[caption id="attachment_309" align="alignright" width="300" caption="Foto: Glenn Rice"][/caption]
- Quem você ama? – ela tinha perguntado, os olhos azuis vincados de vermelho, o queixo tremendo em um descompasso de raiva e dor. Ela não gritou aquelas palavras: na verdade, elas saíram de modo controlado, quase sereno, como se fossem uma mera formalidade – ou, melhor dizendo, como se sua única função fosse servir de pretexto para uma resposta já esperada, já conhecida, mas que necessitava ser concretizada, dita em voz alta. No fundo, tudo aquilo era por demais óbvio, e ele deveria ter percebido de imediato qual seria a conclusão daquela história. Mas a verdade é que ele não percebeu. Não percebeu nada.
A madrugada estava fria, e ele se viu forçado a fechar o sobretudo antes que o vento da diagonal congelasse seus ossos. Suas mãos estavam enregeladas, mas não o agradava a idéia de pô-las no bolso: parecia algo casual demais, despreocupado demais, uma atitude vazia demais para não ser percebida – não encaixava no contexto, enfim. Como não trazia consigo luvas, contentou-se em esfregar as palmas frias uma contra a outra, na tentativa de mantê-las aquecidas. Chegou a esfregar as mãos no sobretudo por um momento, mas isso trouxe uma lembrança à sua mente, e logo desistiu do gesto. O céu estava limpo, e as estrelas brilhavam belas acima de sua cabeça, mas ele não se deteve para contemplá-las, nem mesmo ergueu os olhos para um vislumbre rápido que fosse. Tinha pressa, embora não se dirigisse a lugar algum em especial, e não tinha tempo para pensar nessas coisas.
Devia ter percebido a armadilha. Diabos, não era isso mesmo que ela sempre fazia? Sempre tinha sido muito cômodo para ela vestir o véu de vítima, por que teria mudado de atitude de uma hora para a outra? Idiota, isso é o que ele era: um idiota completo. Entrou de cabeça no jogo dela, dançou conforme a música, e agora não adiantava mais se lamentar. Era tarde demais.
As ruas estavam desertas. Embora o sobretudo fechado fosse efetivo no sentido de aquecer seu corpo, suas mãos sofriam, e os cabelos se desarrumavam com o vento gelado. Lamentou a pressa com que tivera que sair de casa, e a confusão mental que o impediu de pegar as luvas e colocar o chapéu. De fato, foi tudo tão rápido que nem mesmo tinha certeza de ter fechado a porta corretamente. Ficou imaginando os vizinhos alertados pelo barulho, curiosos se aglomerando na frente de seu apartamento, espremendo-se diante da porta aberta, vendo aquela cena, a bagunça, o sangue... Ah, era melhor não pensar naquelas coisas. Mais tarde, só bem mais tarde, trataria desse assunto. De qualquer modo, não pretendia mesmo voltar para casa, ao menos não antes do amanhecer. Havia algo que precisava fazer antes. Algo que não podia esperar.
Bem, na verdade era tudo perfeitamente explicável. Sim, ele havia bebido um bocado antes de voltar para casa, mas e daí? Um homem tem problemas a resolver, dificuldades que o afligem, estresses e incomodações; será tão absurdo assim tomar uns goles para relaxar, para amortecer o espírito e aliviar a cabeça? E, que diabos, ele nem tinha bebido tanto assim! Sim, estava bem entorpecido, mas tinha encontrado o caminho do lar com suas próprias pernas, não tinha? Ninguém tinha precisado carregá-lo, e ele ainda era dono de si quando abriu a porta e deparou-se com o olhar furioso da esposa. Ele não ia dizer nada, nada! Ia direto para o quarto, bem quietinho, sem falar bobagens e sem criar problemas. E, droga, ele não tinha prometido nunca mais levantar a mão para sua mulher? Então! Qual era o problema? Se ele ainda tirasse dinheiro de casa para pagar suas bebedeiras, mas não! Ele ganhava bem, e nunca tinha faltado um centavo que fosse para as compras, para as prestações do apartamento ou para o que quer que fosse. Diabos, o que mais ela queria? Um homem não tinha direito a embebedar-se de vez em quando?
Fosse como fosse, estava sóbrio agora. Bem sóbrio. E essa situação não o agradava. Tinha que fazer algo a respeito com urgência. Um relógio eletrônico erguia-se um pouco longe no horizonte: quatro e treze da manhã. Diabos, era tarde. Mas ele acharia algum lugar aberto. Precisava achar. Se não achasse, ficaria pensando no que ocorreu, e isso era tudo que não queria, que não podia fazer no momento. Atravessou uma rua vazia, chutou um copo plástico vazio caído no chão, e cruzou a esquina na esperança de encontrar luzes acesas, som de vozes, qualquer indício da fugaz alegria que move os homens. Encontrou apenas outra rua vazia, com a mesma luz difusa das lâmpadas de néon e as mesmas portas cerradas e as mesmas janelas trancadas. Suspirou alto, mas não parou de andar: andar era tudo que restava a ele naquele momento.
- Quem você ama? – foi tudo o que ela perguntou, os olhos faiscando de ódio, o rosto bonito e ainda jovem transformado em algo estranho e ameaçador. Ele não lembrava de ter visto tanta amargura no rosto dela antes – nem mesmo nas manhãs mais cinzentas, sequência das noites em que perdia o controle e ia além das palavras ríspidas habituais. Era mais do que simples raiva ou desespero, expressões que ele conhecia muito bem depois de tantas noites como aquela – era algo novo, algo diferente, algo que o deixou imediatamente alerta e que o fez hesitar na soleira da porta. – Quem você ama? – ela perguntou de novo, e de algum modo fez ainda menos sentido do que da primeira vez. Ele chegou a abrir a boca para perguntar, para tentar entender que diabos ela queria saber, tentar fazer algum sentido sair daquele rosto e daquela pergunta e daquela amargura toda, mas não conseguiu dizer nada, pois foi naquele momento que ele viu. E que tudo ficou definitivamente caótico e fora de controle.
Viu uma luz ao longe, depois de atravessar uma rua negra como a morte e pisar com força em uma poça de água, o que trouxe ao seu corpo já castigado pelo frio o tormento adicional de uma meia molhada. Foi essa luz que finalmente trouxe alguma animação a seu espírito, e uma sombra de sorriso surgiu em seu rosto. Acelerou o passo, quase correu, na verdade – não que fosse necessário, pois o bar estava aberto e não iria fechar tão cedo, pela aparência da coisa. Dois fregueses habituais, daqueles que fogem de casa nas madrugadas e ocupam sempre a mesma mesa, estavam com copos cheios e não pareciam cogitar seriamente a possibilidade de irem embora. No balcão, um homem de barba mal feita contava empolgadamente uma história de cães vadios e latas de lixo a um barman pouco receptivo, que preferia se concentrar em alguns copos que acabara de lavar. Aparentemente, os copos precisavam ser secos, e isso precisava ser feito de maneira muito lenta e bastante escrupulosa. Nem mesmo o pedido do recém chegado freguês no balcão o tirou do momento meditativo, e só com a insistência um tanto agoniada do homem o barman foi retirado de sua distração, se pondo a pegar de modo um tanto desanimado uma garrafa já meio empoeirada no topo da estante. – Não, eu vou levar a garrafa – disse o homem quando o barman fez menção de servi-lo. – É meio caro – disse o barman, olhando de lado, e o homem disse que não fazia diferença. Mesmo porque não fazia mesmo.
Foi um pouco estranho perceber que sua esposa tinha uma faca na mão – uma faca de cozinha enorme e pontuda, que parecia até irreal ao ser empunhada pelas mãos pequenas e de dedos curtos daquela mulher. Foi como se tivesse passado um tempo enorme jogando sozinho, e de repente alguém viesse e dissesse que ele estava jogando errado o tempo todo. Era como de repente não saber mais quais eram as regras, e a sensação o deixou aturdido e contrariado. – Quem você ama? – ela perguntou uma vez mais, mas desta vez ele não viu qual era a expressão no rosto dela, os olhos fixos na arma afiada que balançava de modo inseguro na mão pequena e de dedos curtos que ele conhecia tão bem. Sentiu uma vontade maluca de parar de jogar, de desistir da brincadeira, de entrar em casa e tomar banho e trocar de roupa e jantar a comida quentinha que sua mãe havia preparado. Chegou a pensar de modo difuso em como era triste aquela cena, em como estava tudo errado, em como uma mão tão pequena e de dedos tão curtos não deveria jamais segurar uma faca tão enorme, ainda mais para usá-la contra seu marido. Mas foi um pensamento breve – logo tomado por outro, mais negro e mais terrível, que surgiu em sua mente como uma mancha de piche cobrindo todo o resto.
Não abriu a garrafa imediatamente, e não quis beber no bar, na presença daqueles homens estranhos que não tinham a menor idéia de quem era e do que tinha enfrentado. Saiu rapidamente, murmurando algo sobre o barman poder ficar com o troco, e não olhou para trás. Os passos, embora erráticos, eram firmes, e ele sabia o que queria encontrar, embora não exatamente onde seria possível encontrar o que procurava. Ouvia o som de um cão latindo ao longe, sentia o vento gelado em seu cabelo, mas não dava atenção a essas coisas, preocupado que estava com seus próprios problemas. Quando viu o lugar certo, deserto o suficiente para não esconder testemunhas e escuro o bastante para que não pudesse ver a si mesmo, sentiu-se brevemente tomado por um pouco de paz. Sentou-se com cuidado e certa afetação, como quem cumpre um velho e bem decorado ritual, e finalmente abriu a garrafa, com um movimento rápido de mão.
- Eu não amo ninguém – disse ele, com vontade, com satisfação, com um misto de orgulho e desprezo. A voz saiu quase sóbria, com uma convicção que surpreendeu a ele mesmo. Quem era ela para ameaçá-lo? Quem era essa mulher para tentar quebrar as regras de modo tão ridículo, tão insolente, pueril como um capítulo mal escrito de um livro barato? Ele era o homem da casa, o provedor, o mestre e senhor daquele lar. Não se ajoelharia. Olhou para o rosto transtornado da esposa, surpresa com a reviravolta, e sorriu com todos os dentes, abrindo os braços em um gesto de desafio. – Ninguém – repetiu, e avançou alguns passos, percebendo deliciado que a mulher recuava e gemia e começava a chorar e tremia da cabeça aos pés. Se ela não enxergava, ele a faria ver. Certamente que faria.
O primeiro gole da bebida caiu em sua garganta como uma bênção, e ele o sorveu com prazer e alívio. Foi bebendo gole após gole com sofreguidão, até sua boca arder e sua cabeça doer – e então parou, tossindo e apertando os olhos para fugir da sensação de sufocamento. Quando recuperou o fôlego, voltou a beber. E se manteve bebendo até a garrafa acabar, até perder os sentidos e adormecer sentado ali mesmo, sozinho, naquele canto escuro e anônimo onde ele era ninguém e ninguém o conhecia. De vez em quando, parava para tomar ar, e então via diante de seus olhos o rosto de sua mulher coberto de lágrimas, a mão pequena de dedos curtos levando a faca até o pescoço, e então o vermelho, céus, quanto vermelho, quanto sangue, e tudo tão estranho e tudo tão ridículo e tudo tão novo e assustador. Tudo tão errado, Deus, tão errado. Via tudo isso, e sacudia rápido a cabeça e bebia de novo. Em algum lugar longe, muito longe, o sol começava a surgir no horizonte.