Uma das coisas mais emocionantes da minha quarta-feira foi observar, sentado em um banco da praça central de Cerro Largo, uma pequena pomba rola tentando alimentar-se dos restos mortais de um enorme pulgão. Talvez fosse um exoesqueleto do bicho, não sei ao certo. Sei que o bichinho ficou longos minutos quebrando aquela casca com o bico, tentando arrancar dali algum nutriente, realmente entretido e dedicado a sua tarefa. Devo ter ficado mais de dez minutos com o livro fechado no colo, em plena tarde de dia útil, observando aquela pomba rola brigando com a casca morta de um inseto, tentando alimentar-se com ela. Sei que vocês não vão entender nada, mas achei muito bonito.
No entanto, não há cães de rua em Cerro Largo e nas cidades adjacentes. Isso me desagradou um pouco. Claro que sei o quanto é difícil e muitas vezes sofrida a vida de um animalzinho de rua, mas sinto que eles são parte da personalidade de um lugar - são pequenos bolsões de vida no meio das gentes, deslocam-se para lá e para cá preocupados com nada que não diga respeito à simplicidade prática de seu viver. Gosto muito, muito mesmo de cães de rua. E eles não existem por aqui. Talvez se escondam nos bairros mais afastados, nas áreas onde as casas sem muros transformam-se em pequenos sítios e onde os sítios viram diminutas fazendas - o que seria, convenhamos, de certo modo uma sabedoria da parte deles: não deve ser tão fácil achar comida, os afagos talvez menos numerosos, mas não tenho dúvida de que deitar na grama é bem mais divertido do que na calçada.
Meu hotel é no pequeno centro da cidade de Cerro Largo - uma área urbana simples e bem cuidada de modo geral, que uma caminhada despreocupada de vinte minutos é suficiente para abraçar completamente. Andando talvez quatro quadras para a direita ou esquerda, é possível ver o fim do perímetro urbano, o começo dos bairros que, teoricamente mais afastados, são na verdade facilmente alcançáveis: basta tomar fôlego e subir as lombas consideravelmente íngremes, pavimentadas com paralelepípedos. Nas ruas, caminhões passam tanto ou ainda mais do que automóveis particulares. O Táxi do Caído, que monopoliza o serviço de choferes no município, conta com a frota de dois veículos, mas me parece ter pouco trabalho na maior parte do tempo. Há várias motos, mas poucas bicicletas. Recolhido ao meu quarto na madrugada de quarta-feira, após assistir em uma lancheria o Grêmio empatar com o Fluminense pela Libertadores da América, um carro passou com o aparelho de som tocando uma música do Iron Maiden - situação inusitada em uma cidade que eu julgava tão distante dessas coisas, e que me despertou um suave sorriso.
Embora meu caráter de forasteiro seja evidente, a pergunta mais comum feita a mim não refere-se à minha cidade de origem ou aos objetivos que me fazem ficar quase uma semana em um lugar supostamente tão distante dos meus interesses. Nada disso: o que chamou a atenção de um número considerável de pessoas foi a minha bastante grande - e no momento um pouco descuidada, admito - barba ruiva. "Eu já tive uma barba assim, grande como a do senhor", me disse um atendente de lanchonete, um sorriso tímido no rosto perfeitamente escanhoado, como quem quer puxar conversa. Morou em Brasília por um par de anos, funcionário de pequena patente no escritório de um deputado federal, ocasião em que desistiu da barba - "ficavam falando em inglês comigo, achavam que eu era estrangeiro", disse aos risos para justificar-se. Nas ruas e trilhas de chão batido, percebo repetidos olhares em minha direção - a maioria direcionados à minha vistosa barba avermelhada, que eu acabo imaginando que seja um tanto exótica por essas bandas. Nenhum problema, claro: assim como as pessoas me olham, também eu as observo, também elas me parecem uma visão única e irrepetível.
Há muitas belas moças em Cerro Largo e nos lugarejos em volta. Algumas passam pela janela do meu quarto, que dá de frente para uma das principais vias da cidade, e não raro me distraem brevemente de meus escritos. Moças, aliás, distribuídas de forma bastante democrática. Fiquei brevemente enamorado de uma atendente de caixa no Supermercado Jaeschke, onde fui adquirir bolachas e água para consumo no quarto de hotel (comprei também uma dupla de bergamotas temporãs, que apesar de um pouco moles estavam bastante saborosas). A linda moça de olhos verdes, porém, mal olhou para mim: imagino que estivesse cansada do trabalho, ou talvez irritada com alguma circunstância pessoal, mas de qualquer modo não respondeu ao meu boa-tarde e limitou-se a contar o troco de forma breve e profissional. Demonstrei a ela então toda a consideração de minha fugaz paixão, abstendo-me de quaisquer comentários e permitindo, silencioso, que ela desse continuidade à sua vida.
Hoje chove. Parece que choverá o dia todo, de forma que dificilmente sairei do quarto senão brevemente, para uma caminhada rápida ou para alguma refeição. Me agrada a ideia de ver a cidade na chuva, entender onde se acumulam as poças d'água, ver se as pessoas optam por guarda-chuvas ou por capas de lona ou se apenas andam debaixo das gotas finas, procurando as poucas marquises, acelerando ligeiramente o passo. Não poderei, no entanto, fazer essa caminhada ao meio-dia, quando tudo fecha. Talvez a faça agora, enquanto a chuva é fraca e o clima convida ao uso da jaqueta jeans, único agasalho minimamente respeitável que trouxe comigo. Também não tenho guarda-chuva e, mesmo que o tivesse, não usaria. A chuva gosta de mim, eu gosto dela, e será bom vê-la caindo sobre essa cidade ainda desconhecida, centro de operações de minha breve viagem para um encontrar-se comigo mesmo.
(fiz algumas fotos de baixa qualidade com meu celular, mas tolamente esqueci o cabo de transferência em casa, de modo que me é impossível subi-las no notebook. Pego então essa genérica imagem da bonita Igreja Matriz do município, principal obra arquitetônica de Cerro Largo - que enfrenta, no momento, considerável concorrência: já existem dois templos evangélicos na cidade, disputando com a tradicional Igreja Católica a primazia da fé entre os cerrolarguenses)