- Está tudo correto para o senhor? Alguma dúvida ou retificação? - me pergunta educadamente a moça com os papéis da rescisão de contrato, em um tom de voz bastante gentil, ainda que enfático. É alguém que certamente faz isso várias vezes por dia - afinal, jornalistas entram e saem de contratos de trabalho o tempo todo, ainda mais dentro da lógica de precário equilíbrio que se tornou quase sinônimo de trabalhar em uma redação no Brasil.
A moça em questão trabalha no Sindicato dos Jornalistas e está à minha direita. À esquerda, senta-se outra moça, da empresa de recursos humanos, que há pouco havia me explicado tudo - esse valor é referente a isso, esse desconto é devido a aquilo, esse é o crédito de férias, aqui o desconto da previdência social. Ouço tudo, mas não escuto nada: são números apenas, dígitos que se empilham em uma lógica que não me é de todo estranha, mas que me parece distante demais do que realmente motiva minha presença naquele local. Irrelevâncias, em suma.
Nenhuma dúvida, respondo eu. Nada a retificar.
Existe uma sensação de reencontro em cada partir. Limpar as gavetas é um pouco como remover o que está sobrando em nós mesmos - os papéis acumulados que jamais serão lidos novamente, as canetas que levarei para casa, os cartões com nome endereço telefone e-mail que não serão entregues a ninguém. O carregador extra de celular, que sempre ficava na redação para o caso da bateria acabar sem aviso. A pasta com nossos arquivos no computador. A pasta está vazia. A escova de dentes. O crachá. Pedaços do que a gente foi e de certo modo continua sendo, mesmo já não sendo mais. Reencontro com o que somos e que independe de onde estamos, do horário de chegar e de ir embora, de cargo ou posição. Despidos de um compromisso contratual que de certo modo nos define, voltamos a ser nada mais que a simples imagem de nós mesmos.
Recolho tudo que eu era e coloco algumas coisas dentro da mochila. O resto, no lixo.
São cinco vias. Assino uma a uma, sem pressa, colocando data e dia da semana. Sexta-feira, treze de setembro de dois mil e treze. Foi numa quinta-feira, doze de agosto de dois mil e dez, três dias antes de fazer trinta anos de idade, que coloquei meus pés na redação pela primeira vez. Desembarquei em Porto Alegre pouco depois das dez da manhã, pouco depois da uma da tarde já estava sentando na frente do computador, uma pauta vaga para ser cumprida, rostos simpáticos mas em sua maioria desconhecidos olhando para mim. E foi numa segunda-feira, doze de agosto de dois mil e treze, que comuniquei minha chefe que havia decidido pedir desligamento. Três anos exatos. Três anos.
Não há despedida; há um almoço, há café na redação, há chopp no fim de expediente. Seguirão havendo almoços, cafés, chopp, contato, amizade, convivência. Uma gangue não se separa assim tão fácil, disto eu sei muito bem. Tem muitas histórias lá fora: seguiremos, eu e eles, indo atrás delas. Em trilhas que podem parecer separadas agora, mas seguem mais unidas do que nunca. Tanta coisa precisando acontecer. Tanta coisa para semear.
É tempo de semeadura.
Do lado de fora, os papéis guardados na mochila, a cidade prometendo vento em meio ao sol e ao céu azul, detenho-me na esquina da Rua da Praia com a General Câmara. Observo. É um pouco como se fosse a primeira vez.
O natural seria subir a ladeira. Com os olhos, é como se subisse. Passo em frente ao Tuim, já cheio de gente no meio da tarde, pessoas que tomam chopp enquanto observam a sexta-feira ir embora. Contorno a pequena trincheira, atravesso a Andrade Neves, sigo subindo. Passo em frente ao cartório, à Lancheria Ladeira, dou uma olhada breve para o interior do Beco dos Livros, parte de mim querendo entrar e perder algumas horas procurando livros ao acaso. Detenho-me breve instante ao lado do Sindbancários, tentando lembrar qual o filme em cartaz lá dentro. E então cheguei. Quase entro no Edifício Montreal, corredor rumo ao elevador, quarto andar. Meu andar por quase três anos. Anos que valeram por décadas de vivência, da maior vivência e do melhor aprendizado que a vida pode oferecer.
Olho a ladeira, mas não subo. Volto a andar, em direção à Praça da Alfândega. No momento, é esse o meu lugar: junto aos velhos e vagabundos, aos casais que namoram em um intervalo do expediente, aos senhores que jogam damas, aos homens que vieram do interior e aguardam por entrevistas de emprego. Tenho tempo livre: em um banco da praça, ficarei observando as pessoas que passam, tomando notas em meu caderno enquanto o tempo vai embora lentamente. Cada um tem seu retorno, seu reencontro consigo mesmo: este é o meu.
Feliz de me ter de volta, a praça me oferece um de seus assentos mais confortáveis, à sombra.
Treze de setembro de dois mil e treze.
Nada acabou.
Tudo recomeça.