[caption id="attachment_353" align="alignleft" width="300"] Foto: dearaujors / Flickr[/caption]
Era fácil perceber que aquela pessoa, mesmo longe da pobreza total ou da mendicância, trazia consigo a inequívoca disposição de pedir alguma coisa. Era um negro de poucos dentes na boca, usando um blusão vermelho já bastante gasto e calças largas, e que subiu no ônibus de forma muito cautelosa, procurando ter bastante certeza de que o pé estava firme na escada antes de arriscar o próximo passo. Cumprimentou o motorista e o cobrador como se já os conhecesse, passou com dificuldades pela roleta e imediatamente dirigiu a palavra a nós, passageiros geralmente alheios a tudo que não diga respeito a nossas dores, nossos receios e problemas.
Desliguei a música nos fones e me pus a ouvi-lo.
Dizia o homem que era portador de câncer colorretal, o que obrigava ele e outras pessoas do grupo ao qual pertencia a adquirir bolsas especiais para coleta de fezes. O governo federal fornecia gratuitamente uma pequena e insuficiente quantidade para todos os que, segundo ele, necessitavam da tal bolsa - o que levava ele a pedir contribuições aos passageiros, para que fosse possível comprar mais bolsas de modo que a ninguém elas faltassem. Foi isso que disse, entremeado por seguidas citações a Deus, dizendo que só através dEle poderia encontrar cura e pedindo que Ele nos abençoasse por qualquer donativo que porventura pudéssemos fazer.
Não pesquisei sobre o assunto posteriormente, de forma que não sei dizer até que ponto o homem dizia a verdade - mas uma senhora em especial, sentada muito próximo de onde se erguia o homem, pareceu bastante incomodada com aquele discurso. Enquanto os primeiros passageiros já colocavam as mãos em mochilas e carteiras em busca de alguns trocados, ela começou a criticar o homem que pedia as doações - à princípio de forma quase inaudível, resmungando que aquilo tudo era mentira, mas logo erguendo a voz e passando a criticar e, em seguida, xingar o homem sem nenhum constrangimento.
Não sei até que ponto ela tinha alguma razão no que dizia, mas colocava as coisas de maneira tão agressiva e, assim me pareceu, pouco coerente que seus argumentos perdiam força e pareciam mais o desabafo de uma pessoa descontrolada do que qualquer coisa mais concreta ou coerente. Segundo ela, o homem era um mentiroso, não havia falta de bolsas para tratamento colorretal nos postos de saúde e ela podia dizer, já que trabalhava há anos como assistente social e conhecia a realidade na prática. Na visão dela, o homem fazia uso de sua condição para enganar as pessoas, juntando dinheiro para coisas bem menos nobres, como bebida ou drogas - e nós, passageiros de um ônibus de começo de tarde, estaríamos dando dinheiro a uma pessoa sem o mínimo caráter, que explorava nossa boa fé sem o menor escrúpulo e com uma tremenda cara de pau.
A esses ataques o homem respondeu com alguma irritação, mas com admirável autocontrole. Disse repetidas vezes que aquela senhora estava "descontrolada" e falando "de quem não conhece" - argumentos que pareciam deixá-la ainda mais irritada, devo acrescentar. O homem exaltou-se visivelmente apenas uma vez, quando sua interlocutora insinuou, por meio de ironias duras, que talvez ele nem doente fosse. "A senhora está duvidando da minha doença?", disse o homem, e imediatamente levantou o blusão, revelando uma bolsa colada ao próprio corpo com fita adesiva, cheia já pela metade de fezes. Um gesto dramático, que calou os ataques da mulher por alguns instantes - insuficiente, porém, para dissuadi-la, mesmo que sua postura confrontadora contra o pedinte provocasse nos presentes, ao invés de apoio, uma antipatia cada vez mais perceptível.
No entanto, diria eu que o homem venceu de vez a discussão instantes antes da mulher descer do veículo, quando, já com os pés na escada que leva à porta de saída, a senhora soltou um xingamento especialmente odioso, pronunciado com raiva tão intensa quanto incompreensível naquele contexto:
- Safado, cara de pau! Fica enganando as pessoas... Tomara que tu morras por causa desse câncer, seu sem-vergonha!
Por um instante, pareceu-me que o homem iria perder de vez o controle, que cometeria algum xingamento ou gesto violento contra aquela mulher que, sem conhecê-lo pessoalmente, o ofendia de forma tão agressiva a ponto de expressar o mais desumano dos desejos. Mas foi um instante breve, tanto que imagino que mais ninguém o tenha percebido. Tão logo recobrou-se do insulto, olhou fixamente para a mulher e sentenciou, com um sorriso estranho no rosto, mas voz firme:
- E eu desejo que Deus dê à senhora muita saúde. Não desejo nada de mal nem para a senhora, nem para ninguém.
Tão repleta de dignidade foi essa resposta, e pronunciada com tanta firmeza, que não resisti e acabei concordando com um gesto ostensivo de cabeça, um sorriso escapando entre os meus lábios diante daquela bela demonstração de resistência. E o homem olhou fixamente para mim, viu que eu concordava com ele e parece ter se encorajado, pois ainda completou, enquanto a mulher sumia, ainda xingando, vida afora:
- Vai com Deus, viu minha senhora? Que ele ajude a senhora, que tá precisando.
Não sei se Deus foi com ela, do mesmo modo que não sei que tipo de problemas a afligem ou se ela tinha, no fim das contas, algum tipo de razão no que dizia. Sei apenas que foi bom ver que aquele homem, mesmo insultado de forma tão ofensiva diante de várias pessoas, recolheu os trocados que lhe deram e desceu do ônibus com uma expressão tranquila, parecendo até um pouquinho orgulhoso de si mesmo. Se me perguntassem, diria eu que ele tinha sim motivos para sentir-se bem - porque sei o quanto é difícil negar-se ao ódio, recusar o confronto inútil e responder ao ruim não com o pior, mas com o melhor. É um desafio pelo qual todos passamos inúmeras vezes, no trajeto de nossos dias - e quantos de nós fracassam nessa luta uma, duas, incontáveis vezes? Ver aquele homem obviamente humilde e pouco instruído triunfar sobre si mesmo fez com que eu me sentisse um pouco triunfante também, e trato de levar esse bom sentimento comigo, agora que o confronto deixou o presente para esvanecer-se em minha imprecisa (ainda que eterna) memória.