[caption id="attachment_604" align="alignnone" width="900"] Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]
Atravessar a cidade em meio à chuva intensa é ao mesmo tempo um exercício de abandono e de compromisso. Há que se amar a cidade para cruzá-la de ponta a ponta nessas circunstâncias - mesmo porque, mais do que mero desestímulo, a barreira que impede o avanço é concreta, ainda que nem sempre tangível. É a água cinza e de mau cheiro que invade a minha rua, ameaçando me deixar ilhado, e é a água cinza e de mau cheiro que transborda do arroio e invade as casas dos humildes, certamente bem mais autorizados a reclamações do que eu próprio. Água que inunda as residências e também as avenidas pelas quais eu geralmente avanço rumo ao centro da cidade - trilha tornada impossível e que me força, depois de escapar da barreira da rua transbordante, a novos tipos de improviso.
Há algo de incomum no modo como os ônibus despejam as pessoas para fora em dias como esse. Não é exatamente como se elas desembarcassem nos lugares desejados, como se tivessem completado o trajeto normal de todos os dias: é muito mais como se desistissem, abandonassem o trajeto pela metade, cansadas da lenta tortura de um ônibus que avança devagar em meio à enxurrada. Na rua os pés molham rápido e a caminhada é difícil, mas há um ganho considerável de autonomia. Sei que é assim que pensam porque assim pensei eu, descendo antes do centro e avançando pela Redenção rumo ao Colégio Militar. A pé, quem dá o ritmo somos nós. Pelo menos isso.
A carona é generosa e bem-vinda, mas na prática resulta em pouco mais do que companhia para enfrentar o trajeto impossível. A cidade entra em suspenso: muitos tentam, mas ninguém vai e ninguém volta. Não deixa de existir um toque de anárquica poesia nisso tudo: o relógio humano é humilhado, os compromissos são ridicularizados, a hora de chegada vira um conceito impossível. A chuva impõe seu tempo - e é um tempo bastante lento, ainda que vigoroso. Toma para si as ruas, faz do asfalto seu remanso. Aos homens trancados em suas máquinas inúteis ou ilhados nas calçadas e residências, resta o estoicismo de ocasião ou uma renovada, ainda que eventualmente oportunista, fé em Deus. Do poder dos homens, como de hábito, não virá auxílio algum.
Pelo caminho ficam os guarda-chuvas, pontuando o avançar das almas pela chuva que não alivia. Vi grande quantidade deles: alguns completamente retorcidos, outros parecendo quase usáveis, só o olhar cuidadoso podendo revelar os estragos que justificam o abandono. Nas lixeiras, quase nenhum: eles ficam mesmo é nos canteiros, na beira das calçadas, junto às bocas de lobo. São cadáveres abandonados exatamente onde tombaram, sem muita cerimônia.
O meu guarda-chuva foi um desertor, talvez possamos dizer. Na verdade, quem o abandonou fui eu: paramos o carro para abastecer, entrei rapidamente na loja de conveniência para comprar água e comida e o esqueci dependurado junto aos bombons, ao lado da caixa registradora. Uma necessidade apagou a outra, creio eu: tão preocupado estava em preencher o buraco no estômago que ignorei a chuva que, mesmo em breve trégua, obviamente voltaria a cair. Um esquecimento quase admirável pelo absurdo.
Era um bom guarda-chuva. Espero que seja lá quem o tomou para si esteja fazendo bom proveito.
Comprei um novo guarda-chuva debaixo do viaduto, quase na Salgado Filho. Preto, hastes duplas, sem luxos mas sem aparentes carências. Doze reais. Não sei dizer se o valor é bom ou não. "Esse é um pouquinho mais caro, mas é mais resistente, vale a pena", acentuou o senhor que vendia os guarda-chuvas, abrindo um deles para eu ver que estava funcionando e já deixando-o aberto para que eu pudesse usá-lo imediatamente. Estava sorridente e falante, o vendedor, de certo contente com os consideráveis lucros do dia. "Vai chover amanhã também", advertiu-me ele, sem tentar esconder o sorriso otimista.
Vai sim, concordei com ele. Vai chover e vai ventar e trovejar; a água vai acumular nas ruas, invadir as casas dos humildes, atrapalhar a vida dos que trabalham e estudam. Guarda-chuvas vão ficar deitados na calçada, outros guarda-chuvas serão vendidos nos viadutos e nas esquinas. Vai ser uma chuvarada daquelas, sem dúvida. E a vida vai continuar. Porque essa é a natureza do homem, mesmo na cidade tornada impossível pela chuva: ele vai em frente. Molha os pés na água, abre o guarda-chuva e vai em frente, porque é para frente que todas as coisas devem ir. E que culpa tem a chuva, no fim das contas?