[caption id="attachment_284" align="alignleft" width="300" caption="Foto: zoetnet / flickr"][/caption]
Publicado originalmente em 03 de junho de 2008
Há várias semanas, encontrei um passarinho caído no meio-fio, morrendo. Eu estava na parada de ônibus, esperando para ir para casa – devia ser umas seis e meia de um sábado ou domingo, e estava chovendo um chuva fraquinha, daquelas que mais incomodam do que molham de fato. Estava lá, sozinho, distraído com meu mp3 player e meus pensamentos, quando vi com o canto do olho um movimento no meio das folhas secas caídas na sarjeta. Sou curioso, sempre fui; e quando me abaixei para ver o que era, pude ver que era um passarinho bem pequeno, todo molhado e tremendo de frio. Parecia ser bem novo, talvez um bichinho que tinha caído do ninho e não tinha condições de voltar sozinho para lá. Olhei para a árvore logo acima de nós: pelo menos uns cinco ou seis metros de altura nos separavam dos galhos mais baixos, de modo que qualquer tentativa de colocar a criaturinha de volta no ninho, estivesse ele onde estivesse, seria uma perda de tempo.
O bichinho estava, portanto, condenado – e talvez seja excesso de sentimentalismo meu, mas acho que ele mesmo já tinha percebido isso muito claramente. Soltava uns sons meio lamentosos e tinha um ar de desânimo muito particular, levemente ofendido, como se julgasse a si mesmo vítima de uma brincadeira muito sem graça. Não estava exatamente ferido, mas não tinha a menor chance de sair sozinho daquela situação em que estava – e, depois de breve reflexão, percebi que eu mesmo não podia fazer nada para ajudá-lo. Desliguei o aparelho de mp3, me abaixei um pouco mais e fiquei olhando para o bichinho, pensando em algumas coisas - e sei lá por quê, me lembrei de uma coisa que aconteceu quando eu estava na quarta ou quinta série, e na qual não pensava há muitos e muitos anos.
Era um dia de muito sol, e eu e alguns amigos estávamos brincando no colégio onde estudávamos. Acho que a aula tinha acabado mais cedo, não lembro: eu sei que estávamos livres, sem ter o que fazer, e ficamos naquelas brincadeiras típicas de moleques de nove ou dez anos de idade. Alguns funcionários estavam reformando o telhado de um dos pavilhões onde tínhamos aula, e retirando coisas do forro para poderem prosseguir com seu trabalho, quando um deles achou um ninho entre a serragem e as telhas. No ninho, um pássaro magro, de olhos ainda fechados, com a boca escancarada e gritando por comida. Não sei que tipo de passarinho era, mas lembro claramente da imagem do bicho indefeso, sem uma única pena no corpo, pedindo um alimento que nunca ia chegar.
Ficamos, obviamente, com muita pena do pobre bicho, e um de nós perguntou para o homem que segurava a telha com o ninho se tinha um jeito de devolver o bichinho para sua mãe. Com a visão simples de vida dos homens rudes, ele nos desencorajou: a mãe não conseguiria mais encontrar o filhote e ele não teria como comer, então estava perdido e não havia o que pudesse ser feito por ele. Ficamos tristes, claro, mas aceitamos com certa resignação as palavras do adulto que sentenciava a morte do passarinho – menos um de nós, que decidiu que não ia deixar o bicho morrer de jeito nenhum. Lembro que o nome do menino era Christian – um moleque pobre, cheio de irmãos, que não se destacava de modo especial na nossa turma e que andava conosco mais por não ter com quem andar do que por qualquer outra coisa. Fosse como fosse, tomou o ninho nas mãos e colocou-se na tarefa de salvar a vida do passarinho condenado: fez alguns afagos na cabeça do bicho, amassou minhocas para que ele comesse e até mesmo subiu em uma árvore, procurando um galho firme para colocar o ninho antes de ir embora. O homem que falou conosco tentou desmotivá-lo ao esforço inútil, mas logo desistiu – não sei se percebeu que o menino teria que aprender sozinho sua lição ou se apenas estava ocupado demais com as próprias tarefas para continuar envolvido com aquela história.
Lembro que fiquei olhando aquilo com certo distanciamento – talvez vocês não acreditem, mas sempre fui uma pessoa meio realista demais, desde muito jovem, e alguma coisa me dizia já naquele momento que o esforço do meu amigo seria inútil. Acho que ajudei ele um pouco, mas sem muito entusiasmo – se bem me lembro, os outros moleques presentes também não viam aquilo como algo muito divertido, para ser honesto. Mas o menino estava determinado de uma maneira que eu nunca tinha visto; e quando finalmente o sol começou a cair e fomos embora, ele disse que voltaria ao ninho, e que ia ajudar o bichinho a não morrer de fome. Acho que no outro dia o tal passarinho não estava mais lá; não sei se caiu do ninho, se foi devorado por algum outro bicho ou qualquer coisa do tipo. Seja como tenha sido, sumiu, o que encerrou o assunto. O tal Christian saiu do colégio em circunstâncias que não recordo e seguiu sua vida em algum lugar, de algum modo que eu não sei como foi; eu cresci, e agora estava lá, mais de quinze anos depois, agachado no meio-fio olhando para um passarinho que ia morrer, do mesmo modo que aquele outro tinha morrido, lá longe no passado.
Poderia dizer aqui que pensei na finitude da vida, em como tudo é frágil e dura tão pouco tempo e como no fundo nada disso faz diferença no grande plano que foi traçado (ou não) para nós e por aí vai. Mas seria mentira, porque na hora não pensei em nada disso: pensei, isso sim, em como devia ser desagradável morrer no meio da sujeira, molhado e longe de casa, e em como o pobre bicho deveria estar infeliz com aquilo tudo. Salvá-lo eu não podia; mas dar uma ajudinha a ele estava ao meu alcance e não me custaria nada. Meti a mão no bicho (que protestou mas sem muito entusiasmo), tirei ele daquele amontoado de folhas secas e restos de lixo e o coloquei num lugar um pouco mais seco – um canto coberto por algumas plantas e pedaços de madeira, onde a chuva não pingava diretamente nele. Desejei mentalmente boa sorte para o passarinho, limpei as mãos nas calças, virei as costas e fui pegar meu ônibus, sem olhar para trás. Não sei o que foi feito dele, mas posso imaginar como a história terminou.
Não sei exatamente por que resolvi escrever isso aqui. O fato em si já ocorreu faz algum tempo, já é notícia velha na minha vida, e passei um bom tempo sem pensar nele – só o recordei hoje, depois de um dia corrido de trabalho e de algumas conversas via internet. Não sei se a história tem uma moral, para ser honesto; mas, relembrando o que aconteceu e o que pensei durante o acontecimento, acho que finalmente entendi, muitos anos depois, o que levou meu amigo a agir como agiu naquela tarde ensolarada que hoje só existe na minha memória. Tolos fomos nós, de achar que ele queria salvar o passarinho; no fundo, talvez até de modo inconsciente, ele queria apenas dar uma ajuda para o bichinho. Talvez, nesse mundo de causas perdidas e de pequenas e grandes tragédias, isso seja tudo o que nos resta – dar uma mão para quem está por baixo, para que não seja tão ruim a sua jornada rumo ao momento final que espera por todos nós. Talvez o mundo fosse um pouquinho melhor se parássemos de querer salvá-lo com alguma fórmula mágica e passássemos apenas a dar uma ajudinha uns aos outros, para que no fim das contas o caminho de todo mundo ficasse menos chuvoso e pudéssemos, todos, ter um cantinho seco para morrer.
Não sei, não sei. Ando pensando em coisas estranhas ultimamente.