quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A Balada do Homem sem Perspectivas

[caption id="attachment_408" align="alignnone" width="800"] Foto: longzijun / Flickr[/caption]

Era uma vez um Homem que, de uma hora para a outra, percebeu-se sem Perspectivas. Foi uma consciência muito repentina, e tão inesperada que pegou o Homem completamente de surpresa. Naquele instante inicial, sua reação foi de choque, quase de terror; sentiu-se indefeso, exposto ao ridículo como alguém que sonha estar nu em um escritório ou em sala de aula. Tratou de esconder sua falta de Perspectivas como pôde, disfarçando-a com sorrisos e frases de efeito, enquanto procurava um lugar no qual pudesse ficar sozinho e contemplar essa estranha e inesperada ausência.

Por mais que tentasse, foi incapaz o Homem de lembrar exatamente quando e como, no fim das contas, havia perdido suas Perspectivas. Teria ele, talvez, as esquecido dentro do ônibus, enquanto ia ou voltava do trabalho? Deixado alguma moça bela e perigosa levá-las consigo, entre beijos em uma pista de dança ou entre lençóis de uma cama de motel? Teria o Homem vendido suas Perspectivas em troca de uma casa bonita, um carro novo, um pouco de conforto, fins de semana livres, uma noite de sono? Ou talvez suas Perspectivas teriam simplesmente ido embora, cansadas de não servirem para nada, chateadas com a omissão do Homem, com sua falta de interesse e consideração Essa última ideia, em especial, enchia o Homem de medo; pois se suas Perspectivas o tinham abandonado por vontade própria, de nada adiantaria procurá-las, pois elas se recusariam a voltar. Terrível, aquela sensação. De qualquer modo, não sabia o Homem como havia se dado a perda de suas Perspectivas, e por dias e dias ficou a remoer essa ausência, tentando entender onde havia errado, buscando de novo e de novo respostas para uma pergunta que sequer era capaz de formular com clareza.

Depois de algum tempo, conformou-se o Homem a não ter mais Perspectivas, e voltou aos poucos ao convívio dos seus, tentando ao máximo portar-se como antes, ver as coisas como antes, agir como se nada tivesse se perdido pelo caminho. Mas era difícil: uma vez percebendo que não tinha Perspectivas consigo, ficava o Homem incapaz de agir como antes, quando as tinha por perto ainda que não as notasse. Além disso, a convivência com as pessoas, antes tão agradável, tornava-se para ele amarga, cinzenta, quase uma tortura dependendo do dia e da situação. Via pessoas cercadas de Perspectivas que as ignoravam quase completamente, outras inclusive já sem nenhuma Perspectiva a seu lado, e vê-las totalmente alheias provocava no Homem calafrios de ódio. Por que, em nome de Deus, não conseguia o Homem ser como aquelas pessoas, ignorar totalmente o fato de não mais ter Perspectivas, viver dias sem significado com a alegria dos que simplesmente não se importam? E os que tinham Perspectivas, e as cultivavam, esses enchiam o Homem de um desconsolo que beirava a depressão. Pois aqueles Homens e Mulheres lembravam a ele que talvez tivesse perdido as suas Perspectivas para sempre, algo que sentia ter sido valioso e agora temia nunca mais poder recuperar. Aquelas pessoas, que andavam felizes ao lado de suas Perspectivas, tinham sido mais sábias e atentas do que ele próprio, e ao Homem pesava como chumbo a dor dessa constatação.

O outono virou inverno, o inverno reacendeu-se na primavera, a primavera ardeu em chamas no verão – mas para o Homem sem Perspectivas tudo era a mesma coisa, todos os dias eram cinzentos, todas as horas arrastavam-se dolorosamente rumo a um futuro que nada mais era do que uma extensão insossa do presente. Convencido pela próprio tristeza de que jamais reencontraria suas Perspectivas, entregava-se o Homem a uma Vida sem viver, a uma espera amarga pelo último suspiro, torcendo talvez para que a névoa dos dias nublasse sua consciência e o fizesse esquecer, enfim, que um dia Perspectivas haviam estado presentes em sua existência. Esqueceu muitas coisas, nesses dias que passaram sem que ninguém os tivesse contado – mas foi incapaz o Homem de ignorar completamente aquele espaço vazio dentro de si, por mais que o tentasse preencher com o que quer que parecesse adequado no momento. Tentou anestesiá-lo com bebida, apagá-lo com distrações eletrônicas, esquecê-lo nos braços e carícias de mulheres sem nome. Tentou cansar-se, desgastar-se, exaurir a si mesmo até que nada restasse, até que pudesse apenas jogar-se na cama e dormir por um longo tempo, dormir uma vida inteira, acordar renovado e esquecido de tudo que não estava certo em si e no resto do mundo. Mas por maior que fosse o sono, sempre acabava despertando – e, por mais que dormisse, nunca havia sido o suficiente.

Até que um dia, andando silencioso por uma rua cheia de som e vazia de harmonias, o Homem sentiu algo diferente. Não soube precisar, naquele exato instante, o que o havia atingido – foi algo fugaz, uma lufada de vento, o suave toque de uma Mão que escondeu-se antes que ele pudesse vê-la ou agarrá-la. De onde teria vindo? Foi para o Homem um momento febril; era como algo novo e ainda assim conhecido, uma sensação de reencontro indefinida e que pressionava seu peito com tanta força que deixava-o quase sem ar. Olhou para os lados, para os rostos indiferentes ao seu redor, e entendeu que, fosse o que fosse aquela sensação, era apenas sua: ninguém mais a percebia e, portanto, só ele poderia decifrá-la. Fechou os olhos, atendendo a um conselho vindo de algum lugar geralmente silencioso dentro de si: cheirou o ar, ouviu os sons da tarde, sentiu o vento suave contra as partes descobertas de seu corpo.

Então, decidiu-se. Andou em passos rápidos, sem saber para onde, sem calcular, movido apenas pelo impulso e pela urgência. Atravessou a rua, dobrou a esquina, viu uma porta, entrou. Demorou alguns segundos para perceber onde estava; não era um lugar extraordinário à primeira vista, e por algum tempo não conseguiu notar nada de especial à sua volta. Então, em um súbito raio de consciência, a Mão o tocou uma vez mais; o Homem voltou-se rápido, e então ele viu. Teve medo, mas respirou fundo, sustentando o olhar, deixando até escapar algo próximo a um sorriso de satisfação. A Perspectiva diante de si, porém, não devolveu o sorriso. Sem grosseria, mas com firmeza, agarrou o Homem pelo braço e apenas disse: vamos lá, mexa-se, estamos perdendo tempo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O cárcere

[caption id="attachment_403" align="alignleft" width="300"] Foto: Fiore Silvestro Barbato[/caption]

Este é seu nome, dizem, e este é seu trabalho, dizem, e esta é a sua função e a sua casa e as suas posses e as suas bandeiras e isso é tudo que você pode ser, dizem.

De início, eu tentava discutir. Mostrar que não era de mim que falavam, que aquelas cores e insígnias não correspondiam à minha pessoa. Levou um tempo para que eu percebesse que minha recusa em aceitar aquelas insinuações era justamente o que mantinha encarcerado naquele lugar. Passei, então, a cogitar a mentira e o engodo: dizer que sim, eu tinha aquele nome e tinha sido aquelas coisas e que não via problema em vestir aquela história que haviam criado para mim. Mas logo vi, felizmente a tempo, que tal comportamento não me libertaria, apenas mudaria a natureza de minha prisão. Poderia sair, mas minha nova prisão iria comigo para onde eu fosse, ainda mais intensa e cruel - o cárcere do não existir, nem atrás das grades e nem em lugar algum.

Hoje em dia, aguardo, e planejo minha fuga. Sigo sem cooperar, mas tenho adotado uma postura mais contemplativa, observando em silêncio enquanto me atribuem um nome que abomino e um passado que desconheço. Não mais nego o que me dizem, e tampouco assumo qualquer um daqueles absurdos: apenas silencio, como quem ouve longa cantilena em uma língua que desconhece.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Ardor

Ar.
Ofegar.
Ardor.

Sempre que a dor retorna mente entorta
torta palavra
amarga flor.
Cheiro cheio de medo.

Amor que grita surdo
mudo tudo
cala a cada palavra sem sabor.
Resta dor.
Ardor.

Mente exausta
exausta dor.
Torpor.

Sonha dor.

Sonha.
Há dor.
Sonho ardor.

Findo o sonho
Muda dor
Fica o ardor.
Sonha de novo.
Sonhador.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A respeito da utilidade das árvores

[caption id="attachment_393" align="alignnone" width="1000"] Foto: Bernardo Jardim Ribeiro[/caption]

Alguns se ergueram, em meio à comoção causada pela derrubada de árvores na praça em frente ao Gasômetro na metade desta semana, para pedir que as pessoas fossem além da espantosamente inepta frase do Sr. Prefeito José Fortunati - que disse, embora muitos ainda não consigam acreditar, que as árvores postas abaixo não estavam sendo utilizadas pela população. É preciso ir além dessa frase, dizem essas pessoas, e questionar se era possível mesmo evitar a obra, se uma eventual mobilização em prol das árvores não deveria ter ocorrido antes, entender que a cidade cresce e que precisa também aumentar o espaço para que ela possa mover-se e crescer ainda mais. Ficar apenas na declaração do Sr. Prefeito e ignorar esses pontos seria simplificação, dizem.

Pois eu digo que não concordo. Digo que nenhuma, absolutamente nenhuma análise minimamente adequada sobre o acontecido pode ser feita sem levar em conta a desastrada frase do Sr. Prefeito José Fortunati. Que simplificação seria resumir-se a analisar tecnicamente o projeto que leva as árvores ao chão, deixando passar em branco uma sentença tão simples, mas que ao mesmo tempo explica tanta coisa. Pois é raro, amigos(as), encontrarmos frase tão sucinta e, ao mesmo tempo, tão reveladora. E muito mais do que dizer algumas coisas sobre o Sr. Fortunati, ela diz inúmeras coisas sobre nós mesmos e o mundo que permitimos crescer mais e mais ao redor de nós.

O Sr. Prefeito José Fortunati pode ter defeitos (se alguns ou vários, cada um poderá dizer dentro de suas visões de mundo), mas a falta de inteligência e a incapacidade de manejar as palavras não estão entre eles. De fato, o Sr. Prefeito longe está de ser um tolo, e está igualmente distante de ser alguém incapaz de explicar conceitos ou de pronunciar-se em público a respeito deles. Acredito que a frase "as pessoas não utilizam estas árvores no Gasômetro” foi fruto de um deslize, de uma desatenção causada em uma situação de surpresa e necessidade de improviso. E justamente por isso tudo, é uma frase sincera - de fato, o Sr. Prefeito José Fortunati acredita que as árvores em frente ao Gasômetro não tinham utilidade suficiente para justificar sua manutenção. Assim pensou, assim pensa e, sem medir o peso das palavras que usava, assim pronunciou-se a respeito.

E aí nos cabe perguntar: e desde quando árvore precisa ser útil para alguma coisa? Mais ainda: por que diabos as coisas precisam ser úteis sempre? Por que cargas d'água as coisas só têm valor, dentro da grande lógica de nosso modelo de mundo, na medida em que elas cumprem uma função prática ou atendem determinados interesses? Porque é essa a questão bem acima do acontecimento pontual, o raciocínio que não só derrubou essas árvores como ainda levará florestas inteiras ao chão.

Só nos importa o que é útil. Só possui valor o que se presta visivelmente a algo, o que pode ser consumido, direcionado, revertido em lucro, otimizado. Algumas árvores no meio do caminho do asfalto são tão úteis quanto algumas pessoas morando no caminho do empreendimento imobiliário - são dispensáveis. Removíveis. Desprovidas de valor. De tal modo que o chefe do Executivo de uma das principais capitais do Brasil é capaz não apenas de pensar, mas de dizer em voz alta que algumas árvores podem ser postas no chão, na medida em que não são de fato utilizadas pelas pessoas.

Lembro de um tempo em que as árvores não precisavam prestar para nada além de serem árvores. Que a gente entendia que árvores tinham uma função bem clara no simples fato de serem árvores, que cumpriam perfeitamente sua motivação na existência na medida em que continuassem sendo árvores. Um tempo em que nos agradava ter árvores por perto, em que um lugar com muitas árvores era considerado um lugar bonito e que lugares bonitos podiam continuar sendo bonitos sem prestar para nada além de agradar a vida dos seres humanos. E que, quando a gente precisava botar abaixo uma árvore - mesmo que com ótimos motivos, mesmo que para melhorar a vida de um monte de gente e fazer da cidade muito maior e mais moderna e mais veloz - a gente talvez não deixasse de fazê-lo, mas certamente o fazia com o mínimo de respeito, sem dizer por aí que na verdade não tinha problema, que as coisas eram assim mesmo, que aquelas árvores no fundo não serviam para nada.

Talvez esse tempo só tenha existido na minha imaginação, mesmo. Mas eu acho que não.