domingo, 20 de janeiro de 2013

O atraso

[caption id="attachment_381" align="alignnone" width="892"] Jean-Edouard Vuillard, "Sleep" | Reprodução[/caption]

Foi um salto estranho e repentino: em um momento, estava envolvido nas doces amarras do sono, no outro despertou de modo completo e abrupto, com a sensação urgente que de havia dormido demais. Ficou desperto detrás das pálpebras fechadas talvez por um segundo, possivelmente menos; então ergueu-se da cama de um só golpe, murmurando um palavrão, tateando no pequeno criado-mudo em busca do celular.

Seis e vinte e cinco da manhã. Não estava atrasado. Pelo contrário: tinha até acordado cedo demais. Quisesse, podia voltar para a cama e dormir por mais uns quarenta e cinco minutos. Mas a sensação não o abandonou: ficou olhando incrédulo para os números na tela, incapaz de convencer-se, incapaz de aceitar com a razão o que o coração aos saltos dentro do peito insistia em negar. Olhou para a janela de cortinas fechadas: pelas frestas, surgiam pequenos raios de tímida e indecisa luz.

A caminhada até o banheiro era curta. A fez de pés descalços, olhos semi-fechados, aos poucos convencendo a si mesmo de que tinha se enganado, de que talvez fosse o reflexo de um sonho ruim, apenas um susto, nada sério, nada demais.

Olhou no espelho e não era ele quem estava lá.

Quer dizer, era ele sim. Mas não era. Ele estava ali, mas era outra pessoa - alguém mais velho, com pequenas rugas no rosto, linhas acentuadas na testa, ligeiros fios brancos na barba malfeita. Ligeiramente careca.

Parecia cansado.

Percebeu de forma a princípio difusa que estava vendo a si mesmo como se visse outra pessoa. Feito uma criança, piscou os olhos com força, de forma quase caricata; ao abrir as pálpebras, continuou vendo a mesma figura de meia idade, o mesmo rosto mal barbeado, a mesma cara cansada. Coçou o rosto, lambeu os lábios, limpou a boca com as costas da mão. Não tirava os olhos do espelho.

Percebia-se calmo. Absolutamente calmo.

Ainda tinha quarenta e cinco minutos.

Retornou à cama sem muita pressa, ajeitando o corpo cuidadosamente debaixo das cobertas. Escondeu o rosto no travesseiro, fechou os olhos e começou a imaginar que bom seria se, na verdade, não estivesse acordado. Que não estivesse atrasado nem desperto antes da hora: que apenas dormisse, o corpo repousando enquanto a mente tentava lidar com um sonho estranho e desconfortavelmente real.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Boletim de ocorrência

[caption id="attachment_370" align="alignright" width="224"] Clique para ampliar | Foto: Reprodução[/caption]

Imagem postada pelo perfil no Facebook do Movimento Cidades Invisíveis

Pois olha, seu delegado
É forçoso reconhecer
Que a rima foi fora de hora
Que o poema não colabora
Para a clara compreensão
Dos meandros da situação
Que o B.O. quer descrever.

No entanto, seu delegado
Diria a vossa excelência
Que não cabe severidade
Contra a irregularidade
Cometida pelo bobo soldado
Que inventou de fazer rimado
O registro de ocorrência.

É que a rima, seu delegado
(e eu digo por convicção)
Está sempre dentro do cabra
Esperando que a porta se abra
E na distração do sério vivente
Papel e caneta inventem
Um pouco de malcriação.

A poesia, seu delegado
Nunca segue regra ou rito;
Informa o não importante
Esquece o que é relevante
Tira o muito do meio do nada
Se mete onde não é chamada
- Mas deixa tudo bem bonito.

Decerto, seu delegado
Os deveres da delegacia
Nada têm a ver com beleza;
A luta é contra a malvadeza
O negócio é punir o delito.
Essas coisas, eu sei - e repito
Prescindem de poesia.

Mas veja bem, delegado
- e perdoe essa minha ousadia;
Os caminhos tortos do homem
As maldades que tudo consomem
O não amor no peito da gente
- não será tudo justamente
Porque nos falta poesia?

Foi errado, seu delegado
Uma irresponsabilidade;
Mas o soldado abestalhado
Que inventou de escrever rimado
O registro de coisa séria
Certamente não tinha na ideia
Nenhum ranço de maldade.

Então peço, seu delegado
Que arquive essa confusão.
Que diga ao soldado bobo
Para não fazer isso de novo
E que se volte a proteger gente
Sem que o bobo soldado enfrente
Nenhuma maior punição.

Porque a rima, seu delegado
Não se importa com quem a julga
Nunca cumpre a pena devida
Segue sempre foragida
Local incerto e não sabido
E mesmo em flagrante delito
Ela consegue imprimir fuga.

Obrigado.