São Paulo. Cercanias do natal. Voltava para meu refúgio, pensando na vida e no que ainda precisava resolver para a viagem de fim de ano até o Sul, quando o típico barulho na janela do ônibus despertou minha atenção. Chuva – uma rajada forte, violenta, do tipo que aparece quase de surpresa para jogar São Paulo no caos. Companheira de todos os atrasos e engarrafamentos, alguém poderia dizer. Vinha eu tão distraído que nem imaginei que pudesse chover – e é claro que não trazia comigo nenhum guarda-chuva nem nada do tipo. Ou seja, assim que eu saísse daquele ônibus, estaria à mercê do poder inclemente da Natureza – ou, falando sem poesia, ia tomar um belo de um caldo.
Pensei rapidamente nas minhas chances de fuga e concluí que a melhor coisa seria descer uma parada depois do originalmente previsto. Nesse caso, além de me proteger embaixo do teto da parada de ônibus, mais amplo do que o de onde geralmente desço, teria a chance de me esconder no toldo de uma padaria logo à frente, caso a coisa continuasse preta como estava. Não era o plano mais infalível do mundo, mas era o que tínhamos para o momento, de modo que o segui à risca. Fui até a parada, desci rapidamente para não me molhar e ali fiquei, totalmente ilhado, já que a chuva estava pesada e não tinha jeito de que ia aliviar de jeito nenhum. Situação complicada, essa – próximo do abrigo definitivo, mas sem a menor perspectiva de conseguir chegar até ele naquelas condições. Nessas horas, sempre penso que deveria arranjar um guarda-chuva para mim um dia desses – mas nunca gostei de carregar guarda-chuva, além de ser patologicamente acomodado, então vou levando e pensando com meus botões que desta vez passa, que na próxima oportunidade eu compro um, sim Deus, eu prometo. Sempre em vão. Deus já deve ter se acostumado, a essa altura.
Fiquei sozinho na parada até que duas mulheres chegaram, um pouco apressadas e conversando alto entre si. Pararam debaixo da parada de ônibus, fecharam seus guarda-chuvas e ficaram ali, retomando o fôlego enquanto esperavam o ônibus que as levaria para casa. Imagino, pela semelhança física e pela diferença de idade, que fossem parentes, talvez mãe e filha; uma senhora com o rosto emoldurado pelos primeiros cabelos brancos e uma moça de vinte e poucos anos, ambas de pele negra, roupas simples e o ar de dignidade despreocupada típico das pessoas humildes que nada devem a ninguém. A mais jovem, aliás, era uma moça muito bonita – cheia daquela beleza que, por não encaixar nos padrões que tentam jogar todos os dias para cima de nós, acaba sendo assumida por muitos como beleza menor, ou como se nem beleza fosse. Era bonito o modo como ela sorria enquanto falava, um sorriso de dentes perfeitos e de uma alegria despretensiosa e sem disfarces. Era bonito o modo como ela prendia o cabelo em um pequeno coque logo acima da nuca, e era bonito o pescoço que surgia pela gola da blusa cor de vinho que aquela moça vestia. Era bonita a cintura que às vezes se revelava entre a mesma blusa cor de vinho e o jeans sem cinto que a moça usava, e e era bonita a maneira como ela se inclinava de leve para ver se o ônibus vinha de trás da curva da rua. E eu confesso que fiquei ali, admirando discretamente aquela beleza que talvez nem se soubesse bonita, um pequeno e agradável consolo no meio daquela metrópole encharcada de trânsito, de chuva e de solidão.
Ficaram as duas ali talvez uns cinco minutos, rindo e conversando, até que o ônibus chegou e as levou para algum lugar longe do meu mundo e da minha vista. Fiquei de novo sozinho. Passei com certeza uns dez minutos mais ali, sozinho, as pilhas do mp3 player gastas, ouvindo apenas o som da chuva e o compasso repetitivo dos meus pensamentos. Até que alguma coisa me ocorreu, um impulso repentino me disse para dar uma olhada para trás, para os assentos de ferro cobertos de gotas de chuva. E o que eu vi? Um guarda-chuva. Um guarda-chuva enorme, vermelho e chamativo – que logo reconheci como o guarda-chuva da moça bonita que até menos de quinze minutos havia estado ali, naquela parada de ônibus, alegrando um pouco meus olhos enquanto esperava condução para a casa. Aparentemente, a moça o deixou ali por algum motivo qualquer, talvez para que o excesso de água escorresse, talvez para ajeitar alguma coisa nas suas roupas ou pegar algo na bolsa ou qualquer coisa do tipo. E, na pressa de subir no ônibus, o esqueceu atrás de si, deixando-o deitado entre os assentos pronto para ser útil a algum anônimo da cidade. Mais especificamente, para mim.
Hesitei um pouco, admito. Me pareceu coincidência demais, um guarda-chuva enorme daqueles, esquecido em cima de uma fileira de assentos em um momento em que chovia tanto naquela área da cidade. Em um dos cantos do tecido, estava o logo do Shopping Pátio Paulista, além de uma mensagem alusiva ao 455º aniversário de São Paulo. Estaria quebrado? Peguei-o e testei rapidamente: uma das pontas estava solta, mas fora isso funcionava perfeitamente. Ninguém em sã consciência deixaria intencionalmente para trás aquele guarda-chuva só por causa disso. Pensei um pouco, medi os prós e contras da situação, e não deu para disfarçar um sorriso quando finalmente decidi aceitar a gentil oferta do Destino, abrir o guarda-chuva e encarar, agora totalmente protegido da tormenta, o caminho de volta para o lar.
Ainda não me decidi se foi a moça quem, sem saber, me deu um singelo presente de Natal, ou se foi a cidade de São Paulo que, por meio dela, resolveu mandar um sinal de que vai com a minha cara. Na verdade, podem ser as duas coisas ao mesmo tempo, por que não? Seja como for, fiquei sinceramente muito agradecido, e fui embora desejando Feliz Natal para a moça bonita da parada de ônibus, para a cidade de São Paulo e para todos os que amo, amei e ainda virei a amar. Imagino que o espírito natalino seja isso, no fim das contas.