Curitiba. Se bem lembro, era sexta-feira. Uma tarde de um céu indeciso, ora disposto a ficar nublado, ora tentado a deixar-se dominar pelo sol de verão. Não fazia calor, no entanto - pelo menos não aquele calor doloroso que impede os deslocamentos e nos obriga ao ar condicionado, se é que me faço entender. Era, em suma, uma tarde boa para caminhar a esmo, despreocupado, de olhos abertos no desconhecido de uma cidade ainda pouco familiar. E assim fiz, visitante de poucos dias e sem compromissos que era, descendo de ônibus no Passeio Público e permitindo que meus pés me levassem onde lhes parecesse mais adequado.
Me levaram à Rua Quinze de Novembro, agradável calçadão que me pareceu uma das artérias principais do centro de uma Curitiba bem mais interessante e agradável do que costumavam me dizer. Fui e voltei por aqueles caminhos, satisfeito com a grande quantidade de coisas, lugares e pessoas, mais preocupado em observar e sentir do que em memorizar. Andei até o fim do caminho, chegando até uma praça chamada General Osório, mas, por algum motivo, não me animei a conhecê-la naquele dia, preferindo dar meia-volta rumo a um atalho para o Largo da Ordem, que eu já conhecia mas muito me agradaria rever. Segui firme nesse propósito até a esquina da Quinze de Novembro com a Monsenhor Celso, onde a música de um casal de artistas de rua fez com que eu interrompesse a marcha.
[caption id="attachment_233" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Raissa Portela / Canal Fotografia"][/caption]
Nathan e Natacha, chamavam-se. Tocavam uma música bastante simples, uma canção de amor não correspondido crua nos versos e na estrutura. Ambos cantavam, e ambos tinham as mãos ocupadas: Nathan com o violão coberto de pequenos adesivos, Natacha com a caixinha de doações. Os escritos em torno dela eram uma atração à parte - e por meio deles tive a confirmação de minha suspeita, nascida assim que me detive para observá-los: eram um casal de músicos cegos. "Sou 100% deficiente visual, este é o meu trabalho", "obrigado por sua ajuda", "Deus te abencoe por nos ajudar". Avisos escritos em caligrafia nada sofisticada, tinta preta sobre madeira clara, passando uma mensagem tão direta e sem enfeites quanto a música que tocavam.
O público não era numeroso, talvez uma dúzia de incautos, mas ousaria dizer que boa parte daquela plateia era consideravelmente fiel. Um deles, especialmente comunicativo, parecia assumir de modo improvisado as vezes de empresário da dupla, incentivando de forma bem-humorada a audiência a depositar valores na caixinha dos músicos. Pude ver quando esse fã empolgado dirigiu-se a um dos presentes e pediu que ele o emprestasse uma nota de cinco reais. A justificativa: "vou pedir para eles tocarem um Teixeirinha para nós". Certamente peguei a história pela metade, uma vez que a sequência de acontecimentos não faz muito sentido - mas o fato é que a nota de cinco reais surgiu, foi depositada na caixa e, com algumas breves palavras aos músicos, o cidadão pediu que tocassem um tema de Teixeirinha, seja lá qual fosse.
Me dói um pouco admitir que não faço a menor ideia de qual música Nathan e Natacha tocaram naquele momento. Nunca tive maior conhecimento do legado musical de Teixeirinha, e aquela canção eu certamente nunca tinha ouvido antes, de maneira que aquela interpretação acabou sendo uma insólita e inesperada premiê. Infelizmente, ouvi a canção de modo descuidado e não recordo absolutamente nada da letra - lembro apenas que era uma história triste de alguém que via sua antiga amada com outro homem em um baile, ou qualquer coisa parecida com isso. Era, de qualquer modo, uma canção repleta de simples e dolorida sabedoria sobre o amor e a vida - e todo o inusitado de ouvi-la em uma esquina desconhecida de Curitiba, interpretada por um casal de músicos cegos, só fez com que ela ganhasse uma dimensão curiosa e toda particular.
Fico pensando nas milhares de questões que me ocorreram naquele instante, enquanto ouvia os dois músicos cegos tocando uma música de Teixeirinha que eu talvez nunca saiba com certeza qual é. De onde vieram? Desde quando se conhecem? São casados de fato? Moram juntos? Ou são apenas parceiros musicais? Quando formaram a dupla? Quanto tempo levam se deslocando de seja lá onde moram até o coração da metrópole? Quanto conseguem ganhar tocando nas ruas? Dá para viver? Perguntas que me ocorreram na hora e que optei por silenciar. Por vários motivos, mas especialmente porque seria uma tremenda indelicadeza da minha parte interrompê-los assim, no meio de uma apresentação, para importuná-los com minhas concretas e ridículas dúvidas de jornalista. Preferi, então, ficar com as respostas que a música dos dois me trazia, apreciando aquela manifestação de pura vida no coração da grande cidade.
Não sei se um dia voltarei a vê-los. Ouvi a música até o final, juntei-me aos sinceros aplausos do pequeno público e depositei algumas moedas na caixinha antes de virar minhas costas e partir. Sumiram rápido na minha memória, os versos daquela até então desconhecida canção de Teixeirinha - mas tenho aprendido que o que a gente precisa mesmo lembrar acaba ficando, permanece gravado naquele ponto indeterminado onde as memórias do que se sentiu erguem-se acima de todo factual inútil. Vou lembrar daqueles dois cantando aquela música triste, e acho que isso vai me bastar. Uma interpretação sincera e apaixonada de uma bela música, que eu posso nem lembrar direito como era, mas que na minha alma e na minha experiência já se tornou eterna.
NOTA: a foto, como creditado acima, não me pertence. É um belo trabalho de Raissa Portela, publicado no site Canal Fotografia. Tentei contatá-la para pedir autorização de uso e não tive sucesso. Mesmo assim, optei por colocá-la, para dar uma visão mais clara de quem são Nathan e Natacha. Caso a autora da foto assim prefira, retirarei do ar sem problema algum. Agradeço, de qualquer forma, pelo empréstimo e pelo excelente registro.