Deitado na calçada, o homem parecia dormir. Quase passei reto por ele, distraído com a música dos fones de ouvido e com pequenos compromissos; não fosse a expressão preocupada que percebi no rosto de uma ou duas pessoas ao redor, talvez sequer tivesse parado para observar a cena. À primeira vista, era apenas um homem de meia idade, pobre e de roupas sujas, daqueles que passam parte da vida ou o tempo todo na rua, dormindo um pouco mais longe da parede do prédio do que de costume. É como vemos a maioria das pessoas do mundo: em um relance, sem nenhum cuidado ao detalhe, um passo apressado depois do outro e então já foi, já passou, adeus. Felizmente tenho conseguido me manter razoavelmente atento, de modo que percebi a inquietação dos coadjuvantes e finalmente parei para dar uma olhada na cena.
Foi fácil perceber que algo não estava bem. O sangue saído da boca do homem formava uma poça ao lado de seu rosto, o vermelho salpicado de pequenos pedaços de pão semi mastigado. Respirava fundo, com dificuldade, tanto que temia-se que pudesse estar sufocando de alguma forma. Seu boné, de um branco meio acinzentado, tinha voado longe; pouco antes, ao lado de um registro de água, estavam um punhado de hastes pretas de plástico que pareciam cabides, que eu confesso não saber para que servem mas que pareciam algo que ele tivesse resgatado para negociar em espaços de reciclagem. Suas roupas pareciam mais sujas da cintura para baixo, como quem tivesse mergulhado em consideráveis montanhas de lixo durante o dia. Joelhos que quase saltavam para fora da fina camada de pele, pernas cobertas de cicatrizes. O rosto quase todo em contato direto com o basalto áspero. Não era certamente a primeira vez que ele tinha um contato rude e repentino com a calçada.
Algumas pessoas tentavam ajudá-lo. Não eram muitas: duas jovens mulheres, uma senhora de mais idade que julgo moradora das redondezas, um senhor de mochila às costas que apenas observava sem intervir, os proprietários da loja de miudezas à frente. Os demais passavam, alguns parecendo apressados, outros apenas fingindo pressa. Uma das moças atuava de forma mais decisiva para auxiliar o homem caído: agachou-se, cutucava-o com suavidade, ergueu sua cabeça para que pudesse respirar melhor. Ao lado, a outra moça tentava em vão convencer um atendente a enviar uma ambulância ao local. Descreveu repetidas vezes a situação do homem, explicou em mais de uma oportunidade que não, não era moradora da área e não, não conhecia a pessoa que passava mal. Deu várias referências do local onde estávamos, que de qualquer modo já era bastante central para ser acessado com facilidade. Desligou desanimada, enquanto a senhora que parecia residir por ali resolveu ela também telefonar. Recém surgido de dentro da loja, o dono do estabelecimento a desencorajou: ele tinha ligado para o 192 e, segundo ele, desligaram o telefone em sua cara. "Eu disse tudo, disse que era dono da loja e nem deram bola", acentuou. Melhor ligar para a Brigada Militar, segundo ele.
Enquanto isso, o homem ao chão parecia recompor-se aos poucos. Já não arquejava; sua respiração era calma, os olhos fechados, o rosto sem expressão visível de dor. Não fosse o sangue que manchava sua boca e nariz e se diria que, de fato, apenas dormia. O bone, agora resgatado, servia de travesseiro; em seguida, uma caixa de papelão foi também colocada embaixo de sua cabeça. "Não pode deixar a cabeça baixa", recomendou a senhora, em uma pausa da sua infrutífera conversa com o SAMU. O dono da loja, acompanhado de alguém que imagino fosse sua esposa, já havia ligado para a BM - que surgiu bastante rápido, dois homens altos e corpulentos com expressão de quem lida com esse tipo de coisa muitas vezes ao dia.
Em um canto, o pão que o homem comia antes da queda já estava sendo reaproveitado. Alheia ao que acontecia em torno de si, uma barata roía com entusiasmo os restos do alimento.
Agora, um dos brigadianos encarregava-se de telefonar ao atendimento de emergência. "Se não é a gente que liga, eles não vêm mesmo, é muito trote", confidenciou um dos policiais. De fato, as breves palavras de um membro da BM parecem ter mais peso que repetidas ligações civis - pois não se passaram três minutos até que uma ambulância da SAMU surgisse, uma dupla de enfermeiros prontos para auxiliar o cidadão ressonando na calçada.
Os donos da loja explicavam o que tinha ocorrido. Não tinha sido agressão, garantiam: o homem estivera sentado ao lado do registro de água por mais de uma hora, comendo lentamente algumas fatias de pão. Não souberam dizer se estava bêbado ou não. O homem levantou, disseram, e em seguida caiu no chão, como quem subitamente desmaia; os ferimentos eram, ao que tudo indica, resultado da queda. As moças, a essa altura, tinham desaparecido; a presença de brigadianos tinha atraído mais alguns curiosos, mas a aglomeração de pessoas era mesmo assim bastante pequena. Os enfermeiros, um homem e uma mulher, cumprimentaram os policiais como a conhecidos de muitas ocorrências; com alguns movimentos decididos, conseguiram acordar o homem e colocá-lo sentado no chão.
Me surpreendeu a dignidade daquele homem humilde, sangrando e de roupas sujas, diante da situação em que se encontrava. Mal pude ouvir o que dizia, mas não pareceu constrangido nem demasiado atordoado. Estava confuso, claro - mas suspeitei que realmente aquilo não fosse algo inédito em sua vida, que ele soubesse bem o que tinha ocorrido e já estivesse de certo modo conciliado com a ocorrência ocasional daquele tipo de situação. Talvez fosse um bêbado, mas me pareceu bem mais uma pessoa doente que, pelas circunstâncias de sua vida, apenas convivia com alguma condição clínica desagradável ao invés de tratá-la adequadamente. Explicou algo aos enfermeiros em voz muito baixa, aceitou o lenço oferecido para limpar o sangue da face e concordou imediatamente em entrar na ambulância para fazer algumas medições.
Diante da iminência de partida, gerou-se um pequeno impasse a respeito das poucas posses do homem - basicamente, algumas caixas de papel, um saco com fatias de pão e as tais hastes que pareciam cabides. A senhora que antes havia tentado ligar para a emergência assumiu a dianteira na solução do problema. Primeiro, pediu que os donos da loja guardassem temporariamente aquelas coisas, o que recusaram-se a fazer. "Não quero ficar com nada que não é meu", disse a mulher que conduzia o negócio, com a concordância silenciosa do marido. Prontificou-se, então, a própria senhora das redondezas a ficar com aquelas coisas: pediu uma sacola plástica aos lojistas e forneceu o endereço aos brigadianos, para repassarem ao homem quando ele estivesse em condições de resgatar seus pertences. Uma mulher que havia acabado de chegar disse que era melhor simplesmente jogar fora aquelas coisas, algo recusado com veemência pela outra senhora. "Como assim, jogar fora? Isso aqui para ele é dinheiro!", protestou.
Não vi o final da cena. Com o homem já dentro da ambulância, medindo a pressão, me pareceu melhor guardar silêncio e seguir meu caminho. Não havia muito mais que se pudesse fazer, de qualquer modo - nada a não ser seguir em frente, retomar o passo pelas ruas da tarde cinzenta, mantendo meu rosto bem longe do asfalto. Porque a vida segue, e sempre há mais o que ver, tantas coisas a testemunhar.