Acredito que, em um momento já distante da minha trajetória, eu fui uma pessoa jovem. Não um jovem do ponto de vista metabólico, bem entendido; refiro-me mais a uma juventude de espírito, uma ingenuidade de quem tudo aprende, uma sadia ignorância diante do mundo e de todas as coisas. Houve sim um tempo (dele não recordo, mas sou capaz de jurar) em que eu nada sabia de coisa alguma, não trazia em mim nenhum temor ou incerteza, nenhum tipo de ansiedade, busca ou expectativa. Lindos dias devem ter sido aqueles, no quais a vida explicava e justificava a si mesma, momento único e interminável que eu era todo o universo e isso bastava. Encanto que se rompe tão logo é percebido, incapaz de sobreviver à mais singela consciência de si mesmo.
Lembro que um dia eu discutia com meu irmão sobre a idade que tínhamos e o ano em que cada um de nós tinha nascido. Meus pais estavam ausentes nesta ocasião; quem tomava conta de nós era um dos meus tios, que neste momento estava na cozinha fazendo uma coisa qualquer. Eu discutia com meu irmão aos gritos, como imagino que façam todas as crianças de todos os lugares, tentando convencê-lo de que eu tinha nascido naquele ano mesmo, naquele exato 1985 em que vivíamos. Era um raciocínio evidentemente absurdo, mas hoje consigo compreendê-lo até certo ponto: eu simplesmente não tinha, até aquele momento, a consciência da passagem do tempo. Para minha mente infantil, o agora era eterno, o passado era apenas um conceito vago que não tinha qualquer importância na minha existência. Encanto tênue que durou pouco mais de cinco anos e que se desfez quando meu irmão, indignado com minha insistente afirmação, chamou nosso tio da cozinha e pediu que viesse, que nos ajudasse a resolver de uma vez a questão.
Uma vez inteirado do dilema, e percebendo minha extraordinária empolgação, perguntou-me em que ano, no fim das contas, eu achava que tinha nascido. Neste mesmo ano, disse eu triunfante: afinal, eu estou vivo neste ano, então esse é o ano em que nasci. A risada de meu tio, ao ouvir a pequena e sincera bobagem que eu dizia, é inesquecível: não foi algo cruel ou debochado, mas eu diria que ela foi o som que o encanto fez ao se quebrar em mim. Tu tens cinco anos, guri, ele respondeu ainda rindo, como é que tu ia ter nascido esse ano ainda e já estar com cinco anos? Se tu tens cinco anos e se estamos em 1985, então tu nasceu em 1980, completou, acreditando sinceramente que estava me ensinando algo útil e importante. Meu irmão começou a gritar alegremente, comemorando o meu fracasso, mas lembro que meu tio repreendeu-o dizendo que ao menos eu era um guri muito novo, que ele era mais velho e por isso deveria saber melhor do que eu quantos anos tinha e em que ano tinha nascido. A essa altura, porém, creio que a questão toda já não me importasse mais - afinal, eu tinha um novo e imenso problema com o qual lidar, muito mais terrível e permanente do que uma simples ignorância sobre o ano em que nasci. Agora, mais do que saber que o tempo passava, eu era capaz de senti-lo. De percebê-lo. Naquele instante, precisamente naquele instante, eu entendi passado e futuro. Tornei-me velho.
Hoje em dia, sou perfeitamente capaz de contar a passagem do tempo. Tenho exatamente 33 anos de idade, vinte e oito a mais do que tinha naquele distante começo de noite, em um 1985 que jamais voltará a existir senão na minha imperfeita memória. Deu tempo de viver muita, muita coisa mesmo nesse período. Vi muito, ouvi outro tanto, esforcei-me sempre para entender, aprender. Não sei até que ponto tive sucesso, nisso e em tantas outras coisas. Superei grandes barreiras na minha existência: aprendi a comer feijão, a amarrar os cadarços do tênis, a subir num ônibus e descobrir sozinho onde deveria descer. Sobrevivi a doenças, ferimentos, acidentes domésticos. Vivenciei sem muitos problemas a troca de dentes, as primeiras brigas, as primeiras mentiras e decepções, o primeiro beijo. Amei e fui amado por diferentes pessoas, com diferentes graus de sincronia e reciprocidade. Quis coisas que não pude ter e sobrevivi à ausência delas. Descobri a arte, a ironia, a amizade desinteressada, o sexo e o futebol. Aprendi a ser míope. Assumi a barba e a careca mais ou menos ao mesmo tempo. Apertei a mão de desconhecidos no meio de ruas desertas, fui assaltado, recebi gestos de pura bondade da parte de gente que nunca mais vi na vida. Já bebi para tentar esquecer uma mulher, o que obviamente não funcionou. Andei muito, muito mesmo, por ruas conhecidas e ruas que jamais tinha visto antes. Aprendi a gostar de ficar sozinho e de tomar banho de chuva. Antes de completar quinze anos, perdi meu pai. Descobri que sou jornalista, que conto histórias com alguma propriedade e que sou absolutamente incapaz de entender como diabos se calcula um logaritmo. Fiz faculdade, fiquei desempregado, morei praticamente de favor em um sótão de uma cidade desconhecida. Mais de uma vez fiquei acordado a noite toda exclusivamente pelo prazer de contemplar o nascer do sol. Tive que encarar os fatos algumas vezes, já disse a verdade quando era muito difícil e pedi perdão a pessoas que decepcionei. Já achei que estava tudo perdido, já tive muita pena de mim mesmo e já quase fiquei sem esperança. Nunca pensei em tirar minha própria vida, mas já achei que não restava muita coisa senão morrer. E de alguma forma sobrevivi a tudo isso, ficando mais forte e ciente de mim mesmo pelo caminho, em uma trilha meio acidentada que me trouxe até aqui, até esse preciso instante em que escrevo um texto sobre mim mesmo sem saber exatamente o que, no fim das contas, estou tentando dizer. Trinta e três anos.
Qual é o resumo de um ser humano? Qual é o seu extrato, o que ele é e segue sendo além de todas as coisas que disse e fez, algo que sobra dele quando tudo mais é removido e que - sabe-se lá - seja capaz de sobreviver a ele próprio, muito depois de sua morte? Haverá alguma grande obra, algum tipo de legado que possa ser descrito e quantificado, ou será que somos mesmo apenas as sombras na parede, pés que andam pela grama rala sem deixar sequer as pegadas para trás - mas que fazem o trajeto tantas e tantas vezes que acabam gerando o atalho por onde os outros andarão, caminho que segue lá muito depois de termos mergulhado na inexistência? Vale mesmo a pena esse esforço todo, essa dedicação quase maníaca de colocar uma palavra depois da outra, em um mundo onde tudo é tão tênue e acaba tão rápido e logo vira apenas lembrança ou nem mesmo isso? De que vale o futuro em um mundo onde o presente nos foi negado e somos, cada vez mais e eternamente, escravos do passado que construímos a cada respiração?
No que tange a todas essas indagações, sou um cronista dos mais relapsos. Não sou capaz de respondê-las e, mesmo que eventualmente fosse, certamente declinaria da tarefa. São questões, de qualquer modo, que me parecem bem mais úteis perguntadas do que respondidas. Talvez seja delas que fui tirando, depois de cada tropeço, a vontade de continuar. Talvez por meio delas eu tenha sobrevivido ao primeiro e mais definitivo dos meus desafios: achar o que fazer de mim mesmo quando percebi que o tempo existia e, uma vez existindo, já estava próximo de acabar. Esse, amigos e amigas, é o tempo e a vida que estou vivendo - é, ao mesmo tempo, o melhor e o pior dos tempos, o mais extraordinário e o mais insignificante, e é todos esses tempos de uma vez só. E estou em paz. Sou velho, nunca mais serei jovem novamente, a inconsciência de apenas viver sem que nada mais importe já me foi negada há tempo e creio que não deve mais voltar. Mas a vida cresce em encanto a cada instante. Quanto menos eu tenho, mais incrivelmente belo e precioso me parece o que ainda resta. E mais grato me sinto.
Meu nome é Igor Natusch, tenho 33 anos e nunca me senti tão vivo em toda a minha vida.