[caption id="attachment_430" align="alignleft" width="225"] A última Coca-Cola. Em sua defesa, digo que estava bem geladinha.[/caption]
Depois de mais de cinco meses de abstinência, voltei a beber Coca-Cola no último dia 13 de abril, no Restaurante e Pizzaria Karlec de Cerro Largo, agradável cidade encravada nas Missões do RS. Foi um golpe de oportunismo, uma ideia que me ocorreu enquanto aguardava o ônibus que me levaria de volta a Porto Alegre e contra a qual não impus maior resistência. Uma garrafinha de vidro de 290 ml, pela qual paguei R$ 2.
A última Coca-Cola da minha vida.
Entendo perfeitamente que alguns achem estranho que eu diga uma coisa dessas, de semelhante gravidade, com tanta ênfase. Que até compreendam o meu esforço em largar o hábito, que vejam a ação como um passo positivo no sentido de estabelecer uma relação mais próxima e carinhosa com minha saúde e, por extensão, com meu próprio corpo e comigo mesmo. Mas vejam essa postura de nunca-mais-beberei-uma-Coca-Cola-na-vida como um excesso teatral, uma frase falsamente bombástica com a qual desejo apenas atrair um pouco de atenção. Mesmo as pessoas mais próximas, com as quais tenho maior afinidade, podem perfeitamente erguer as sombrancelhas com essa afirmação, dizendo mentalmente algo tipo OK, Igor Natusch, agora tu forçaste um pouco a amizade. E não deixarão de ter razão.
A Coca-Cola se transformou, durante algum tempo e de certo modo, no símbolo da relação destrutiva - ou, ao menos, desinteressada - deste que vos escreve com a própria saúde. Eu já fui do tipo que comprava uma garrafa de dois litros e a esgotava rapidamente, em algumas poucas horas apenas, se fazia calor. Mais tarde, mesmo diminuindo drasticamente a quantidade, jamais cogitava seriamente a possibilidade de excluir o refrigerante da minha vida. Sempre gostei de dizer que gostava muito de Coca-Cola, que o sabor da Coca-Cola era sensacional, uma invenção digna de Einstein, que beber uma Coca-Cola de vez em quando era o típico hábito do qual eu seria incapaz de abrir mão, mesmo que virasse a pessoa mais saudável de todo o Ocidente. Não era simples vício, admito sem reservas: era um regozijar-se, uma legitimação da Coca-Cola enquanto aspecto da minha vida. Não sei muito bem por que diabos eu encarava a coisa desse jeito, e ainda bem que mudou. Mas independente de histórias bonitas de superação pessoal, o fato é que, olhando para trás, eu mesmo acho estranho dizer assim, com essa ênfase toda, que aquela pequena garrafa que bebi ontem à noite foi e será mesmo a última dose de Coca-Cola da minha vida.
Respondo a essas dúvidas indo além da relativa facilidade com a qual parei de tomar refrigerante - uma decisão que eu acredito ter sido movida pela simbologia, como que dizendo a mim mesmo que, se eu conseguia parar com isso, então poderia conseguir mudar quase todos os hábitos que desejasse ou precisasse. Embora tenham sido cinco meses nos quais praticamente não tive vontade de beber refrigerante em momento algum, não é por aí que vou tentar justificar a minha frase aparentemente excessiva logo acima. Mesmo porque a própria frase é um símbolo, essa própria postagem é um símbolo - e ter pedido uma Coca-Cola de garrafinha na lancheria quase ao lado da estação rodoviária, já tendo em mente que podia muito provavelmente ser a última, também é de um simbolismo ritualístico bastante óbvio. Foi uma despedida, de caso pensado, e não é por aí que vou explicar essa certeza que tenho de que, de fato, foi a última Coca-Cola da minha existência. Nem vou usar como justificativa a crescente repugnância por tantas coisas antes absolutamente normais no meu cardápio, que aponta para mudanças ainda mais significativas em futuro próximo. Tampouco vou negar a possibilidade de que, no fim das contas, não seja de fato a última Coca-Cola - são tantas as circunstâncias que podem levar uma pessoa a consumir uma Coca-Cola que eu nem me animo a enumerá-las, então sim, claro que eu posso ter que engolir essas palavras e tomar um monte de outras Coca-Colas na vida.
Mas acho que não. Acho que nunca mais vou tomar a decisão consciente e voluntária de tomar uma Coca-Cola. E isso tem ligação direta com essa garrafinha de 290 ml, que tomei à guisa de despedida, gesto de frouxa solenidade que colocou fim a mais de cinco meses de abstinência total. Não que o gesto em si tenha sido tão emocionante - afinal de contas, sejamos honestos, é só uma garrafa de refrigerante no fim das contas. O que me impressionou, na verdade, foi o sabor daquela Coca-Cola perfeitamente gelada, servida de maneira adequada em um copo imaculadamente limpo: um sabor muito sem graça. Pensando que podia ser algo relativo ao modo de ingestão, cheguei a tomar alguns goles direto da garrafa, encostando o gargalo diretamente nos lábios. Nenhuma melhora se deu. Bolhas de gás, açúçar, um pouco de café, uns aromatizantes indefiníveis. Nada impressionante. Não ruim, porque o gosto em si não era ruim: apenas, realmente, nada demais. Um gosto totalmente distante da Coca-Cola de outros tempos, que eu bebia como água (na verdade, mais do que água) e achava sinceramente deliciosa. Algo de que, muito sinceramente, não vou sentir a mínima falta.
Claro está, de qualquer modo, que não foi a Coca-Cola que piorou; eu é que, como consumidor de Coca-Cola, deixei de existir. Aparentemente, algo aconteceu com meu paladar e meu organismo nesse meio-tempo - algo que, à falta de qualquer indicativo contrário, interpreto como positivo e indicativo de um redirecionamento das minhas circunstâncias de vida. Acho que as pessoas mudam assim: tomando atitudes concretas e, a partir daí, transformando-se elas mesmas na mudança, de forma silenciosa, quase imperceptível. Pelo jeito, nem é mais caso de eu evitar beber uma Coca-Cola, que antes tanto prazer me dava: agora eu simplesmente não quero mais tomá-la. Mesmo o último gole - que era para ser a despedida definitiva - viu-se despido de qualquer formalidade: engoli o restinho de líquido de um só fôlego, sem nenhuma satisfação, apenas porque me pareceu errado ir embora sem terminar de beber. Terminei a última Coca-Cola da minha vida como quem come aquele resto meio frio de comida que ficou no canto do prato, mais por convenção do que por prazer ou necessidade. Não foi uma despedida das mais memoráveis, para ser sincero. Que a Coca-Cola tenha uma boa vida, ela do lado de lá, eu do lado de cá: ficou bem claro, em nosso breve revival, que não existe mais nenhuma química entre nós.