeladas exatamente como estão. Porque quem criou as regras tem o controle, e quem paga aquelas que criaram as regras tem mais controle ainda, e a vontade deles justifica que algumas pessoas morram para sempre de forma a eles continuarem exatamente onde estão.
E imagina que quem te diz isso não é quem criou as regras, quem dá dinheiro para quem criou as regras nem nada disso - e sim alguém na mesma posição que tu, diante da mesma linha de tiro, alguém que pode morrer para sempre eternamente da mesma forma que todos os outros que já não existem e nunca mais hão de existir de novo. Alguém que também pode morrer eternamente para todo o sempre e nunca mais voltar: basta ficar irritado com uma regra que ele não acha justa, exatamente como a pessoa que ela acha que bem feito que morreu, desafiou a lei, fez um crime, tinha mesmo que morrer.
Imagina tudo isso. E me explica, porque para mim não faz sentido algum.
Não dá para apertar o botão RESET e recomeçar o jogo. É como se você simplesmente morresse de verdade, de forma definitiva e sem chance de mudar. Sabe aquela sensação boa de tomar banho quando a gente se sente sujo e cansado? Para quem morre, isso não existe mais. Afinal de contas, essa pessoa morreu. Você gosta de queijo, por exemplo? Para a pessoa que está morta tanto faz quanto tanto fez se ela gosta ou não de queijo, se ela já gostou de queijo ou se poderia, um dia, ter gostado ou vir a gostar de queijo ou de açúcar ou de banana ou de arroz à grega ou de peixe grelhado ou seja lá do que se queira falar. Dar um beijo, deitar no sol, fazer amor, tirar um cochilo, ouvir música, correr atrás do ônibus, rir de uma piada. Nada disso pode acontecer, nada disso faz mais nenhuma diferença. Porque essa pessoa morreu. Está morta. Mortinha. E nunca mais vai viver. Nunca mais. Nunca.
Imagina um amigo seu morrer assim, para sempre, de forma inapelável e sem poder voltar atrás. Imagina um parente seu morrer desta maneira. Uma pessoa que você ama, seja qual for o seu modo de amor. Uma pessoa importante dessas morrer e você nunca mais vê-la, nunca mais tocá-la ou beijá-la ou amá-la ou mesmo ouvir a voz dela. Nunca mais. Eternamente impossível. Porque ela morreu. Porque mataram ela.
Imagina só isso e depois de tudo isso, depois de saber de forma inapelável que alguém que faz diferença morreu para sempre e nunca mais vai viver nem se as carruagens de Deus rasgarem o céu em um estrondo de trovão, vem alguém e te diz que ela tinha mesmo que morrer. Que ela fez algo errado. Se revoltou demais, perdeu o controle, não aceitou as regras e tentou provocar mudanças nas regras e aí, bom, daí ela morreu. Daí tiveram que matar ela. Porque sei lá, é mais importante que as coisas sigam funcionando exatamente assim, exatamente como são, sem mudarem jamais, de jeito nenhum, não importa quantos tenham que morrer eternamente para que as coisas fiquem assim, congeladas exatamente como estão. Porque quem criou as regras tem o controle, e quem paga aquelas que criaram as regras tem mais controle ainda, e a vontade deles justifica que algumas pessoas morram para sempre de forma a eles continuarem exatamente onde estão.
E imagina que quem te diz isso não é quem criou as regras, quem dá dinheiro para quem criou as regras nem nada disso - e sim alguém na mesma posição que tu, diante da mesma linha de tiro, alguém que pode morrer para sempre eternamente da mesma forma que todos os outros que já não existem e nunca mais hão de existir de novo. Alguém que também pode morrer eternamente para todo o sempre e nunca mais voltar: basta ficar irritado com uma regra que ele não acha justa, exatamente como a pessoa que ela acha que bem feito que morreu, desafiou a lei, fez um crime, tinha mesmo que morrer.
Imagina tudo isso. E me explica, porque para mim não faz sentido algum.
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
A troca
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_320" align="alignnone" width="427" caption="Foto: Leon Neal/AFP/Getty Images"][/caption]
"Se Deus aparecesse agora na minha frente e me dissesse 'Alex, eu posso mudar o dia do acidente. Posso fazer com que o Tagliani desvie e não atinja seu carro. Você teria as suas pernas, mas não saberia como seriam esses últimos 11 anos da sua vida. Aceita a troca?', eu teria apenas três palavras pra ele: "No. Grazie, Dio".
Alessandro Zanardi, 45 anos, atleta e medalhista paraolímpico. Piloto de F-Indy, perdeu as duas pernas em 2001, em um acidente no EuroSpeedway de Lausitz, Alemanha. Perdeu 3/4 do sangue de seu corpo, teve várias paradas cardíacas e sobreviveu de forma surpreendente a um acidente potencialmente fatal. Passou por 20 cirurgias. Completou a prova de forma simbólica em 2003, realizando as 13 voltas que faltaram em EuroSpeedway em um veículo adaptado - alcançando um tempo que o teria colocado no quinto lugar no grid da corrida naquele ano. Voltou a correr, manteve a vida familiar, tornou-se praticante de handbike e, no dia 5 de setembro de 2012, onze anos depois de ter as pernas decepadas, tornou-se medalha de ouro na Paraolimpíada de Londres.
"Se Deus aparecesse agora na minha frente e me dissesse 'Alex, eu posso mudar o dia do acidente. Posso fazer com que o Tagliani desvie e não atinja seu carro. Você teria as suas pernas, mas não saberia como seriam esses últimos 11 anos da sua vida. Aceita a troca?', eu teria apenas três palavras pra ele: "No. Grazie, Dio".
Alessandro Zanardi, 45 anos, atleta e medalhista paraolímpico. Piloto de F-Indy, perdeu as duas pernas em 2001, em um acidente no EuroSpeedway de Lausitz, Alemanha. Perdeu 3/4 do sangue de seu corpo, teve várias paradas cardíacas e sobreviveu de forma surpreendente a um acidente potencialmente fatal. Passou por 20 cirurgias. Completou a prova de forma simbólica em 2003, realizando as 13 voltas que faltaram em EuroSpeedway em um veículo adaptado - alcançando um tempo que o teria colocado no quinto lugar no grid da corrida naquele ano. Voltou a correr, manteve a vida familiar, tornou-se praticante de handbike e, no dia 5 de setembro de 2012, onze anos depois de ter as pernas decepadas, tornou-se medalha de ouro na Paraolimpíada de Londres.