Abriu a porta e comprovou: o mundo tinha mesmo acabado.
Tão cedo, lamentou.
Fechou a porta e fez café. Bem forte.
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domingo, 28 de julho de 2013
sexta-feira, 26 de julho de 2013
O começo
Postado por
Igor Natusch
Estava sozinho. Deixou lentamente seu precário esconderijo e, de pé em meio aos escombros, contemplou os arredores. Tudo havia sido posto abaixo. Os arranha-céus, os monumentos, telhados, janelas, asfalto e escadarias - tudo arruinado. Alguns focos de incêndio ainda eram visíveis, não muito longe - podia sentir as ondas de calor incidindo em sua pele. Um hidrante inútil cuspia jatos d'água em direção ao céu.
Amanhecia. Deu alguns passos, tentando não tropeçar nos destroços, testando a firmeza das placas de concreto antes de avançar. Uma viatura policial estava a poucos metros dele, virada com as rodas para cima, queimada de dentro para fora. Inofensiva, pensou, sem entender direito por quê. Não muito longe, as vitrines quebradas, cheias de brinquedos e eletrodomésticos - não havia ninguém por perto para saqueá-las. Na entrada da loja destruída, ainda era possível ver os enfeites de natal, parte deles caída ao chão, em meio ao vidro e os pedaços de metal. Não havia luz alguma que se pudesse ver ao longe, não importava o quanto ele se esforçasse para enxergar. Nenhuma luz que não a dos focos de incêndio e os raios do amanhecer.
Era o Começo do Mundo, pensou ele.
Sorriu.
Amanhecia. Deu alguns passos, tentando não tropeçar nos destroços, testando a firmeza das placas de concreto antes de avançar. Uma viatura policial estava a poucos metros dele, virada com as rodas para cima, queimada de dentro para fora. Inofensiva, pensou, sem entender direito por quê. Não muito longe, as vitrines quebradas, cheias de brinquedos e eletrodomésticos - não havia ninguém por perto para saqueá-las. Na entrada da loja destruída, ainda era possível ver os enfeites de natal, parte deles caída ao chão, em meio ao vidro e os pedaços de metal. Não havia luz alguma que se pudesse ver ao longe, não importava o quanto ele se esforçasse para enxergar. Nenhuma luz que não a dos focos de incêndio e os raios do amanhecer.
Era o Começo do Mundo, pensou ele.
Sorriu.
quinta-feira, 25 de julho de 2013
O Andante, o Relógio e o Caminho
Postado por
Igor Natusch
Em uma pedaço de grama à beira do Caminho, senta o Andante. É um longo e acidentando Caminho, o que talvez justifique a pausa. Uma linha reta? Certamente não; parece mais uma trilha sinuosa, com várias curvas, que desvia-se várias vezes de forma estranha e pouco lógica. O próprio Andante parece ter pouca pressa: quando anda, perde tempo em rotas inexploradas e usa poucos atalhos. Tropeça. Às vezes dá uma série de passos para trás. Em outras, como agora, senta-se longamente em uma das laterais da estrada, toma fôlego, observa a paisagem enquanto esquece de todo o resto.
Se continuares assim, não chegarás nunca, diz o Relógio, exasperado com tanto atraso e lentidão. Por que diabos te atrasas? Por que insistes em ficar aí, perdendo tempo?
Gosto do Caminho, responde o Andante, após alguns instantes de silêncio. E não posso cruzá-lo muito rápido; quando ele acabar, não mais terei por onde ir.
Se continuares assim, não chegarás nunca, diz o Relógio, exasperado com tanto atraso e lentidão. Por que diabos te atrasas? Por que insistes em ficar aí, perdendo tempo?
Gosto do Caminho, responde o Andante, após alguns instantes de silêncio. E não posso cruzá-lo muito rápido; quando ele acabar, não mais terei por onde ir.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
O Livro, a Morte e as respostas
Postado por
Igor Natusch
Duas perguntas que fiz aos meus pais, quando muito criança, ficaram especialmente marcadas na minha mente.
Ao meu pai, perguntei uma vez, andando da casa de minha vó para a minha própria, quem é que escrevia esse livro. Que livro?, perguntou meu pai. O Livro da Vida!, disse eu, exultante.
Meu pai riu e não respondeu.
À minha mãe perguntei em uma ocasião, chorando após ver uma notícia na televisão sobre uma criança que tinha morrido com poucos meses de vida, por que a gente precisava morrer. Só assim, de forma aguda e direta como só crianças de cinco ou seis anos conseguem fazer: por que a gente precisa morrer?
Minha mãe ficou muito chateada com minha dor, disse-me palavras de consolo, mas também não conseguiu responder.
Desnecessário dizer que essas duas perguntas seguem comigo até hoje. E que em noites como essa, quando o frio e o silêncio convidam a mente a mergulhar em si mesma, elas surgem com especial ênfase. Quem escreve o livro? E qual a lógica da morte em um mundo onde a vida parece tão importante?
Como nunca recebi respostas (e pode haver uma resposta a tais perguntas, no fim das contas?), fui levado a criar minhas próprias teorias. Pensei muito, andei muito, ando e penso cada vez mais. E tendo a concluir que a incapacidade de respostas está na imperfeição das perguntas. Ninguém escreve o Livro porque não há Livro, e não há motivo na morte porque, no fundo, não há morte: o que existe é um permanente rearranjar, na história e na vida. Ambas tomam formas permanentemente mutantes e indescritíveis, animadas pela mágica que é todos nós sem ser nenhum de nós ao mesmo tempo. E aí ficamos nós, nessa busca sem fim, ansiando por um sentido que não existe porque simplesmente não precisa existir. Achando que a fagulha vale mais que a chama, que a trilha da gota d'água na parede é mais importante que toda a tempestade.
É assim? Não sei. Não faço a menor ideia. Mas me agrada contemplar as perguntas que jamais responderei, em noites onde a incerteza parece ser a ponte entre o que pude e o que poderei ser. Assim agindo, me sinto um pouco mais dentro do Livro, e sinto a Morte um pouco mais distante.
Ao meu pai, perguntei uma vez, andando da casa de minha vó para a minha própria, quem é que escrevia esse livro. Que livro?, perguntou meu pai. O Livro da Vida!, disse eu, exultante.
Meu pai riu e não respondeu.
À minha mãe perguntei em uma ocasião, chorando após ver uma notícia na televisão sobre uma criança que tinha morrido com poucos meses de vida, por que a gente precisava morrer. Só assim, de forma aguda e direta como só crianças de cinco ou seis anos conseguem fazer: por que a gente precisa morrer?
Minha mãe ficou muito chateada com minha dor, disse-me palavras de consolo, mas também não conseguiu responder.
Desnecessário dizer que essas duas perguntas seguem comigo até hoje. E que em noites como essa, quando o frio e o silêncio convidam a mente a mergulhar em si mesma, elas surgem com especial ênfase. Quem escreve o livro? E qual a lógica da morte em um mundo onde a vida parece tão importante?
Como nunca recebi respostas (e pode haver uma resposta a tais perguntas, no fim das contas?), fui levado a criar minhas próprias teorias. Pensei muito, andei muito, ando e penso cada vez mais. E tendo a concluir que a incapacidade de respostas está na imperfeição das perguntas. Ninguém escreve o Livro porque não há Livro, e não há motivo na morte porque, no fundo, não há morte: o que existe é um permanente rearranjar, na história e na vida. Ambas tomam formas permanentemente mutantes e indescritíveis, animadas pela mágica que é todos nós sem ser nenhum de nós ao mesmo tempo. E aí ficamos nós, nessa busca sem fim, ansiando por um sentido que não existe porque simplesmente não precisa existir. Achando que a fagulha vale mais que a chama, que a trilha da gota d'água na parede é mais importante que toda a tempestade.
É assim? Não sei. Não faço a menor ideia. Mas me agrada contemplar as perguntas que jamais responderei, em noites onde a incerteza parece ser a ponte entre o que pude e o que poderei ser. Assim agindo, me sinto um pouco mais dentro do Livro, e sinto a Morte um pouco mais distante.
terça-feira, 23 de julho de 2013
Breve parábola sobre o esquecimento
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_544" align="alignleft" width="300"] Foto: Monkey Business Images[/caption]
Desceu do ônibus já observando tudo, os olhos sedentos de pessoas, de paisagens, de vida. Há tanto tempo não regressava à cidade! As horas de viagem, cumpridas durante a madrugada, não as pôde dormir: viajou o tempo todo de olhos bem abertos, como que tentando devorar com os olhos cada partícula de paisagem que passava pela moldura da janela. Cada árvore, cada folhagem. Tentando enxergar as cores em meio à escuridão da noite sem lua.
Andou pela rodoviária com passos contidos: queria correr, mas a inconveniência do gesto parecia clara e conteve-se. Foi andando devagar entre as poucas lancherias e lojinhas abertas àquela hora da manhã, olhando cada produto como se fosse único, como se apenas ali pudesse ser encontrado. Sorria para os vendedores; sonolentos e um pouco confusos, nenhum deles retribuiu.
Não quis tomar um táxi. Resolveu ir caminhando, observando a cidade, saboreando-a. Desceu lentamente pelas ruas próximas, buscando reconhecimento nos detalhes. Nas lâmpadas cinzas que pediam limpeza. Nos ladrilhos um pouco soltos e nas calçadas de pedras descontínuas. Nos botecos e lancherias que recém abriam para receber os clientes erráticos da manhã. Nas praças cercadas de telas metálicas, de árvores sem folhas e pássaros que não cantavam. Nos bancos de praça vazios. Nas vozes que não se faziam ouvir.
Caminhou longamente, e não sentiu-se em paz.
Sentou em uma praça, levemente cansado e um tanto confuso. Seu entusiasmo da chegada havia sido substituído por uma preocupação difusa, e procurava dar sentido às sensações estranhas que passavam velozes pela sua mente. O que estava havendo? Tanto havia amado e sido feliz naquela cidade, tantos sorrisos havia recebido, tantas vezes havia cruzado aquelas ruas com o sentimento inexplicável e inequívoco de estar no lugar certo, na cidade certa. Verdade que tinha se ausentado por um período razoavelmente longo, mas ainda era o mesmo lugar, ainda reconhecia a si mesmo naquelas ruas. Não era problema dos olhos que observavam; parecia antes um problema de quem recebia aquele olhar.
Foi quando a compreensão veio, veloz e implacável, sem espaço para trégua ou compaixão. Foi alvejado por ela de tal forma que chegou a perder o fôlego, a sentir o corpo tremer, uma sensação áspera e com gosto de doença subindo lentamente pela garganta.
Era horrível, mas era verdade.
A cidade não lembrava mais dele.
Tomou o primeiro táxi e foi direto à rodoviária.
Desceu do ônibus já observando tudo, os olhos sedentos de pessoas, de paisagens, de vida. Há tanto tempo não regressava à cidade! As horas de viagem, cumpridas durante a madrugada, não as pôde dormir: viajou o tempo todo de olhos bem abertos, como que tentando devorar com os olhos cada partícula de paisagem que passava pela moldura da janela. Cada árvore, cada folhagem. Tentando enxergar as cores em meio à escuridão da noite sem lua.
Andou pela rodoviária com passos contidos: queria correr, mas a inconveniência do gesto parecia clara e conteve-se. Foi andando devagar entre as poucas lancherias e lojinhas abertas àquela hora da manhã, olhando cada produto como se fosse único, como se apenas ali pudesse ser encontrado. Sorria para os vendedores; sonolentos e um pouco confusos, nenhum deles retribuiu.
Não quis tomar um táxi. Resolveu ir caminhando, observando a cidade, saboreando-a. Desceu lentamente pelas ruas próximas, buscando reconhecimento nos detalhes. Nas lâmpadas cinzas que pediam limpeza. Nos ladrilhos um pouco soltos e nas calçadas de pedras descontínuas. Nos botecos e lancherias que recém abriam para receber os clientes erráticos da manhã. Nas praças cercadas de telas metálicas, de árvores sem folhas e pássaros que não cantavam. Nos bancos de praça vazios. Nas vozes que não se faziam ouvir.
Caminhou longamente, e não sentiu-se em paz.
Sentou em uma praça, levemente cansado e um tanto confuso. Seu entusiasmo da chegada havia sido substituído por uma preocupação difusa, e procurava dar sentido às sensações estranhas que passavam velozes pela sua mente. O que estava havendo? Tanto havia amado e sido feliz naquela cidade, tantos sorrisos havia recebido, tantas vezes havia cruzado aquelas ruas com o sentimento inexplicável e inequívoco de estar no lugar certo, na cidade certa. Verdade que tinha se ausentado por um período razoavelmente longo, mas ainda era o mesmo lugar, ainda reconhecia a si mesmo naquelas ruas. Não era problema dos olhos que observavam; parecia antes um problema de quem recebia aquele olhar.
Foi quando a compreensão veio, veloz e implacável, sem espaço para trégua ou compaixão. Foi alvejado por ela de tal forma que chegou a perder o fôlego, a sentir o corpo tremer, uma sensação áspera e com gosto de doença subindo lentamente pela garganta.
Era horrível, mas era verdade.
A cidade não lembrava mais dele.
Tomou o primeiro táxi e foi direto à rodoviária.
terça-feira, 16 de julho de 2013
Dr. Thiago, um pedido: afaste-se
Postado por
Igor Natusch
Resumindo brevemente: em entrevista concedida na manhã desta terça-feira (16) à Rádio Gaúcha (e que pode ser ouvida aqui), o presidente da Câmara de Porto Alegre, Dr. Thiago Duarte, demonstrou estar um tanto abalado com a situação que envolve a ocupação da Câmara de Porto Alegre. Com voz embargada, pede que a população perceba que o movimento que está há quase uma semana ocupando a Casa não é pacífico, mas sim violento e movido por interesses partidários. Compara a ação dos manifestantes com um atentado à democracia, diz que está impedido o direito de ir e vir, que foi além do que é possível em uma busca de solução. Indagado pela entrevistadora Rosane de Oliveira se está chorando, faz duas longas e dramáticas pausas, antes de retornar a falar de forma que me pareceu um bocado desconexa. Nada diz sobre sua disposição em aparecer na audiência de conciliação de quarta-feira, nem sobre as possiblidades de retomar diálogo com os manifestantes: apenas expõe seu imenso desconforto com toda a situação, no tom inequívoco de quem faz um grande desabafo.
Vou assumir a sinceridade da comoção do Dr. Thiago Duarte na entrevista que deu há pouco na Rádio Gaúcha. Sim, porque assumir que o presidente da Câmara estava interpretando um papel, além de insinuação grave, é algo que o colocaria desde o início em má posição nesta breve análise, o que eu considero injusto. Parto então da hipótese obviamente mais benéfica para o Dr. Thiago Duarte: a de que ele comoveu-se sinceramente ao falar da ocupação da Câmara de Porto Alegre e, portanto, sente-se sinceramente abalado com o andamento da situação. Analisando friamente, não tenho nenhum motivo para duvidar disso.
Nesse caso, me vejo forçado a sugerir que o Dr. Thiago Duarte afaste-se em definitivo das negociações com o Bloco de Lutas e com todos que no momento ocupam a Câmara de Porto Alegre. Porque o impasse já dura quase uma semana, e não será resolvido senão com serenidade - atributo que, a se julgar pelas últimas manifestações, o presidente da Câmara não está mais em condições de oferecer. Uma pessoa que chora ao falar de um problema de tal dimensão não está em condições de enfrentá-lo de frente. Uma pessoa que, com voz embargada, acusa seus interlocutores de racismo e de estarem "esfaqueando" e cometendo um "estupro" contra a democracia não está com a mente suficientemente clara, o pensamento cristalino, a capacidade de decisão no ápice. Está, isso sim, abalado. Cansado, desgastado, com o pensamento confuso. Com dificuldades de lidar com uma questão que personalizou de tal forma que virou motivo de dor psicológica, de agonia e sofrimento. Não está em condições de negociar. E creiam ou não, digo isso sem nenhum tipo de maldade, de ironia ou de condenação. Apenas constato algo que, para mim, torna-se impossível não enxergar.
Admitir uma eventual debilidade ou fraqueza momentânea não é algo vergonhoso. Pelo contrário: eu mesmo, por exemplo, estou doente e por isso me vi forçado a ficar alguns dias sem ir não só até a Câmara, mas a meu próprio local de trabalho. É algo que me deixa chateado e me provoca uma sensação de impotência bastante grande - mas pior seria se eu fingisse estar capaz de executar minhas tarefas, causando ainda mais problemas do que a minha ausência temporária possa provocar. Acho que cabe ao Dr. Thiago Duarte a mesma reflexão. Que ouça a própria entrevista, que releia suas declarações anteriores e perceba que está demasiado abalado, que não mais enxerga a questão com clareza, que corre sérios riscos de prejudicar a cidade que o elegeu caso insista em tentar administrar essa situação. Fazer isso não seria um fiasco: seria uma demonstração de grandeza. Seria um gesto em favor de Porto Alegre. Passe a negociação para seu vice e vá para sua residência, recuperar-se. Até porque, depois que tudo isso passar, só um Dr. Thiago Duarte com controle pleno dos seus nervos será útil para a cidade de Porto Alegre.
Tudo isso, é claro, assumindo a sinceridade de sua reação durante a entrevista na Gaúcha - algo de que, como antes dito, não tenho razões para duvidar. Porque sempre presumo o melhor das pessoas, em especial das que estão em tão elevada posição, lidando com questões tão importantes para o futuro da cidade onde vivo e que tanto amo.
Vou assumir a sinceridade da comoção do Dr. Thiago Duarte na entrevista que deu há pouco na Rádio Gaúcha. Sim, porque assumir que o presidente da Câmara estava interpretando um papel, além de insinuação grave, é algo que o colocaria desde o início em má posição nesta breve análise, o que eu considero injusto. Parto então da hipótese obviamente mais benéfica para o Dr. Thiago Duarte: a de que ele comoveu-se sinceramente ao falar da ocupação da Câmara de Porto Alegre e, portanto, sente-se sinceramente abalado com o andamento da situação. Analisando friamente, não tenho nenhum motivo para duvidar disso.
Nesse caso, me vejo forçado a sugerir que o Dr. Thiago Duarte afaste-se em definitivo das negociações com o Bloco de Lutas e com todos que no momento ocupam a Câmara de Porto Alegre. Porque o impasse já dura quase uma semana, e não será resolvido senão com serenidade - atributo que, a se julgar pelas últimas manifestações, o presidente da Câmara não está mais em condições de oferecer. Uma pessoa que chora ao falar de um problema de tal dimensão não está em condições de enfrentá-lo de frente. Uma pessoa que, com voz embargada, acusa seus interlocutores de racismo e de estarem "esfaqueando" e cometendo um "estupro" contra a democracia não está com a mente suficientemente clara, o pensamento cristalino, a capacidade de decisão no ápice. Está, isso sim, abalado. Cansado, desgastado, com o pensamento confuso. Com dificuldades de lidar com uma questão que personalizou de tal forma que virou motivo de dor psicológica, de agonia e sofrimento. Não está em condições de negociar. E creiam ou não, digo isso sem nenhum tipo de maldade, de ironia ou de condenação. Apenas constato algo que, para mim, torna-se impossível não enxergar.
Admitir uma eventual debilidade ou fraqueza momentânea não é algo vergonhoso. Pelo contrário: eu mesmo, por exemplo, estou doente e por isso me vi forçado a ficar alguns dias sem ir não só até a Câmara, mas a meu próprio local de trabalho. É algo que me deixa chateado e me provoca uma sensação de impotência bastante grande - mas pior seria se eu fingisse estar capaz de executar minhas tarefas, causando ainda mais problemas do que a minha ausência temporária possa provocar. Acho que cabe ao Dr. Thiago Duarte a mesma reflexão. Que ouça a própria entrevista, que releia suas declarações anteriores e perceba que está demasiado abalado, que não mais enxerga a questão com clareza, que corre sérios riscos de prejudicar a cidade que o elegeu caso insista em tentar administrar essa situação. Fazer isso não seria um fiasco: seria uma demonstração de grandeza. Seria um gesto em favor de Porto Alegre. Passe a negociação para seu vice e vá para sua residência, recuperar-se. Até porque, depois que tudo isso passar, só um Dr. Thiago Duarte com controle pleno dos seus nervos será útil para a cidade de Porto Alegre.
Tudo isso, é claro, assumindo a sinceridade de sua reação durante a entrevista na Gaúcha - algo de que, como antes dito, não tenho razões para duvidar. Porque sempre presumo o melhor das pessoas, em especial das que estão em tão elevada posição, lidando com questões tão importantes para o futuro da cidade onde vivo e que tanto amo.
domingo, 14 de julho de 2013
A ocupação, a desocupação e a mudança
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_539" align="alignnone" width="900"] Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]
Entrei pela primeira vez na Câmara ocupada de Porto Alegre ainda na quarta-feira, quando havia alguma lembrança de dia em meio à noite já quase completa. Muitas vezes estive na Câmara durante meus anos de trabalho jornalístico, fazendo desde cobertura de pautas até simplesmente assistindo uma ou outra sessão mais interessante - mas entrar lá naquele dia foi um pouco como conhecer a Câmara novamente, como se aquele fosse um lugar novo e, ao mesmo tempo, carregasse o espírito do reencontro dentro de si.
Estava bela e pulsante a Câmara de Porto Alegre - cheia de cartazes, palavras de ordem, música. Pessoas. Era um ambiente transbordante de boas intenções - que não se modificou nos dias seguintes, ainda que o natural desgaste de uma longa ocupação tenha ampliado algumas tensões. Uma ocupação de pessoas confiantes na validade de sua causa, dispostas a sacrificar várias coisas em nome de sua crença na mudança. Sou um entusiasta da mudança, alguém que sente dentro de si a necessidade imperiosa de redesenhar esse mundo injusto e absurdo; natural, portanto, que nutra considerável simpatia por essas pessoas e pelo que estão fazendo em Porto Alegre.
Escrevo esse texto antes do processo de desocupação, previsto para o comecinho da manhã de segunda-feira. Não sei, portanto, como a coisa se dará - espero que de forma tranquila, já que tenho certeza que nenhum dos lados está interessado em qualquer situação incontrolável. Também não sei se a decisão do Bloco de Lutas de acompanhar das tribunas a sessão da tarde de segunda-feira será levada a cabo - e o que se dará depois dela, caso haja mesmo sessão. Mas acredito que, mesmo com eventuais críticas ao processo (como o impedimento total a muitos veículos de imprensa de entrar no plenário, o que considero humildemente um equívoco), seja possível dizer que o movimento sairá triunfante - pois conseguiu expor algumas coisas, acentuar outras, e deixar muito clara a necessidade urgente de repensar muitas coisas no modo como nos relacionamos com a política, em todas as suas esferas.
Não é mais tolerável, por exemplo, que empresas cujas identidades desaparecem em meio a consórcios explorem um serviço público e fundamental para a população sem que ninguém tenha noção real de quanto lucram com isso. Não é aceitável que estejamos há mais de duas décadas esperando uma licitação em serviço de tamanha importância. Não é correto que qualquer diminuição no valor das passagens venha de deduções de imposto e outras medidas nas quais é o governo que abre mão de dinheiro, enquanto os pedidos de aumento de passagem são sempre aceitos rapidamente pelo comitê que os analisa. Talvez não seja de fato possível uma passagem 100% livre em cidades de grande população, mas é difícil crer que não seja possível diminuir os custos a um valor racional - especialmente porque não é luxo ou privilégio usar ônibus em Porto Alegre ou em qualquer uma das grandes cidades brasileiras: é uma necessidade inarredável. Essas questões todas o Bloco trouxe ao debate, e não será fácil retirá-las de pauta. Se isso não é uma vitória do movimento, não consigo sequer imaginar o que seria.
A incapacidade dos políticos eleitos em compreender o caráter desse movimento é bastante visível. Não diria que o vereador Thiago Duarte, presidente da Câmara, seja o único responsável pela dificuldade de diálogo: acompanhando o caso como repórter, pude perceber que ele estava sob grande pressão de muitos colegas de Casa, que não deram as caras na Câmara mas muito se mexeram nos bastidores. Fico aliviado que se tenha evitado uma solução truculenta (algo que deve ser atribuído em grande medida aos vereadores de oposição, que atuaram intensamente para evitar medidas do tipo), e acho que o sr. Thiago Duarte também deve comemorar esse desfecho, mesmo que nem sempre tenha atuado nesta direção. Cabe deixar claro, porém, que os nobres vereadores não são vítimas de coisa alguma: contribuíram decisivamente para que ocorresse a ocupação, ao derrubar todas as emendas que buscavam maior transparência no transporte coletivo, em evidente proteção ao interesse dos empresários do setor.
É difícil, estando dentro do momento histórico, compreendê-lo completamente, de forma que qualquer tentativa de leitura corre o risco de ficar velha em questão de segundos. Mas me parece claro que estamos vendo, mais que o nascimento, a legitimação ativa de novos atores políticos - um processo que, aqui em Porto Alegre, ganhou fôlego a partir do episódio do Tatu-Bola, em outubro do ano passado, embora já viesse ocorrendo desde bem antes disso. A movimentação da sociedade civil (esse mesmo povo que adoravam chamar de "alienado" e "desligado da política") lançou o país em uma linda e intensa ebulição - e haverá quem considere isso ruim? Não era exatamente disso que precisávamos, que pedíamos dentro de nós há tanto tempo? O que haverá a temer?
A mudança é barulhenta, é confusa, às vezes confude a si mesma. Nos leva de arrasto, em outras. Não nos pede licença nem pergunta se estamos de acordo: quando está madura, simplesmente surge, e cabe a nós ter fôlego e disposição para juntar-se a ela em sua marcha. Gostem ou não da mudança, e seja lá no que ela resultará, o fato é que ela está em andamento em Porto Alegre - e foi o que pude ver quando entrei no plenário da Câmara, na última quarta-feira e nos dias seguintes. A quem tem, como eu, a pretensão de dar testemunho das coisas do mundo, não cabe aprovar ou desaprovar a mudança - é meu dever observá-la, entender o melhor possível, relatar. Porque ninguém, nem mesmo os próprios atores da mudança, sabe para onde ela irá. Só há uma certeza: ela não vai parar. A desocupação não é um fim; está mais para um recomeço. E está sendo muito enriquecedor ver tudo isso acontecer.
Entrei pela primeira vez na Câmara ocupada de Porto Alegre ainda na quarta-feira, quando havia alguma lembrança de dia em meio à noite já quase completa. Muitas vezes estive na Câmara durante meus anos de trabalho jornalístico, fazendo desde cobertura de pautas até simplesmente assistindo uma ou outra sessão mais interessante - mas entrar lá naquele dia foi um pouco como conhecer a Câmara novamente, como se aquele fosse um lugar novo e, ao mesmo tempo, carregasse o espírito do reencontro dentro de si.
Estava bela e pulsante a Câmara de Porto Alegre - cheia de cartazes, palavras de ordem, música. Pessoas. Era um ambiente transbordante de boas intenções - que não se modificou nos dias seguintes, ainda que o natural desgaste de uma longa ocupação tenha ampliado algumas tensões. Uma ocupação de pessoas confiantes na validade de sua causa, dispostas a sacrificar várias coisas em nome de sua crença na mudança. Sou um entusiasta da mudança, alguém que sente dentro de si a necessidade imperiosa de redesenhar esse mundo injusto e absurdo; natural, portanto, que nutra considerável simpatia por essas pessoas e pelo que estão fazendo em Porto Alegre.
Escrevo esse texto antes do processo de desocupação, previsto para o comecinho da manhã de segunda-feira. Não sei, portanto, como a coisa se dará - espero que de forma tranquila, já que tenho certeza que nenhum dos lados está interessado em qualquer situação incontrolável. Também não sei se a decisão do Bloco de Lutas de acompanhar das tribunas a sessão da tarde de segunda-feira será levada a cabo - e o que se dará depois dela, caso haja mesmo sessão. Mas acredito que, mesmo com eventuais críticas ao processo (como o impedimento total a muitos veículos de imprensa de entrar no plenário, o que considero humildemente um equívoco), seja possível dizer que o movimento sairá triunfante - pois conseguiu expor algumas coisas, acentuar outras, e deixar muito clara a necessidade urgente de repensar muitas coisas no modo como nos relacionamos com a política, em todas as suas esferas.
Não é mais tolerável, por exemplo, que empresas cujas identidades desaparecem em meio a consórcios explorem um serviço público e fundamental para a população sem que ninguém tenha noção real de quanto lucram com isso. Não é aceitável que estejamos há mais de duas décadas esperando uma licitação em serviço de tamanha importância. Não é correto que qualquer diminuição no valor das passagens venha de deduções de imposto e outras medidas nas quais é o governo que abre mão de dinheiro, enquanto os pedidos de aumento de passagem são sempre aceitos rapidamente pelo comitê que os analisa. Talvez não seja de fato possível uma passagem 100% livre em cidades de grande população, mas é difícil crer que não seja possível diminuir os custos a um valor racional - especialmente porque não é luxo ou privilégio usar ônibus em Porto Alegre ou em qualquer uma das grandes cidades brasileiras: é uma necessidade inarredável. Essas questões todas o Bloco trouxe ao debate, e não será fácil retirá-las de pauta. Se isso não é uma vitória do movimento, não consigo sequer imaginar o que seria.
A incapacidade dos políticos eleitos em compreender o caráter desse movimento é bastante visível. Não diria que o vereador Thiago Duarte, presidente da Câmara, seja o único responsável pela dificuldade de diálogo: acompanhando o caso como repórter, pude perceber que ele estava sob grande pressão de muitos colegas de Casa, que não deram as caras na Câmara mas muito se mexeram nos bastidores. Fico aliviado que se tenha evitado uma solução truculenta (algo que deve ser atribuído em grande medida aos vereadores de oposição, que atuaram intensamente para evitar medidas do tipo), e acho que o sr. Thiago Duarte também deve comemorar esse desfecho, mesmo que nem sempre tenha atuado nesta direção. Cabe deixar claro, porém, que os nobres vereadores não são vítimas de coisa alguma: contribuíram decisivamente para que ocorresse a ocupação, ao derrubar todas as emendas que buscavam maior transparência no transporte coletivo, em evidente proteção ao interesse dos empresários do setor.
É difícil, estando dentro do momento histórico, compreendê-lo completamente, de forma que qualquer tentativa de leitura corre o risco de ficar velha em questão de segundos. Mas me parece claro que estamos vendo, mais que o nascimento, a legitimação ativa de novos atores políticos - um processo que, aqui em Porto Alegre, ganhou fôlego a partir do episódio do Tatu-Bola, em outubro do ano passado, embora já viesse ocorrendo desde bem antes disso. A movimentação da sociedade civil (esse mesmo povo que adoravam chamar de "alienado" e "desligado da política") lançou o país em uma linda e intensa ebulição - e haverá quem considere isso ruim? Não era exatamente disso que precisávamos, que pedíamos dentro de nós há tanto tempo? O que haverá a temer?
A mudança é barulhenta, é confusa, às vezes confude a si mesma. Nos leva de arrasto, em outras. Não nos pede licença nem pergunta se estamos de acordo: quando está madura, simplesmente surge, e cabe a nós ter fôlego e disposição para juntar-se a ela em sua marcha. Gostem ou não da mudança, e seja lá no que ela resultará, o fato é que ela está em andamento em Porto Alegre - e foi o que pude ver quando entrei no plenário da Câmara, na última quarta-feira e nos dias seguintes. A quem tem, como eu, a pretensão de dar testemunho das coisas do mundo, não cabe aprovar ou desaprovar a mudança - é meu dever observá-la, entender o melhor possível, relatar. Porque ninguém, nem mesmo os próprios atores da mudança, sabe para onde ela irá. Só há uma certeza: ela não vai parar. A desocupação não é um fim; está mais para um recomeço. E está sendo muito enriquecedor ver tudo isso acontecer.
terça-feira, 9 de julho de 2013
Trilha sonora: Armas de 68
Postado por
Igor Natusch
A primeira vez que ouvi "68 Guns" do The Alarm foi numa madrugada de dia de semana, sozinho na sala de casa, assistindo Clássicos MTV. Lembro que era um período em que eu ficava muitas madrugadas sozinho, acordado até altas horas, sem nenhum compromisso no dia seguinte - deve fazer quanto tempo isso, dez anos talvez, quem sabe um pouco mais? Não lembro - condensou na mente, virou memória sem tempo e sem referência, caldo de um passado que começa lá longe e não acaba nunca. Era algo comum na minha vida, de qualquer modo: ficar solitário na noite silenciosa, vendo vídeos de músicas que não conhecia, esperando alguma coisa acontecer. Algo que nem eu mesmo imaginava que fosse, e que demorei tempo para entender que ninguém mais poderia saber além de mim mesmo.
[caption id="attachment_534" align="alignleft" width="300"] Foto: Reprodução[/caption]
Seja como for, fiquei fascinado. Eram punks (ao menos, me pareciam punks), mas a música não era suja, tosca. Era algo além. Havia um clima de poesia no negócio: eram caras dizendo uma coisa muito sincera e, mais importante que isso, SÁBIA até certo ponto. Era um grito de guerra, mas era também sensível e generoso, ou ao menos assim me soava. Os próprios músicos, na minha visão de adolescente, pareciam caras prontos para lutar, mas não pelo direito de beber até cair ou caçar mulheres noite adentro. A causa deles me parecia mais pura, mais sincera e mais justa - ainda que eu não entendesse lá muito bem que causa fosse essa no fim das contas. E o nome do disco que aparecia nos créditos de abertura me fascinou também: Declaration. Que coisa mais linda, uma banda batizar seu disco de Declaration. É o mais forte e sincero dos nomes, quase como Augusto dos Anjos batizar seu único livro de Eu. Declaration. Declaration.
Na época, eu não tinha sequer computador em casa, que dirá as facilidades de hoje para baixar mp3. Vi o clipe, ele acabou e devo ter ficado alguns anos sem sequer ouvir aquela música de novo, apenas a memória do refrão gritando "68 Guns will never die" tocando no fundo do cérebro de vez em quando. Isso é algo que o pessoal uns anos mais novo jamais entenderá: a sensação de apenas lembrar de alguma música ou cena de filme, recriá-la na mente sempre com novos detalhes, fazê-la cada vez mais mítica e cheia de significado até que ocorra, por mágica ou investimento, o reencontro. Até mesmo algo como o mercantilismo cultural tem lá a sua parcela de encanto - no caso, o encanto de fazer com que pouco mais de três minutos de música transbordem de significado, e cada vez mais na medida em que se mantém longe dos sentidos, guardados apenas dentro da alma.
Hoje, é claro, tudo é diferente. Tenho a discografia completa do The Alarm em mp3 e aos poucos estou adquirindo tudo em CD. O Declaration penso seriamente em comprar em LP, inclusive. "68 Guns" nem é mais minha música favorita da banda - "Blaze of Glory" tomou esse lugar, sendo hoje em dia praticamente o Hino Nacional de Igor Natusch (busquem no YouTube, ouçam e entenderão). Não fico mais assistindo TV sozinho de madrugada, não existe mais Clássicos MTV e a própria MTV está à beira de não existir mais. Eu mesmo, embora não tenha mudado tanto assim, já não sou mais a mesma pessoa. Entrei e saí da faculdade, tenho emprego, projetos, amigos, amores, vivências. Buscas. Não estou mais só.
Mas acordei hoje com o coração meio inseguro, depois de ter dormido um pouco além do que gostaria, resquícios de um pesadelo transformando-se em ideias confusas dentro de mim - acordei me sentindo com 16 ou 17 anos de novo, em suma. E me surgiu na mente o refrão de "68 Guns" - não o refrão de verdade, o que está a um botão de distância e consigo hoje ouvir a qualquer instante, graças ao universo em rede. Ouvi o refrão da minha memória, muito mais grandioso e eloquente, o refrão que eu ouvia quando só existia a lembrança e que era quase uma lenda dentro de mim. Era o moleque inexperiente e recluso do meu passado gritando para o Igor Natusch mais velho e experiente, mas ainda cheio de incertezas: deixa de frescura, cara. Tua vida é ótima. Levanta e vamos em frente.
Eu escutei, claro.
68 Guns will never die.
http://youtu.be/gLK3k_0GHrg
[caption id="attachment_534" align="alignleft" width="300"] Foto: Reprodução[/caption]
Seja como for, fiquei fascinado. Eram punks (ao menos, me pareciam punks), mas a música não era suja, tosca. Era algo além. Havia um clima de poesia no negócio: eram caras dizendo uma coisa muito sincera e, mais importante que isso, SÁBIA até certo ponto. Era um grito de guerra, mas era também sensível e generoso, ou ao menos assim me soava. Os próprios músicos, na minha visão de adolescente, pareciam caras prontos para lutar, mas não pelo direito de beber até cair ou caçar mulheres noite adentro. A causa deles me parecia mais pura, mais sincera e mais justa - ainda que eu não entendesse lá muito bem que causa fosse essa no fim das contas. E o nome do disco que aparecia nos créditos de abertura me fascinou também: Declaration. Que coisa mais linda, uma banda batizar seu disco de Declaration. É o mais forte e sincero dos nomes, quase como Augusto dos Anjos batizar seu único livro de Eu. Declaration. Declaration.
Na época, eu não tinha sequer computador em casa, que dirá as facilidades de hoje para baixar mp3. Vi o clipe, ele acabou e devo ter ficado alguns anos sem sequer ouvir aquela música de novo, apenas a memória do refrão gritando "68 Guns will never die" tocando no fundo do cérebro de vez em quando. Isso é algo que o pessoal uns anos mais novo jamais entenderá: a sensação de apenas lembrar de alguma música ou cena de filme, recriá-la na mente sempre com novos detalhes, fazê-la cada vez mais mítica e cheia de significado até que ocorra, por mágica ou investimento, o reencontro. Até mesmo algo como o mercantilismo cultural tem lá a sua parcela de encanto - no caso, o encanto de fazer com que pouco mais de três minutos de música transbordem de significado, e cada vez mais na medida em que se mantém longe dos sentidos, guardados apenas dentro da alma.
Hoje, é claro, tudo é diferente. Tenho a discografia completa do The Alarm em mp3 e aos poucos estou adquirindo tudo em CD. O Declaration penso seriamente em comprar em LP, inclusive. "68 Guns" nem é mais minha música favorita da banda - "Blaze of Glory" tomou esse lugar, sendo hoje em dia praticamente o Hino Nacional de Igor Natusch (busquem no YouTube, ouçam e entenderão). Não fico mais assistindo TV sozinho de madrugada, não existe mais Clássicos MTV e a própria MTV está à beira de não existir mais. Eu mesmo, embora não tenha mudado tanto assim, já não sou mais a mesma pessoa. Entrei e saí da faculdade, tenho emprego, projetos, amigos, amores, vivências. Buscas. Não estou mais só.
Mas acordei hoje com o coração meio inseguro, depois de ter dormido um pouco além do que gostaria, resquícios de um pesadelo transformando-se em ideias confusas dentro de mim - acordei me sentindo com 16 ou 17 anos de novo, em suma. E me surgiu na mente o refrão de "68 Guns" - não o refrão de verdade, o que está a um botão de distância e consigo hoje ouvir a qualquer instante, graças ao universo em rede. Ouvi o refrão da minha memória, muito mais grandioso e eloquente, o refrão que eu ouvia quando só existia a lembrança e que era quase uma lenda dentro de mim. Era o moleque inexperiente e recluso do meu passado gritando para o Igor Natusch mais velho e experiente, mas ainda cheio de incertezas: deixa de frescura, cara. Tua vida é ótima. Levanta e vamos em frente.
Eu escutei, claro.
68 Guns will never die.
http://youtu.be/gLK3k_0GHrg
domingo, 7 de julho de 2013
O Mercado vive
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_530" align="alignnone" width="960"] Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]
Fui até o Mercado com o coração cheio de dor. A notícia, como todos sabem, era terrível: ardia em chamas o Mercado Público de Porto Alegre, agonizava e sumia diante de nossos olhos um dos únicos locais ainda capazes de agregar a população da grande cidade em busca do próprio espírito. Hesitei um pouco em ir até lá: mais do que a eventual sensação de inutilidade em minha jornada, meu coração temia explodir em dor diante do Mercado, que tanto amo e tanto amor me trouxe em tantas situações, em um momento que parecia ser o de sua morte. Mas meus colegas de redação estavam lá, precisando de minha presença, e não me vi mais em condições de fugir: peguei o crachá, vesti as primeiras roupas que achei e lancei-me na noite cinza de chuva e fumaça, cinzenta no coração dos homens e nas perspectivas do que viria.
"Vamos direto para o fogo, meu amigo", disse eu ao taxista, e de mais informações ele não precisou para entender perfeitamente o que eu dizia. O motorista foi rápido, sério e profissional: entendeu minha pressa e a gravidade da situação, deslocando-se com agilidade rumo ao coração da cidade. Antes de chegar ao Estádio Beira-Rio já sentíamos o cheiro da fumaça. "Estão defumando a cidade", brincou ele, mas nenhum de nós riu. A nenhum de nós a situação parecia divertida.
Pelo caminho, enquanto tomava rápidas notas no caderno que puxei da escrivaninha e me servia como bloco de notas naquela pauta inesperada, imagens do Mercado Público me ocorriam à mente. Caminhadas em meio às bancas, leituras sentado em mesas de pedra, aguardando o ônibus, parando para contemplar. Dando a volta pelo prédio de ponta a ponta, apenas pelo prazer de observá-lo e observar as pessoas. Uma noite recente, sentado no meio do Largo Glênio Peres, cercado de alegria e de vida, a sombra do Mercado caindo sobre nós. O Mercado Público é mais que um prédio ou ponto de referência: é um ponto central da minha memória afetiva, uma espécie de marco zero para os corajosos, os que ainda ousam amor na cidade que luta para não ser totalmente corrompida pelo cinza. É onde meu coração porto-alegrense fincou seus alicerces. Um lugar que amo. E quem morará nessa cidade e não terá amor pelo Mercado Público, pela sua insistência em dizer que somos mais que ir e voltar do trabalho, que somos mais do que passar correndo pela vida, que algo permanece, que certas coisas que somos existem além de todos nós?
Com certo esforço, consigo controlar as lágrimas.
Paguei a corrida em questão de segundos, desci do táxi e rumei pela Borges de Medeiros, caminhando com dolorida pressa, me esforçando para enxergar o cadáver no meio da fumaça.
Não havia cadáver, porém.
As chamas ainda eram visíveis. Janelas do andar superior cintilavam com fagulhas vermelhas, sombras insinuavam movimentos enquanto eram assediadas pela cor inconfundível e indescritível das chamas. Parte do teto já não existia mais. Uma solitária escada Magirus tentava fazer o trabalho que talvez dez delas não conseguissem cumprir. Corajosos homens corriam e lutavam para que o fogo não exigisse ainda mais terreno para si, enquanto curiosos oscilavam entre a surpresa, o quase divertimento e as lágrimas. A chuva estava ausente. Não havia muito ruído, mas havia muita confusão. E o Mercado continuava de pé, no lugar onde sempre esteve, as chamas devorando-o por cima, cambaleando diante do incêndio. Ferido.
Mas vivo.
Não sou capaz de descrever a sensação que tive naquele momento. Foi mais que um alívio; foi como uma descarga de energia, uma breve epifania, uma revelação. O Mercado não ia cair, não ia arder até o chão, não ia transformar-se totalmente em cinza diante dos nossos olhos chorosos e incrédulos. Não era o fim: era dor e era incerteza e era destruição e separação, mas não era o fim. Não tinham tirado tudo de nós, no fim das contas: o Mercado continuava lá. Continuávamos lá, junto com ele. E sorri abertamente, algumas das lágrimas há muito sufocadas encontrando vazão pelo rosto abaixo. Mas não mais por luto. Não mais.
"Vamos precisar reconstruir essa cidade", disse eu a um casal de amigas, algumas das boas pessoas que me emprestaram um pouco de afeto no meio da desordem. Agora, pensando a respeito dela, sinto-a ainda mais verdadeira. Porque é isso, não é? Reerguer o Mercado é, de certa forma, reerguer Porto Alegre - e ambas são urgências, ambas são necessidades inarredáveis se queremos salvar o que de melhor nós fomos, somos e podemos ser. Há, de fato, uma cidade esperando por nós. Ela resiste, porque ela é forte, mas precisamos ajudá-la a não desaparecer - seja em meio ao fogo, seja em meio à frieza de um cotidiano terrível e intolerável. Precisamos voltar. Os corajosos, os que ainda ousamos amor em meio ao cinza: somos nós os que não podemos recuar. Que venha o fogo: não viraremos cinza.
Fui até o Mercado com o coração cheio de dor. A notícia, como todos sabem, era terrível: ardia em chamas o Mercado Público de Porto Alegre, agonizava e sumia diante de nossos olhos um dos únicos locais ainda capazes de agregar a população da grande cidade em busca do próprio espírito. Hesitei um pouco em ir até lá: mais do que a eventual sensação de inutilidade em minha jornada, meu coração temia explodir em dor diante do Mercado, que tanto amo e tanto amor me trouxe em tantas situações, em um momento que parecia ser o de sua morte. Mas meus colegas de redação estavam lá, precisando de minha presença, e não me vi mais em condições de fugir: peguei o crachá, vesti as primeiras roupas que achei e lancei-me na noite cinza de chuva e fumaça, cinzenta no coração dos homens e nas perspectivas do que viria.
"Vamos direto para o fogo, meu amigo", disse eu ao taxista, e de mais informações ele não precisou para entender perfeitamente o que eu dizia. O motorista foi rápido, sério e profissional: entendeu minha pressa e a gravidade da situação, deslocando-se com agilidade rumo ao coração da cidade. Antes de chegar ao Estádio Beira-Rio já sentíamos o cheiro da fumaça. "Estão defumando a cidade", brincou ele, mas nenhum de nós riu. A nenhum de nós a situação parecia divertida.
Pelo caminho, enquanto tomava rápidas notas no caderno que puxei da escrivaninha e me servia como bloco de notas naquela pauta inesperada, imagens do Mercado Público me ocorriam à mente. Caminhadas em meio às bancas, leituras sentado em mesas de pedra, aguardando o ônibus, parando para contemplar. Dando a volta pelo prédio de ponta a ponta, apenas pelo prazer de observá-lo e observar as pessoas. Uma noite recente, sentado no meio do Largo Glênio Peres, cercado de alegria e de vida, a sombra do Mercado caindo sobre nós. O Mercado Público é mais que um prédio ou ponto de referência: é um ponto central da minha memória afetiva, uma espécie de marco zero para os corajosos, os que ainda ousam amor na cidade que luta para não ser totalmente corrompida pelo cinza. É onde meu coração porto-alegrense fincou seus alicerces. Um lugar que amo. E quem morará nessa cidade e não terá amor pelo Mercado Público, pela sua insistência em dizer que somos mais que ir e voltar do trabalho, que somos mais do que passar correndo pela vida, que algo permanece, que certas coisas que somos existem além de todos nós?
Com certo esforço, consigo controlar as lágrimas.
Paguei a corrida em questão de segundos, desci do táxi e rumei pela Borges de Medeiros, caminhando com dolorida pressa, me esforçando para enxergar o cadáver no meio da fumaça.
Não havia cadáver, porém.
As chamas ainda eram visíveis. Janelas do andar superior cintilavam com fagulhas vermelhas, sombras insinuavam movimentos enquanto eram assediadas pela cor inconfundível e indescritível das chamas. Parte do teto já não existia mais. Uma solitária escada Magirus tentava fazer o trabalho que talvez dez delas não conseguissem cumprir. Corajosos homens corriam e lutavam para que o fogo não exigisse ainda mais terreno para si, enquanto curiosos oscilavam entre a surpresa, o quase divertimento e as lágrimas. A chuva estava ausente. Não havia muito ruído, mas havia muita confusão. E o Mercado continuava de pé, no lugar onde sempre esteve, as chamas devorando-o por cima, cambaleando diante do incêndio. Ferido.
Mas vivo.
Não sou capaz de descrever a sensação que tive naquele momento. Foi mais que um alívio; foi como uma descarga de energia, uma breve epifania, uma revelação. O Mercado não ia cair, não ia arder até o chão, não ia transformar-se totalmente em cinza diante dos nossos olhos chorosos e incrédulos. Não era o fim: era dor e era incerteza e era destruição e separação, mas não era o fim. Não tinham tirado tudo de nós, no fim das contas: o Mercado continuava lá. Continuávamos lá, junto com ele. E sorri abertamente, algumas das lágrimas há muito sufocadas encontrando vazão pelo rosto abaixo. Mas não mais por luto. Não mais.
"Vamos precisar reconstruir essa cidade", disse eu a um casal de amigas, algumas das boas pessoas que me emprestaram um pouco de afeto no meio da desordem. Agora, pensando a respeito dela, sinto-a ainda mais verdadeira. Porque é isso, não é? Reerguer o Mercado é, de certa forma, reerguer Porto Alegre - e ambas são urgências, ambas são necessidades inarredáveis se queremos salvar o que de melhor nós fomos, somos e podemos ser. Há, de fato, uma cidade esperando por nós. Ela resiste, porque ela é forte, mas precisamos ajudá-la a não desaparecer - seja em meio ao fogo, seja em meio à frieza de um cotidiano terrível e intolerável. Precisamos voltar. Os corajosos, os que ainda ousamos amor em meio ao cinza: somos nós os que não podemos recuar. Que venha o fogo: não viraremos cinza.