[caption id="attachment_601" align="alignleft" width="211"] Rascunho de "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector. Foto: reprodução[/caption]
Nunca tinha parado para pensar em como o fim dos manuscritos e das rasuras é, em certo sentido, trágico. Escreve algo no papel, muda de ideia, risca e escreve outra coisa: é uma trilha de pensamento que se desenha. Uma curva que o além-palavra faz em direção à palavra, talvez possamos dizer, já que esse trajeto nunca é uma linha reta. Fica ali a marca, o testemunho da eterna imprecisão da palavra em relatar o singular dentro de nós: é um registro histórico, digamos assim. Um registro de nossa história além da história, eu corrigiria - do mesmo modo que fatos contam de nossa caminhada pelo mágico absurdo do mundo, rasuras em um manuscrito falam da mágica de dentro, do esforço de nosso ser-além-do-que-somos em registrar, de algum modo eternamente precário, um pouco do seu próprio existir.
Hoje, a gente escreve quase tudo com teclados, de todos os tipos: a curva ainda existe, mas não deixa traço algum, desvanece rapidamente em algum lugar entre o homem e a tela. Fica só o texto final, belo, perfeito - e, nesse ponto específico, falso. Não traz mais em si as cicatrizes de seu surgimento. Em certo sentido, é puro externo, por mais interno que traga em si.
Há algo humano que se perde nesta ausência.
(não que os livros impressos tragam em si as rasuras, o esforço de reescritura permanente rumo à curva mais suave entre o sentir e o expressar: bem sabemos que quase nenhum livro sai da gráfica com anotações do tipo. isso perdeu-se desde que os livros pararam de ser exemplares únicos, lá longe nas areias do tempo. mas o papel permite que nós, enquanto leitores, preenchamos ativamente essa ausência, de lápis em punho - sublinhando, fazendo observações, concordando e discordando da ideia, do cenário, do autor. acrescentando nossas próprias rasuras, dividindo com o autor a tarefa criativa. com a palavra na tela, e somente nela, isso também se perderá.)
Concluo que a rasura ainda nos fará muita falta.
(inspirado em um comentário de Phillipe Willemart em "Bastidores da Criação Literária" - um bom e interessante livro, diga-se de passagem)