[caption id="attachment_517" align="alignnone" width="900"] Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21[/caption]
A noite de terça-feira parecia quase normal no centro de Porto Alegre. Desci a General Câmara, segui pela Andrade Neves rumo à Salgado Filho, e no trajeto quase todas as coisas pareciam estar no lugar: o comércio, as barbearias, os bares, as pessoas, os sons, os odores. Era quase possível acreditar que, naquele instante mágico, tudo estava bem. Mas havia o cheiro que seguia em todas as coisas, tênue mas ainda perceptível, o odor que nenhum restaurante ou padaria ou barraquinha de pipoca conseguia disfarçar.
O cheiro de gás lacrimogêneo.
Respirei muito gás, nos últimos dias. É uma sensação terrível: irrita a garganta, provoca tosse incontrolável, transforma a visão em borrões, cega e deixa aturdido qualquer um. Arde e dói. Dependendo da quantidade, demora um pouco até a pessoa se recuperar. E fica um tempo no ar, flutuando quase invisível, entrando pulmão adentro. Não é nada agradável, a sensação do gás lacrimogêneo entrando na garganta. Posso afirmar isso a vocês.
E foi muito gás lacrimogêneo na noite de segunda-feira em Porto Alegre. Muita bomba e muitos cavalos e muita bala de borracha sobre pessoas que, em sua imensa maioria, nada mais faziam do que rumar pacificamente até a Esquina Democrática. Gente jovem. Muitos adolescentes ali presentes certamente estavam tendo, na prática, seu primeiro contato com a atividade política - e foram recebidos pelo Estado do modo que o Estado geralmente recebe os seus: com truculência, desprezo e brutalidade. Tiveram a sorte, pelo menos, de serem alvejados com balas de borracha - como sabemos, quando cai o poder aquisitivo médio de quem grita sua revolta, a bala costuma ser letal.
A Brigada Militar estava preparada para a guerra. Não existia policiamento em Porto Alegre na noite de segunda-feira: enquanto o gás lacrimogêneo imperava em uma das esquinas históricas da democracia gaúcha, saqueadores faziam a festa na João Alfredo sem serem importunados. A ideia, de qualquer modo, não era deter eventuais criminosos: desde o início, a disposição da BM era conter uma turba enlouquecida. Como não havia uma turba enlouquecida, tratou a Tropa de Choque de criar uma. Aproveitou a tentativa de saque na Paquetá da Borges de Medeiros - um acontecimento grave, mas que poderia ser contido sem intervenção direta sobre a multidão - para colocar em prática um nada sutil plano de dispersão da massa. Conseguiu seu intento, de forma que felizmente (e por sorte) não foi trágica.
Eu estava no meio da massa quando estourou a correria. Vi rostos de quase crianças tomados de terror. Vi pessoas absolutamente inexperientes em qualquer confronto com a polícia tentando desesperadamente correr, atropelando umas às outras. Ouvi vozes gritando para que não corressem; eu mesmo ergui a voz e pedi calma gurizada, não corram, não corram. Mas o medo era mais estrondoso que a razão, o pulmão ardendo falava mais alto que o raciocínio, e logo tivemos uma correria insana e desenfreada Borges de Medeiros acima. Sou alto, mais forte fisicamente que a maioria dos que ali estavam, e temi sinceramente pela minha integridade física. E nem cito as muitas vezes em que engoli grandes doses de gás, nem as palavras rudes ditas por policiais em mais de uma ocasião, nem a estranha (e palpável) sensação de estar mais seguro entre os manifestantes do que no meio das forças que supostamente deveriam me proteger. Refiro-me desta vez exclusivamente ao que vi na esquina da Borges de Medeiros com a Salgado Filho - uma polícia cometendo uma brutalidade contra aqueles que são tratados, em todos os lugares, como a maioria dos manifestantes. Os pacíficos, os que não querem arruaça, os que gritam "sem violência" ao menor sinal de depredação - foram esses que mais engoliram gás, na noite sem sentido de uma Porto Alegre transformada em praça de guerra.
Como ato de guerra, como ação necessária em um campo de batalha, o ato das tropas de choque da Brigada Militar pode ser considerado um sucesso. Durante uma manifestação popular, em área central da cidade e em meio a um regime que diz-se democrático, foi uma estupidez próxima do desastre. E que apenas ampliou um problema: transformou um grupo coeso em vários grupos menores, encheu de revolta quem antes estava tranquilo, motivou violência onde antes só havia disposição de caminhar. Basta fazer a crua matemática de quantos focos de depredação e saques existiam antes da ação militar, compará-los com o que tivemos depois da desastrada intervenção e chegarmos à conclusão de que o problema aumentou após o exercício de guerra da BM, ao invés de diminuir. O Comando da BM recusa-se a chamar isso de dispersão e afirma que foi uma ação "adequada". Não sou especialista em ações de guerra, muito menos em policiamento urbano, mas estava no meio dos acontecimentos e afirmo: aquilo foi pura tática de dispersão, e não apenas não foi adequado como faltou pouco para colocar algumas mortes na conta do governador Tarso Genro. Um governador identificado com a esquerda e que agora, graças à polícia que demonstra ser incapaz de controlar, terá que carregar a responsabilidade de ser o chefe de um governo que, em plena democracia, impediu o povo de acessar o Palácio Piratini e a Prefeitura de Porto Alegre - coisa de que, salvo engano, nem o regime de exceção foi capaz.
E aí a pergunta quase previsível torna-se inevitável. Se assim agem contra os jovens de classe média, os filhos de famílias que podem até não ser ricas mas certamente não passam necessidade, o que farão contra os que não assinam jornais, contra os que moram longe das áreas nobres, os que vivem com pouco e precisam viver de fé porque de Estado fica mais difícil? Na terça-feira, a Favela da Maré no RJ nos deu um triste testemunho nesse sentido - gente que morreu na bala da Polícia Militar, que saiu do lugar onde moravam enrolados em sacos pretos de plástico e que, sem nenhum tipo de julgamento formal, ganharam rótulo de bandidos em rede nacional. Retaliação à morte de um policial, dizem alguns. E eu fico pensando se eu preciso mesmo de uma polícia que retalie o que quer que seja. Se o Rio Grande do Sul, se o Rio de Janeiro, se o Brasil todo precisa de uma polícia que trate crime como guerra, que trate protesto como revolta civil, que transforme toda ação em operação no campo de batalha. Que mate e coloque vidas em risco e mesmo assim só responda a si mesma, mesmo assim tenha seus atos rotulados como adequados por um comando que na verdade - e todos o sabem - comanda pouco, quase nada. Um poder que não saiu, nem no discurso nem na prática, das trevas nojentas de um passado recente que ainda nos assombra com sua carranca detestável.
Que se ache um meio de reciclar e reaproveitar essa multidão de profissionais e seres humanos, pessoas que em sua maioria apenas querem fazer um bom trabalho e que têm pouca ou nenhuma responsabilidade sobre as decisões de seu comando ou de seus colegas que, mesmo de farda, andam fora da lei. Que possam ser direcionados de forma a servirem mais e melhor à população, em uma estrutura onde recebam treinamento e orientação e onde respondam pelos seus atos de forma justa, sem excessos nem leniência. E que os protestos em todo Brasil compreendam que temos uma pauta comum, necessária e urgente, passo decisivo para deixarmos de ser uma promessa e começarmos a ser de fato um país: a extinção completa das polícias militares. Um organismo que governa a si mesmo, que empareda governos impotentes para controlá-lo e que, pensado para a guerra contra o povo, não deixará de fazê-lo enquanto existir, simplesmente porque é essa sua natureza. Um organismo que sustenta a si mesmo no medo e não deveria ter espaço em uma sociedade que já teve medo demais e agora exige liberdade. Que vai seguir enchendo de terror as nossas noites, que vai seguir matando nossos irmãos sem julgamento, que vai seguir enchendo nossas esquinas de truculência e gás lacrimogêneo. Porque é para isso que ela existe. E é disso que não precisamos mais. Que nunca precisamos. Porque nenhum de nós aguenta mais viver com medo, por um instante que seja.
Quando penso nessas coisas, ainda sinto o gás na minha garganta e nos meus olhos. E sou um privilegiado, porque até agora não tive senão gás e algumas corridas assustadas fugindo de balas de borracha para lamentar. Tem gente que perdeu bem mais. Bem, bem mais. E encho o ar de pulmões, agradecido pela sorte que tenho, enquanto tomo um ônibus para bem longe do lugar onde vi tantas coisas terríveis na noite de segunda-feira em Porto Alegre.