[caption id="attachment_329" align="alignnone" width="512" caption="Foto: crvdude / Flickr"][/caption]
Originalmente publicado em 05 de novembro de 2009
Era uma vez um rapaz que resolveu sair para tomar chuva. E fazia tempo que não chovia naquele mundo, para falar a verdade. Os escritores por aí gostam de falar de raios trovões que bagunçam e chovem todos os dias, mas às vezes se esquecem, por desatenção ou por desinteresse lírico, de falar dos trovões que nunca soam, das chuvas fugidias que nunca caem e acabam não bagunçando coisa nenhuma. Eis como era a situação do tempo no mundo do rapaz em questão – sol entre nuvens, um dia mais úmido ali, uma semana de ar seco ali, mas chuva mesmo não caia nunca.
Até que apareceu uma grande nuvem cinzenta no céu daquele mundo, e o rapaz animou-se bastante com aquilo. Era uma nuvem vendaval céu preto trovoada que prometia uma chuva daquelas, o que era uma tremenda novidade e deixou o rapaz imediatamente atento e com os olhos e ouvidos bem abertos. Estava longe ainda, não dava para ter certeza de quão grande era a nuvem e de quanta chuva trazia dentro de si – e, como a coisa toda estava demorando bastante para se aproximar, o que era animação foi virando ansiedade e o rapaz começou a ficar preocupado. Era só o que faltava, depois de tanta espera e tanta promessa, o trovão virar estalinho e a chuva virar vento molhado. Uma brisa gostosa vinha da direção na qual a nuvem surgia, trazendo um frescor agradável e um cheiro bom de terra molhada. O rapaz gostava daquilo, mas não achava que fosse o suficiente, e começou a caminhar na direção da nuvem, com uma ideia absurda na cabeça de que, se chegasse mais perto, a espera ia diminuir e ia ter mais chuva na qual se molhar.
Ficou andando o rapaz por um tempinho, mas a nuvem não parecia estar mais perto – na verdade, ela parecia estar se distanciando, como se um vento inoportuno surgisse sabe-se lá de onde para levá-la embora e fazê-la chover em outra freguesia. Começou a andar mais rápido, quase correr, mas não dava jeito de conseguir se aproximar da nuvem vento contrário relâmpago surdo não posso chover aqui desculpe até outro dia. Foi atrás dela por um bom tempo ainda, cada vez menos esperançoso, até que parou, frustrado e cansado, fechando os olhos enquanto tentava recuperar o fôlego.
De repente, assim mesmo sem aviso e sem sentido, começou a chover. Uma chuvinha bem leve de início, uma chuvinha ventinho frio barulho na janela carícia no rosto que pegou o rapaz de olhos fechados totalmente desprevenido, tanto que ele levou um tempo até perceber que de alguma maneira ele tinha alcançado a nuvem ou a nuvem tinha ido em direção a ele ou ambos ou nem um nem outro enfim não faz diferença. Abriu os olhos, viu encantado a chuva fraca caindo, sorriu com a timidez de quem nem lembrava que uma chuva de vez em quando podia ser tão agradável e bem-vinda. E ficou na chuva, e deixou que a chuva chovesse.
E então, tão de repente quanto tinha chegado, a chuva fraca dobrou-se num barulho de trovão e virou um temporal daqueles de meter medo. Uma chuvarada barulhão luz de relâmpago guarda chuva quebrado rua alagada engarrafamento que surpreendeu muito o rapaz, ao mesmo tempo que o deixou extasiado. Mal acostumado que estava, achava ele que qualquer garoa de quinta-feira à tarde era digna de ser chamada de chuva, de modo que nunca tinha imaginado que uma chuva pudesse ser tão forte, tão bonita e tão poderosa. Ficou totalmente encharcado em questão de instantes, e achou aquilo simplesmente sensacional, fechando de novo os olhos para saborear a sensação.
Pena, para o rapaz, que o temporal foi rápido – e parou tão de repente que, não estivesse o rapaz ensopado da cabeça aos pés, poderia até pensar que nunca tinha chovido. A chuva sumiu num vento gelado calçada molhada passarinho cantando chovi demais nem devia ter chovido chega de chuva adeus boa sorte, e veio um sol forte, um sol de protetor solar fator 50 para cima, um sol daqueles que parece dizer já era, rapaz, aqui não vai chover é nunca mais se depender de mim. Aceitou bem até o rapaz aquele final abrupto; afinal, uma chuva bonita e forte como aquela não podia mesmo ser normal. Ficou triste, mas ao mesmo tempo satisfeito de ter saído para tomar chuva, e resolveu ficar um tempo no sol, para ver se ficava seco e podia então voltar para casa.
Mas, e isso era uma coisa engraçada, ele nunca ficava plenamente seco. Por mais tempo que passasse, sempre parecia que tinha uma dobra da camisa, um espaço entre a meia e o tênis, algum lugar que continua molhado com as águas daquele temporal cada vez mais distante na memória. E dependendo de como o rapaz se mexesse, dependendo de como movesse a cabeça ou balançasse os braços ou olhasse para o horizonte, a descoberta de uma nova região úmida causava um calafrio dolorido, uma sensação debaixo da pele que era fria e quente ao mesmo tempo, uma espécie de dor que não doía mas que mesmo assim dava vontade de chorar.
Ficou um tempo bem grande ali, esperando que algo acontecesse, embora não soubesse àquela altura o que estava esperando no fim das contas. Então decidiu ir embora. Olhou rapidamente para o sol, que continuava ardendo como se fosse o único e eterno dono do céu, e começou a caminhar de volta para o mundo de sol entre nuvens do qual tinha saído. E foi com um susto e com uma correria no coração que viu o fiapo de nuvem cinza, bem longe na fronteira do céu com a terra, tão distante que um pouco mais de desatenção e o rapaz nunca teria reparado. Era parecida com a nuvem que tinha visto antes, a que tinha chovido tão bonito e o deixado todo molhado, mas podia muito bem ser uma nuvem diferente, de uma outra qualidade de chuva: estava muito longe, e ele não conseguia ter certeza. Ficou olhando, e começou a lembrar do vento gostoso, do cheiro de terra molhada e de tudo que tinha vindo depois daquilo.
Ficou na dúvida: ia até lá, ou ficava esperando? Tinha sido uma linda chuva, mas a sensação de estar todo molhado no meio do sol tinha sido muito ruim, e ele ainda lembrava, e ele tinha medo de sentir aquilo de novo. De mais a mais, estava tão longe… Hesitou um tempo, mas na verdade a hesitação era apenas da sua mente: seus pés já estavam andando na direção da tempestade.