[caption id="attachment_312" align="aligncenter" width="300" caption="Foto: Pearlzenith / Flickr"][/caption]
"Por que estás me seguindo?"
"Não estou te seguindo. Esse é o meu caminho. Pelo jeito, é o mesmo que o teu."
"E como sabes que é meu caminho? O que sabes de mim?"
"Nada sei de ti. Apenas ando por aqui. É meu caminho, como te disse. Pensei que também fosse o teu."
"Se é ou não, é algo que não te diz respeito."
"Tudo bem."
"Não gosto disso. Não gosto que tu andes atrás de mim."
"Se quiseres, posso passar na tua frente. Ou ir a teu lado."
"E por que irias ao meu lado? Não te conheço!"
"Porque vamos pelo mesmo caminho, ora. Podemos fazer companhia um ao outro."
"É para rir. Não quero a companhia de um desconhecido. E não quero mais te ver por perto. Chega de conversa. Vai embora! Desaparece!"
O estranho sumiu. E voltou o homem a seu trajeto.
De vez em quando se voltava, para ver se o estranho tinha retornado, mas não. Estava só, como tinha exigido. E sozinho rumava por uma trilha cada vez mais penosa, cercado pela noite cinza e gelada, acompanhando apenas pela detestável sombra das árvores nuas.
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domingo, 29 de julho de 2012
segunda-feira, 23 de julho de 2012
A respeito do amor
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_309" align="alignright" width="300" caption="Foto: Glenn Rice"][/caption]
- Quem você ama? – ela tinha perguntado, os olhos azuis vincados de vermelho, o queixo tremendo em um descompasso de raiva e dor. Ela não gritou aquelas palavras: na verdade, elas saíram de modo controlado, quase sereno, como se fossem uma mera formalidade – ou, melhor dizendo, como se sua única função fosse servir de pretexto para uma resposta já esperada, já conhecida, mas que necessitava ser concretizada, dita em voz alta. No fundo, tudo aquilo era por demais óbvio, e ele deveria ter percebido de imediato qual seria a conclusão daquela história. Mas a verdade é que ele não percebeu. Não percebeu nada.
A madrugada estava fria, e ele se viu forçado a fechar o sobretudo antes que o vento da diagonal congelasse seus ossos. Suas mãos estavam enregeladas, mas não o agradava a idéia de pô-las no bolso: parecia algo casual demais, despreocupado demais, uma atitude vazia demais para não ser percebida – não encaixava no contexto, enfim. Como não trazia consigo luvas, contentou-se em esfregar as palmas frias uma contra a outra, na tentativa de mantê-las aquecidas. Chegou a esfregar as mãos no sobretudo por um momento, mas isso trouxe uma lembrança à sua mente, e logo desistiu do gesto. O céu estava limpo, e as estrelas brilhavam belas acima de sua cabeça, mas ele não se deteve para contemplá-las, nem mesmo ergueu os olhos para um vislumbre rápido que fosse. Tinha pressa, embora não se dirigisse a lugar algum em especial, e não tinha tempo para pensar nessas coisas.
Devia ter percebido a armadilha. Diabos, não era isso mesmo que ela sempre fazia? Sempre tinha sido muito cômodo para ela vestir o véu de vítima, por que teria mudado de atitude de uma hora para a outra? Idiota, isso é o que ele era: um idiota completo. Entrou de cabeça no jogo dela, dançou conforme a música, e agora não adiantava mais se lamentar. Era tarde demais.
As ruas estavam desertas. Embora o sobretudo fechado fosse efetivo no sentido de aquecer seu corpo, suas mãos sofriam, e os cabelos se desarrumavam com o vento gelado. Lamentou a pressa com que tivera que sair de casa, e a confusão mental que o impediu de pegar as luvas e colocar o chapéu. De fato, foi tudo tão rápido que nem mesmo tinha certeza de ter fechado a porta corretamente. Ficou imaginando os vizinhos alertados pelo barulho, curiosos se aglomerando na frente de seu apartamento, espremendo-se diante da porta aberta, vendo aquela cena, a bagunça, o sangue... Ah, era melhor não pensar naquelas coisas. Mais tarde, só bem mais tarde, trataria desse assunto. De qualquer modo, não pretendia mesmo voltar para casa, ao menos não antes do amanhecer. Havia algo que precisava fazer antes. Algo que não podia esperar.
Bem, na verdade era tudo perfeitamente explicável. Sim, ele havia bebido um bocado antes de voltar para casa, mas e daí? Um homem tem problemas a resolver, dificuldades que o afligem, estresses e incomodações; será tão absurdo assim tomar uns goles para relaxar, para amortecer o espírito e aliviar a cabeça? E, que diabos, ele nem tinha bebido tanto assim! Sim, estava bem entorpecido, mas tinha encontrado o caminho do lar com suas próprias pernas, não tinha? Ninguém tinha precisado carregá-lo, e ele ainda era dono de si quando abriu a porta e deparou-se com o olhar furioso da esposa. Ele não ia dizer nada, nada! Ia direto para o quarto, bem quietinho, sem falar bobagens e sem criar problemas. E, droga, ele não tinha prometido nunca mais levantar a mão para sua mulher? Então! Qual era o problema? Se ele ainda tirasse dinheiro de casa para pagar suas bebedeiras, mas não! Ele ganhava bem, e nunca tinha faltado um centavo que fosse para as compras, para as prestações do apartamento ou para o que quer que fosse. Diabos, o que mais ela queria? Um homem não tinha direito a embebedar-se de vez em quando?
Fosse como fosse, estava sóbrio agora. Bem sóbrio. E essa situação não o agradava. Tinha que fazer algo a respeito com urgência. Um relógio eletrônico erguia-se um pouco longe no horizonte: quatro e treze da manhã. Diabos, era tarde. Mas ele acharia algum lugar aberto. Precisava achar. Se não achasse, ficaria pensando no que ocorreu, e isso era tudo que não queria, que não podia fazer no momento. Atravessou uma rua vazia, chutou um copo plástico vazio caído no chão, e cruzou a esquina na esperança de encontrar luzes acesas, som de vozes, qualquer indício da fugaz alegria que move os homens. Encontrou apenas outra rua vazia, com a mesma luz difusa das lâmpadas de néon e as mesmas portas cerradas e as mesmas janelas trancadas. Suspirou alto, mas não parou de andar: andar era tudo que restava a ele naquele momento.
- Quem você ama? – foi tudo o que ela perguntou, os olhos faiscando de ódio, o rosto bonito e ainda jovem transformado em algo estranho e ameaçador. Ele não lembrava de ter visto tanta amargura no rosto dela antes – nem mesmo nas manhãs mais cinzentas, sequência das noites em que perdia o controle e ia além das palavras ríspidas habituais. Era mais do que simples raiva ou desespero, expressões que ele conhecia muito bem depois de tantas noites como aquela – era algo novo, algo diferente, algo que o deixou imediatamente alerta e que o fez hesitar na soleira da porta. – Quem você ama? – ela perguntou de novo, e de algum modo fez ainda menos sentido do que da primeira vez. Ele chegou a abrir a boca para perguntar, para tentar entender que diabos ela queria saber, tentar fazer algum sentido sair daquele rosto e daquela pergunta e daquela amargura toda, mas não conseguiu dizer nada, pois foi naquele momento que ele viu. E que tudo ficou definitivamente caótico e fora de controle.
Viu uma luz ao longe, depois de atravessar uma rua negra como a morte e pisar com força em uma poça de água, o que trouxe ao seu corpo já castigado pelo frio o tormento adicional de uma meia molhada. Foi essa luz que finalmente trouxe alguma animação a seu espírito, e uma sombra de sorriso surgiu em seu rosto. Acelerou o passo, quase correu, na verdade – não que fosse necessário, pois o bar estava aberto e não iria fechar tão cedo, pela aparência da coisa. Dois fregueses habituais, daqueles que fogem de casa nas madrugadas e ocupam sempre a mesma mesa, estavam com copos cheios e não pareciam cogitar seriamente a possibilidade de irem embora. No balcão, um homem de barba mal feita contava empolgadamente uma história de cães vadios e latas de lixo a um barman pouco receptivo, que preferia se concentrar em alguns copos que acabara de lavar. Aparentemente, os copos precisavam ser secos, e isso precisava ser feito de maneira muito lenta e bastante escrupulosa. Nem mesmo o pedido do recém chegado freguês no balcão o tirou do momento meditativo, e só com a insistência um tanto agoniada do homem o barman foi retirado de sua distração, se pondo a pegar de modo um tanto desanimado uma garrafa já meio empoeirada no topo da estante. – Não, eu vou levar a garrafa – disse o homem quando o barman fez menção de servi-lo. – É meio caro – disse o barman, olhando de lado, e o homem disse que não fazia diferença. Mesmo porque não fazia mesmo.
Foi um pouco estranho perceber que sua esposa tinha uma faca na mão – uma faca de cozinha enorme e pontuda, que parecia até irreal ao ser empunhada pelas mãos pequenas e de dedos curtos daquela mulher. Foi como se tivesse passado um tempo enorme jogando sozinho, e de repente alguém viesse e dissesse que ele estava jogando errado o tempo todo. Era como de repente não saber mais quais eram as regras, e a sensação o deixou aturdido e contrariado. – Quem você ama? – ela perguntou uma vez mais, mas desta vez ele não viu qual era a expressão no rosto dela, os olhos fixos na arma afiada que balançava de modo inseguro na mão pequena e de dedos curtos que ele conhecia tão bem. Sentiu uma vontade maluca de parar de jogar, de desistir da brincadeira, de entrar em casa e tomar banho e trocar de roupa e jantar a comida quentinha que sua mãe havia preparado. Chegou a pensar de modo difuso em como era triste aquela cena, em como estava tudo errado, em como uma mão tão pequena e de dedos tão curtos não deveria jamais segurar uma faca tão enorme, ainda mais para usá-la contra seu marido. Mas foi um pensamento breve – logo tomado por outro, mais negro e mais terrível, que surgiu em sua mente como uma mancha de piche cobrindo todo o resto.
Não abriu a garrafa imediatamente, e não quis beber no bar, na presença daqueles homens estranhos que não tinham a menor idéia de quem era e do que tinha enfrentado. Saiu rapidamente, murmurando algo sobre o barman poder ficar com o troco, e não olhou para trás. Os passos, embora erráticos, eram firmes, e ele sabia o que queria encontrar, embora não exatamente onde seria possível encontrar o que procurava. Ouvia o som de um cão latindo ao longe, sentia o vento gelado em seu cabelo, mas não dava atenção a essas coisas, preocupado que estava com seus próprios problemas. Quando viu o lugar certo, deserto o suficiente para não esconder testemunhas e escuro o bastante para que não pudesse ver a si mesmo, sentiu-se brevemente tomado por um pouco de paz. Sentou-se com cuidado e certa afetação, como quem cumpre um velho e bem decorado ritual, e finalmente abriu a garrafa, com um movimento rápido de mão.
- Eu não amo ninguém – disse ele, com vontade, com satisfação, com um misto de orgulho e desprezo. A voz saiu quase sóbria, com uma convicção que surpreendeu a ele mesmo. Quem era ela para ameaçá-lo? Quem era essa mulher para tentar quebrar as regras de modo tão ridículo, tão insolente, pueril como um capítulo mal escrito de um livro barato? Ele era o homem da casa, o provedor, o mestre e senhor daquele lar. Não se ajoelharia. Olhou para o rosto transtornado da esposa, surpresa com a reviravolta, e sorriu com todos os dentes, abrindo os braços em um gesto de desafio. – Ninguém – repetiu, e avançou alguns passos, percebendo deliciado que a mulher recuava e gemia e começava a chorar e tremia da cabeça aos pés. Se ela não enxergava, ele a faria ver. Certamente que faria.
O primeiro gole da bebida caiu em sua garganta como uma bênção, e ele o sorveu com prazer e alívio. Foi bebendo gole após gole com sofreguidão, até sua boca arder e sua cabeça doer – e então parou, tossindo e apertando os olhos para fugir da sensação de sufocamento. Quando recuperou o fôlego, voltou a beber. E se manteve bebendo até a garrafa acabar, até perder os sentidos e adormecer sentado ali mesmo, sozinho, naquele canto escuro e anônimo onde ele era ninguém e ninguém o conhecia. De vez em quando, parava para tomar ar, e então via diante de seus olhos o rosto de sua mulher coberto de lágrimas, a mão pequena de dedos curtos levando a faca até o pescoço, e então o vermelho, céus, quanto vermelho, quanto sangue, e tudo tão estranho e tudo tão ridículo e tudo tão novo e assustador. Tudo tão errado, Deus, tão errado. Via tudo isso, e sacudia rápido a cabeça e bebia de novo. Em algum lugar longe, muito longe, o sol começava a surgir no horizonte.
- Quem você ama? – ela tinha perguntado, os olhos azuis vincados de vermelho, o queixo tremendo em um descompasso de raiva e dor. Ela não gritou aquelas palavras: na verdade, elas saíram de modo controlado, quase sereno, como se fossem uma mera formalidade – ou, melhor dizendo, como se sua única função fosse servir de pretexto para uma resposta já esperada, já conhecida, mas que necessitava ser concretizada, dita em voz alta. No fundo, tudo aquilo era por demais óbvio, e ele deveria ter percebido de imediato qual seria a conclusão daquela história. Mas a verdade é que ele não percebeu. Não percebeu nada.
A madrugada estava fria, e ele se viu forçado a fechar o sobretudo antes que o vento da diagonal congelasse seus ossos. Suas mãos estavam enregeladas, mas não o agradava a idéia de pô-las no bolso: parecia algo casual demais, despreocupado demais, uma atitude vazia demais para não ser percebida – não encaixava no contexto, enfim. Como não trazia consigo luvas, contentou-se em esfregar as palmas frias uma contra a outra, na tentativa de mantê-las aquecidas. Chegou a esfregar as mãos no sobretudo por um momento, mas isso trouxe uma lembrança à sua mente, e logo desistiu do gesto. O céu estava limpo, e as estrelas brilhavam belas acima de sua cabeça, mas ele não se deteve para contemplá-las, nem mesmo ergueu os olhos para um vislumbre rápido que fosse. Tinha pressa, embora não se dirigisse a lugar algum em especial, e não tinha tempo para pensar nessas coisas.
Devia ter percebido a armadilha. Diabos, não era isso mesmo que ela sempre fazia? Sempre tinha sido muito cômodo para ela vestir o véu de vítima, por que teria mudado de atitude de uma hora para a outra? Idiota, isso é o que ele era: um idiota completo. Entrou de cabeça no jogo dela, dançou conforme a música, e agora não adiantava mais se lamentar. Era tarde demais.
As ruas estavam desertas. Embora o sobretudo fechado fosse efetivo no sentido de aquecer seu corpo, suas mãos sofriam, e os cabelos se desarrumavam com o vento gelado. Lamentou a pressa com que tivera que sair de casa, e a confusão mental que o impediu de pegar as luvas e colocar o chapéu. De fato, foi tudo tão rápido que nem mesmo tinha certeza de ter fechado a porta corretamente. Ficou imaginando os vizinhos alertados pelo barulho, curiosos se aglomerando na frente de seu apartamento, espremendo-se diante da porta aberta, vendo aquela cena, a bagunça, o sangue... Ah, era melhor não pensar naquelas coisas. Mais tarde, só bem mais tarde, trataria desse assunto. De qualquer modo, não pretendia mesmo voltar para casa, ao menos não antes do amanhecer. Havia algo que precisava fazer antes. Algo que não podia esperar.
Bem, na verdade era tudo perfeitamente explicável. Sim, ele havia bebido um bocado antes de voltar para casa, mas e daí? Um homem tem problemas a resolver, dificuldades que o afligem, estresses e incomodações; será tão absurdo assim tomar uns goles para relaxar, para amortecer o espírito e aliviar a cabeça? E, que diabos, ele nem tinha bebido tanto assim! Sim, estava bem entorpecido, mas tinha encontrado o caminho do lar com suas próprias pernas, não tinha? Ninguém tinha precisado carregá-lo, e ele ainda era dono de si quando abriu a porta e deparou-se com o olhar furioso da esposa. Ele não ia dizer nada, nada! Ia direto para o quarto, bem quietinho, sem falar bobagens e sem criar problemas. E, droga, ele não tinha prometido nunca mais levantar a mão para sua mulher? Então! Qual era o problema? Se ele ainda tirasse dinheiro de casa para pagar suas bebedeiras, mas não! Ele ganhava bem, e nunca tinha faltado um centavo que fosse para as compras, para as prestações do apartamento ou para o que quer que fosse. Diabos, o que mais ela queria? Um homem não tinha direito a embebedar-se de vez em quando?
Fosse como fosse, estava sóbrio agora. Bem sóbrio. E essa situação não o agradava. Tinha que fazer algo a respeito com urgência. Um relógio eletrônico erguia-se um pouco longe no horizonte: quatro e treze da manhã. Diabos, era tarde. Mas ele acharia algum lugar aberto. Precisava achar. Se não achasse, ficaria pensando no que ocorreu, e isso era tudo que não queria, que não podia fazer no momento. Atravessou uma rua vazia, chutou um copo plástico vazio caído no chão, e cruzou a esquina na esperança de encontrar luzes acesas, som de vozes, qualquer indício da fugaz alegria que move os homens. Encontrou apenas outra rua vazia, com a mesma luz difusa das lâmpadas de néon e as mesmas portas cerradas e as mesmas janelas trancadas. Suspirou alto, mas não parou de andar: andar era tudo que restava a ele naquele momento.
- Quem você ama? – foi tudo o que ela perguntou, os olhos faiscando de ódio, o rosto bonito e ainda jovem transformado em algo estranho e ameaçador. Ele não lembrava de ter visto tanta amargura no rosto dela antes – nem mesmo nas manhãs mais cinzentas, sequência das noites em que perdia o controle e ia além das palavras ríspidas habituais. Era mais do que simples raiva ou desespero, expressões que ele conhecia muito bem depois de tantas noites como aquela – era algo novo, algo diferente, algo que o deixou imediatamente alerta e que o fez hesitar na soleira da porta. – Quem você ama? – ela perguntou de novo, e de algum modo fez ainda menos sentido do que da primeira vez. Ele chegou a abrir a boca para perguntar, para tentar entender que diabos ela queria saber, tentar fazer algum sentido sair daquele rosto e daquela pergunta e daquela amargura toda, mas não conseguiu dizer nada, pois foi naquele momento que ele viu. E que tudo ficou definitivamente caótico e fora de controle.
Viu uma luz ao longe, depois de atravessar uma rua negra como a morte e pisar com força em uma poça de água, o que trouxe ao seu corpo já castigado pelo frio o tormento adicional de uma meia molhada. Foi essa luz que finalmente trouxe alguma animação a seu espírito, e uma sombra de sorriso surgiu em seu rosto. Acelerou o passo, quase correu, na verdade – não que fosse necessário, pois o bar estava aberto e não iria fechar tão cedo, pela aparência da coisa. Dois fregueses habituais, daqueles que fogem de casa nas madrugadas e ocupam sempre a mesma mesa, estavam com copos cheios e não pareciam cogitar seriamente a possibilidade de irem embora. No balcão, um homem de barba mal feita contava empolgadamente uma história de cães vadios e latas de lixo a um barman pouco receptivo, que preferia se concentrar em alguns copos que acabara de lavar. Aparentemente, os copos precisavam ser secos, e isso precisava ser feito de maneira muito lenta e bastante escrupulosa. Nem mesmo o pedido do recém chegado freguês no balcão o tirou do momento meditativo, e só com a insistência um tanto agoniada do homem o barman foi retirado de sua distração, se pondo a pegar de modo um tanto desanimado uma garrafa já meio empoeirada no topo da estante. – Não, eu vou levar a garrafa – disse o homem quando o barman fez menção de servi-lo. – É meio caro – disse o barman, olhando de lado, e o homem disse que não fazia diferença. Mesmo porque não fazia mesmo.
Foi um pouco estranho perceber que sua esposa tinha uma faca na mão – uma faca de cozinha enorme e pontuda, que parecia até irreal ao ser empunhada pelas mãos pequenas e de dedos curtos daquela mulher. Foi como se tivesse passado um tempo enorme jogando sozinho, e de repente alguém viesse e dissesse que ele estava jogando errado o tempo todo. Era como de repente não saber mais quais eram as regras, e a sensação o deixou aturdido e contrariado. – Quem você ama? – ela perguntou uma vez mais, mas desta vez ele não viu qual era a expressão no rosto dela, os olhos fixos na arma afiada que balançava de modo inseguro na mão pequena e de dedos curtos que ele conhecia tão bem. Sentiu uma vontade maluca de parar de jogar, de desistir da brincadeira, de entrar em casa e tomar banho e trocar de roupa e jantar a comida quentinha que sua mãe havia preparado. Chegou a pensar de modo difuso em como era triste aquela cena, em como estava tudo errado, em como uma mão tão pequena e de dedos tão curtos não deveria jamais segurar uma faca tão enorme, ainda mais para usá-la contra seu marido. Mas foi um pensamento breve – logo tomado por outro, mais negro e mais terrível, que surgiu em sua mente como uma mancha de piche cobrindo todo o resto.
Não abriu a garrafa imediatamente, e não quis beber no bar, na presença daqueles homens estranhos que não tinham a menor idéia de quem era e do que tinha enfrentado. Saiu rapidamente, murmurando algo sobre o barman poder ficar com o troco, e não olhou para trás. Os passos, embora erráticos, eram firmes, e ele sabia o que queria encontrar, embora não exatamente onde seria possível encontrar o que procurava. Ouvia o som de um cão latindo ao longe, sentia o vento gelado em seu cabelo, mas não dava atenção a essas coisas, preocupado que estava com seus próprios problemas. Quando viu o lugar certo, deserto o suficiente para não esconder testemunhas e escuro o bastante para que não pudesse ver a si mesmo, sentiu-se brevemente tomado por um pouco de paz. Sentou-se com cuidado e certa afetação, como quem cumpre um velho e bem decorado ritual, e finalmente abriu a garrafa, com um movimento rápido de mão.
- Eu não amo ninguém – disse ele, com vontade, com satisfação, com um misto de orgulho e desprezo. A voz saiu quase sóbria, com uma convicção que surpreendeu a ele mesmo. Quem era ela para ameaçá-lo? Quem era essa mulher para tentar quebrar as regras de modo tão ridículo, tão insolente, pueril como um capítulo mal escrito de um livro barato? Ele era o homem da casa, o provedor, o mestre e senhor daquele lar. Não se ajoelharia. Olhou para o rosto transtornado da esposa, surpresa com a reviravolta, e sorriu com todos os dentes, abrindo os braços em um gesto de desafio. – Ninguém – repetiu, e avançou alguns passos, percebendo deliciado que a mulher recuava e gemia e começava a chorar e tremia da cabeça aos pés. Se ela não enxergava, ele a faria ver. Certamente que faria.
O primeiro gole da bebida caiu em sua garganta como uma bênção, e ele o sorveu com prazer e alívio. Foi bebendo gole após gole com sofreguidão, até sua boca arder e sua cabeça doer – e então parou, tossindo e apertando os olhos para fugir da sensação de sufocamento. Quando recuperou o fôlego, voltou a beber. E se manteve bebendo até a garrafa acabar, até perder os sentidos e adormecer sentado ali mesmo, sozinho, naquele canto escuro e anônimo onde ele era ninguém e ninguém o conhecia. De vez em quando, parava para tomar ar, e então via diante de seus olhos o rosto de sua mulher coberto de lágrimas, a mão pequena de dedos curtos levando a faca até o pescoço, e então o vermelho, céus, quanto vermelho, quanto sangue, e tudo tão estranho e tudo tão ridículo e tudo tão novo e assustador. Tudo tão errado, Deus, tão errado. Via tudo isso, e sacudia rápido a cabeça e bebia de novo. Em algum lugar longe, muito longe, o sol começava a surgir no horizonte.
terça-feira, 17 de julho de 2012
Do tempo que achavam que eu era colorado
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_303" align="alignleft" width="225" caption="Foto: Ingo Wilges"][/caption]
Publicado originalmente em 29 de junho de 2007
Como imagino que a essa altura muitos de vocês já saibam, sou gremista. Muito já sorri em nome do Grêmio, muito já xinguei, gritei, desanimei, sofri. Gremismo que eu herdei do meu pai, tricolor convicto, que acompanhou o clube por anos a fio e tinha uma série de itens referentes ao clube – alguns deles eu ainda guardo comigo, inclusive. Resumindo, sou do lado azul, preto e branco do Rio Grande, e assim será até o fim.
Pois bem, tinha um vizinho meu que achava que eu era colorado. Na verdade, não é que ele achasse: ele tinha certeza, absoluta e inquebrantável, de que eu era um torcedor do Internecional. Tratava-se de um senhor já velho e enfraquecido, que por ser provavelmente vítima de algum derrame ou reumatismo caminhava muito devagar e tinha que se segurar no que encontrasse pelo caminho para manter o equilíbrio. Morava num apartamento de térreo (como nosso condomínio não tem elevadores, nem poderia ser diferente), possivelmente sozinho – embora recebesse visitas constantes do filho, que o levava para o que certamente eram sessões de tratamento para qual fosse a moléstia que tinha. Falava meio baixo, arrastando a voz mas tinha um vocabulário razoavelmente rico, sinal de que era alguém estudado e culto. E colorado. Bem colorado.
Sabe-se lá de onde ele tirou a idéia de que eu era colorado também. Um dia, entretido em levar o cachorro da família para passear, cruzei pelo senhor em questão, que caminhava muito lentamente segurando as grades de ferro do jardim externo de seu edifício. Civilizadamente, cumprimento o homem e sigo meu caminho. Minutos depois, enquanto eu voltava pelo caminho de pouco antes, ele - que devia ter avançado menos de cinco metros entre minha ida e meu regresso - olha para mim e diz: “e esse Fernandão que contrataram, será que é bom mesmo?”. Pensei com meus botões que não faria mal algum dar um pouco de conversa para aquele senhor e disse que sim, o Fernandão era uma boa contratação, me parecia um jogador qualificado e por aí vai. Ele ficou muito contente de ouvir minhas considerações superficiais sobre o atleta, e quando me retirei fui cumprimentado com certa reverência, como se fosse um especialista em futebol e não um palpiteiro qualquer. Um evento ligeiramente curioso, mas enfim, vida que segue.
A partir daí, sempre que me via o senhor puxava assunto sobre o Internacional. Até aí tudo bem: mesmo não acompanhando o Inter com tanta dedicação, eu disfarçava, respondia do jeito que podia e íamos levando. Até que um dia aquele vagaroso senhor me cumprimenta como de praxe e diz “e aí, rapaz, e o nosso time?” antes de tecer uma consideração qualquer sobre a derrota colorada daquele fim de semana.
Imediatamente soou o alarme em minha mente, e percebi que o senhor não só achava que eu entendia horrores de futebol, mas que eu era um coloradaço de quatro costados, um entusiasta da camisa vermelha, talvez um frequentador assíduo da coreia, mas de qualquer modo um torcedor fiel e resoluto do Internacional. Na hora, cheguei a abrir a boca para dizer “alto lá, sou gremista” ou qualquer coisa de efeito semelhante, mas algo me deteve. Não sei o que foi, sinceramente – se foi pena de deixar o velho sem graça, se foi a vontade de evitar que eu mesmo ficasse sem graça ou qualquer outra coisa relativa a esses prováveis constrangimentos. O fato foi que eu respondi alguma coisa qualquer, disfarcei meu desconforto do jeito que pude e a conversa seguiu o seu amistoso rumo habitual.
Durante quase dois anos a rotina acabou sendo mais ou menos isso aí: eu saía de casa por algum motivo, encontrava o velho senhor que caminhava devagar e ficava uns dois ou três minutos fazendo o possível para que ele não percebesse que o colorado com o qual ele falava era na verdade um gremista sincero e convicto. Em minha defesa, fique registrado que nunca disse ser colorado ou fiz algo consciente no sentido de reforçar a opinião que o cidadão nutria a meu respeito: apenas respondia as perguntas com cordialidade, discorrendo sobre contratações e técnicos e posições em campeonatos. Nunca soube o nome dele, e tenho certeza que ele nunca me perguntou o meu. Éramos dois quase desconhecidos, unidos apenas pela proximidade das residências e pelo assunto Internacional. À época, o Grêmio lamentavelmente havia embarcado no Trovão Azul e viajado rumo ao Buraco do Amor da segunda divisão, e às vezes até se comentava em nossas conversas algo sobre o tricolor da Azenha – situações onde, evidentemente, eu era bem mais comunicativo e demonstrava muito mais entusiasmo nos comentários. De qualquer modo, duvido que ele, por um momento que seja, tenha achado que eu era outra coisa que não torcedor do Inter – e por muito tempo me vi eventualmente submetido a esse pequeno e inofensivo constrangimento.
Até que um dia o senhor sumiu. Demorou um pouco para eu me dar conta de seu desaparecimento: por acaso, enquanto eu voltava para casa um dia desses, me ocorreu a lembrança do senhor andando devagar que achava que eu era colorado e que eu nunca mais tinha visto, e fiquei me perguntando o que teria acontecido com ele. Na verdade, me pergunto até agora – só o que eu sei é que ele não mora mais no condomínio: o apartamento que era dele agora pertence a um jovem casal, que eu não sei quem são e que passam por mim e, por não me conhecerem, não me cumprimentam. Das duas, uma: ou o já bastante velho senhor tornou-se plenamente incapaz de morar sozinho e foi colocado em alguma clínica ou asilo, ou então morreu sem que sua passagem causasse maior comoção na vizinhança, não chegando assim o fato ao meu conhecimento. Não sei se ele teve a chance de acompanhar seu clube sendo campeão da América e do Mundo, ou se pôde recentemente vibrar com a conquista da Recopa. A verdade, enfim, é que não sei o que foi feito dele, e duvido muito que eu um dia volte a rever o velhinho que andava devagar e via em mim um companheiro na paixão pelo Internacional.
E agora me pergunto: será que eu deveria ter dito a ele que eu era gremista? Teria feito alguma diferença saber que o colorado de barba ruiva com o qual ele conversava na frente do seu prédio era na verdade um torcedor do Grêmio? Ou quem sabe ele até desconfiasse, mas mantivesse a farsa não-anunciada que havia entre nós pelo simples prazer de um dedo de prosa? Não sei, e não vou saber nunca. Mas é engraçado como as pessoas passam pelas nossas vidas e, mesmo que no fundo não tenham maior importância, acabam deixando sua marca, por mais indistinta que seja. Mesmo que eu encarasse as conversas como não mais do que um leve incômodo que não valia a pena desfazer, e que na verdade nunca tenha dado ao velho importância suficiente a ponto de perguntar qual era o seu nome, ele fez diferença – e daqui por diante sempre vou lembrar que, para pelo menos uma pessoa nesse mundo, eu era um colorado. Sabe lá Deus como, mas eu era. Espero que, de algum modo, tenha valido a pena.
Publicado originalmente em 29 de junho de 2007
Como imagino que a essa altura muitos de vocês já saibam, sou gremista. Muito já sorri em nome do Grêmio, muito já xinguei, gritei, desanimei, sofri. Gremismo que eu herdei do meu pai, tricolor convicto, que acompanhou o clube por anos a fio e tinha uma série de itens referentes ao clube – alguns deles eu ainda guardo comigo, inclusive. Resumindo, sou do lado azul, preto e branco do Rio Grande, e assim será até o fim.
Pois bem, tinha um vizinho meu que achava que eu era colorado. Na verdade, não é que ele achasse: ele tinha certeza, absoluta e inquebrantável, de que eu era um torcedor do Internecional. Tratava-se de um senhor já velho e enfraquecido, que por ser provavelmente vítima de algum derrame ou reumatismo caminhava muito devagar e tinha que se segurar no que encontrasse pelo caminho para manter o equilíbrio. Morava num apartamento de térreo (como nosso condomínio não tem elevadores, nem poderia ser diferente), possivelmente sozinho – embora recebesse visitas constantes do filho, que o levava para o que certamente eram sessões de tratamento para qual fosse a moléstia que tinha. Falava meio baixo, arrastando a voz mas tinha um vocabulário razoavelmente rico, sinal de que era alguém estudado e culto. E colorado. Bem colorado.
Sabe-se lá de onde ele tirou a idéia de que eu era colorado também. Um dia, entretido em levar o cachorro da família para passear, cruzei pelo senhor em questão, que caminhava muito lentamente segurando as grades de ferro do jardim externo de seu edifício. Civilizadamente, cumprimento o homem e sigo meu caminho. Minutos depois, enquanto eu voltava pelo caminho de pouco antes, ele - que devia ter avançado menos de cinco metros entre minha ida e meu regresso - olha para mim e diz: “e esse Fernandão que contrataram, será que é bom mesmo?”. Pensei com meus botões que não faria mal algum dar um pouco de conversa para aquele senhor e disse que sim, o Fernandão era uma boa contratação, me parecia um jogador qualificado e por aí vai. Ele ficou muito contente de ouvir minhas considerações superficiais sobre o atleta, e quando me retirei fui cumprimentado com certa reverência, como se fosse um especialista em futebol e não um palpiteiro qualquer. Um evento ligeiramente curioso, mas enfim, vida que segue.
A partir daí, sempre que me via o senhor puxava assunto sobre o Internacional. Até aí tudo bem: mesmo não acompanhando o Inter com tanta dedicação, eu disfarçava, respondia do jeito que podia e íamos levando. Até que um dia aquele vagaroso senhor me cumprimenta como de praxe e diz “e aí, rapaz, e o nosso time?” antes de tecer uma consideração qualquer sobre a derrota colorada daquele fim de semana.
Imediatamente soou o alarme em minha mente, e percebi que o senhor não só achava que eu entendia horrores de futebol, mas que eu era um coloradaço de quatro costados, um entusiasta da camisa vermelha, talvez um frequentador assíduo da coreia, mas de qualquer modo um torcedor fiel e resoluto do Internacional. Na hora, cheguei a abrir a boca para dizer “alto lá, sou gremista” ou qualquer coisa de efeito semelhante, mas algo me deteve. Não sei o que foi, sinceramente – se foi pena de deixar o velho sem graça, se foi a vontade de evitar que eu mesmo ficasse sem graça ou qualquer outra coisa relativa a esses prováveis constrangimentos. O fato foi que eu respondi alguma coisa qualquer, disfarcei meu desconforto do jeito que pude e a conversa seguiu o seu amistoso rumo habitual.
Durante quase dois anos a rotina acabou sendo mais ou menos isso aí: eu saía de casa por algum motivo, encontrava o velho senhor que caminhava devagar e ficava uns dois ou três minutos fazendo o possível para que ele não percebesse que o colorado com o qual ele falava era na verdade um gremista sincero e convicto. Em minha defesa, fique registrado que nunca disse ser colorado ou fiz algo consciente no sentido de reforçar a opinião que o cidadão nutria a meu respeito: apenas respondia as perguntas com cordialidade, discorrendo sobre contratações e técnicos e posições em campeonatos. Nunca soube o nome dele, e tenho certeza que ele nunca me perguntou o meu. Éramos dois quase desconhecidos, unidos apenas pela proximidade das residências e pelo assunto Internacional. À época, o Grêmio lamentavelmente havia embarcado no Trovão Azul e viajado rumo ao Buraco do Amor da segunda divisão, e às vezes até se comentava em nossas conversas algo sobre o tricolor da Azenha – situações onde, evidentemente, eu era bem mais comunicativo e demonstrava muito mais entusiasmo nos comentários. De qualquer modo, duvido que ele, por um momento que seja, tenha achado que eu era outra coisa que não torcedor do Inter – e por muito tempo me vi eventualmente submetido a esse pequeno e inofensivo constrangimento.
Até que um dia o senhor sumiu. Demorou um pouco para eu me dar conta de seu desaparecimento: por acaso, enquanto eu voltava para casa um dia desses, me ocorreu a lembrança do senhor andando devagar que achava que eu era colorado e que eu nunca mais tinha visto, e fiquei me perguntando o que teria acontecido com ele. Na verdade, me pergunto até agora – só o que eu sei é que ele não mora mais no condomínio: o apartamento que era dele agora pertence a um jovem casal, que eu não sei quem são e que passam por mim e, por não me conhecerem, não me cumprimentam. Das duas, uma: ou o já bastante velho senhor tornou-se plenamente incapaz de morar sozinho e foi colocado em alguma clínica ou asilo, ou então morreu sem que sua passagem causasse maior comoção na vizinhança, não chegando assim o fato ao meu conhecimento. Não sei se ele teve a chance de acompanhar seu clube sendo campeão da América e do Mundo, ou se pôde recentemente vibrar com a conquista da Recopa. A verdade, enfim, é que não sei o que foi feito dele, e duvido muito que eu um dia volte a rever o velhinho que andava devagar e via em mim um companheiro na paixão pelo Internacional.
E agora me pergunto: será que eu deveria ter dito a ele que eu era gremista? Teria feito alguma diferença saber que o colorado de barba ruiva com o qual ele conversava na frente do seu prédio era na verdade um torcedor do Grêmio? Ou quem sabe ele até desconfiasse, mas mantivesse a farsa não-anunciada que havia entre nós pelo simples prazer de um dedo de prosa? Não sei, e não vou saber nunca. Mas é engraçado como as pessoas passam pelas nossas vidas e, mesmo que no fundo não tenham maior importância, acabam deixando sua marca, por mais indistinta que seja. Mesmo que eu encarasse as conversas como não mais do que um leve incômodo que não valia a pena desfazer, e que na verdade nunca tenha dado ao velho importância suficiente a ponto de perguntar qual era o seu nome, ele fez diferença – e daqui por diante sempre vou lembrar que, para pelo menos uma pessoa nesse mundo, eu era um colorado. Sabe lá Deus como, mas eu era. Espero que, de algum modo, tenha valido a pena.
terça-feira, 3 de julho de 2012
No one ever thought this one would survive
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_298" align="alignleft" width="200" caption="Foto: Joel Knutson"][/caption]
É fato: ninguém imaginava que aquele moleque fosse sobreviver. Nasceu fraco e errado, moveu-se de forma indecisa pelos primeiros dias, parecia que ia cair de cara no chão a cada passo. Sempre calado. Sempre em dúvida, como quem não entende como as coisas funcionam no mundo. Não que não tenhamos tentado explicar: muitas e muitas vezes mostramos como as coisas eram, que era preciso fazer isso e aquilo, ser desse jeito e desse jeito, dizer isso, fazer aquilo, pensar pouco, andar. Em frente.
Mas não andava, o moleque. Ficava ali no canto, sentado, sozinho. Não fazia barulho. Imagina isso, um moleque que não faz barulho? Não tem como dar certo. Sei lá, parecia sempre meio assustado. Um moleque que tinha medo de tudo e em nada se encaixava. Era ridículo até, às vezes. E seguia tropeçando, seguia sem saber onde ir, o que dizer. Sem saber mentir.
Pensando bem, talvez fosse esse o problema. O moleque não sabia mentir. Até tentava, mas se enrolava todo, ficava confuso, tropeçava nas palavras e reações como quem tropeça nos próprios pés. Ficava pouco convincente. Fácil de desmascarar. Dava vontade de olhar para outro lado, sabe? Fingir que não estava vendo aquele moleque todo atrapalhado, incapaz de fingir, de se ajustar. Era dolorido de ver. E ele percebia que não estava dando certo, levantava e ia lá para o canto de novo. Ficava sozinho, meio cabisbaixo, murmurando alguma coisa que nunca entendi o que fosse. Talvez uma música, sei lá. Meio desafinado. Sozinho, ele e ele mesmo.
Não tinha como dar certo. E mesmo assim o moleque foi crescendo, ficando mais velho, virando adulto. Quer dizer, adulto não, que isso ele nunca foi. Não dá para chamar de adulto alguém incapaz de assumir responsabilidades. De ter um bom emprego, de ter amigos, ficar elegante, bonito. De ter várias garotas. Fazer sucesso. Crescer. Ter coisas. Como é que vai se chamar de adulto alguém que não consegue nada disso? Imaturo, isso sim. Nunca deixou de ser moleque e nunca vai deixar. Sempre com medo, sempre impressionado com as coisas do mundo. Não tem como.
Mesmo assim, sabe-se lá como, está aí. Vivo. Achamos todos que a qualquer momento, em qualquer dia desses, estaríamos em fila para colocar rosas na sua sepultura, dizendo que rapaz insistente, sempre tão perdido na vida, nunca se encaixou mas vá lá, que descanse, foi melhor assim, amém. Mas ele seguiu tropeçando, mancando, mentindo mal, desistindo de mentir. Seguiu. Sempre andando uma batida para trás - e depois, sabe lá Deus como, dando alguns passos para a frente, como quem recupera o ritmo só para se confundir de novo, alguns compassos adiante. E mesmo assim a música sai. E mesmo assim o moleque sobrevive.
Confesso que isso me confunde.
É fato: ninguém imaginava que aquele moleque fosse sobreviver. Nasceu fraco e errado, moveu-se de forma indecisa pelos primeiros dias, parecia que ia cair de cara no chão a cada passo. Sempre calado. Sempre em dúvida, como quem não entende como as coisas funcionam no mundo. Não que não tenhamos tentado explicar: muitas e muitas vezes mostramos como as coisas eram, que era preciso fazer isso e aquilo, ser desse jeito e desse jeito, dizer isso, fazer aquilo, pensar pouco, andar. Em frente.
Mas não andava, o moleque. Ficava ali no canto, sentado, sozinho. Não fazia barulho. Imagina isso, um moleque que não faz barulho? Não tem como dar certo. Sei lá, parecia sempre meio assustado. Um moleque que tinha medo de tudo e em nada se encaixava. Era ridículo até, às vezes. E seguia tropeçando, seguia sem saber onde ir, o que dizer. Sem saber mentir.
Pensando bem, talvez fosse esse o problema. O moleque não sabia mentir. Até tentava, mas se enrolava todo, ficava confuso, tropeçava nas palavras e reações como quem tropeça nos próprios pés. Ficava pouco convincente. Fácil de desmascarar. Dava vontade de olhar para outro lado, sabe? Fingir que não estava vendo aquele moleque todo atrapalhado, incapaz de fingir, de se ajustar. Era dolorido de ver. E ele percebia que não estava dando certo, levantava e ia lá para o canto de novo. Ficava sozinho, meio cabisbaixo, murmurando alguma coisa que nunca entendi o que fosse. Talvez uma música, sei lá. Meio desafinado. Sozinho, ele e ele mesmo.
Não tinha como dar certo. E mesmo assim o moleque foi crescendo, ficando mais velho, virando adulto. Quer dizer, adulto não, que isso ele nunca foi. Não dá para chamar de adulto alguém incapaz de assumir responsabilidades. De ter um bom emprego, de ter amigos, ficar elegante, bonito. De ter várias garotas. Fazer sucesso. Crescer. Ter coisas. Como é que vai se chamar de adulto alguém que não consegue nada disso? Imaturo, isso sim. Nunca deixou de ser moleque e nunca vai deixar. Sempre com medo, sempre impressionado com as coisas do mundo. Não tem como.
Mesmo assim, sabe-se lá como, está aí. Vivo. Achamos todos que a qualquer momento, em qualquer dia desses, estaríamos em fila para colocar rosas na sua sepultura, dizendo que rapaz insistente, sempre tão perdido na vida, nunca se encaixou mas vá lá, que descanse, foi melhor assim, amém. Mas ele seguiu tropeçando, mancando, mentindo mal, desistindo de mentir. Seguiu. Sempre andando uma batida para trás - e depois, sabe lá Deus como, dando alguns passos para a frente, como quem recupera o ritmo só para se confundir de novo, alguns compassos adiante. E mesmo assim a música sai. E mesmo assim o moleque sobrevive.
Confesso que isso me confunde.