[caption id="attachment_706" align="alignleft" width="200"] Foto: Matt Cullen[/caption]
- Eles estão chegando - disse assim que entrou pela porta. A voz baixa, mas as palavras pesadas - pareciam cair de sua boca antes que ele pudesse pronunciá-las. Roupas amassadas, os passos pouco firmes, indecisos. Em tudo era como se ele estivesse bêbado - com a exceção que eu sabia, acima de qualquer dúvida, que ele não estava bêbado coisa nenhuma.
- Eles quem? - Foi tudo que consegui perguntar.
- É melhor não saber - respondeu rápido, as palavras despencando dos lábios. - Se você não souber, não poderá dizer nada a respeito, e essa é a melhor chance que você tem de escapar. Eu já estou condenado; você talvez consiga se safar. Vamos, feche a porta.
- Mas fechar por quê, se eles vão chegar mesmo? Vamos deixar aberta a porta, assim eles entram mais fácil. (Sempre fui insolente. É uma de minhas melhores qualidades - e, é claro, parte da minha maldição. As palavras rudes. Afiadas como adagas.)
O olhar dele para mim foi pesado, áspero. Cheio de ondulações, porém. Como uma pedra de basalto mal recortada.
Fechei a porta.
Já estava na cozinha, abrindo uma lata de cerveja. Fui até ele devagar. Estava suado, mesmo que não exatamente fizesse calor: era um dia nublado, de muitas promessas de chuva, calçadas úmidas aguardando os caminhantes do fim de expediente.
Imagino que ele tivesse caminhado um bocado.
- No que você se meteu desta vez? - me vi perguntando. No instante seguinte me arrependi: sabia que era uma pergunta estúpida. Nunca houve necessidade de perguntas entre nós. Se algo houvesse a ser dito, ele me diria: essa era nossa dinâmica. Minha impaciência não era nova, mas continuava tão inútil quanto sempre.
- O mesmo de sempre - respondeu ele, já terminando a lata enquanto pegava outra na geladeira. - Mas acho que escolhi mal desta vez, sabe.
- Não sei - falei. Minha ideia era encorajá-lo a dizer mais; ao invés disso, caímos ambos em duradouro silêncio. Um silêncio arenoso, que parecia se desmanchar ao toque, mas na verdade apenas formava novos volumes, rearranjava barreiras. Difícil de escalar.
Bebeu quatro latas de cerveja, uma atrás da outra. Todas de pé, a geladeira entreaberta para que não houvesse perda de tempo. Sempre bebeu assim, como quem cumpre uma tarefa. Eu não esperava sua visita, mas felizmente tinha bastante bebida em casa. Teria sido um problema, se eu não tivesse. Ou então talvez essa ideia não seja exata, e na verdade eu o estivesse esperando o tempo todo. Talvez minha vida se resuma a isso, na verdade. A esperá-lo.
Agora comia pedaços do salame que tirou de dentro da minha gaveta de frios. Cortava as lascas com uma faca pequena, de serra. Ia engolindo os nacos de carne, sem fazer muito esforço para remover os pedaços de papel. Enquanto comia, não me olhava no rosto: seus olhos passavam por cima dos meus ombros, contemplando pela janela as nuvens que se moviam com pressa.
Logo choveria de novo.
- Você tem outro lugar para ficar? - me perguntou de repente, como se a pergunta tivesse caído de madura no chão, após balançar longamente no silêncio. - Eles o deixarão ir, mas talvez voltem. E quando voltam, é uma vez só. Eu sairia daqui.
- Não tenho para onde ir - respondi, de má vontade. Aquilo tudo me desagradava.
- Talvez você possa ficar na casa dela, não? - insistiu ele. - Por alguns dias, ao menos. Até achar algum lugar longe daqui. Em outra cidade, de preferência. Eles podem procurar por você, mas não irão muito longe.
- Ela não me receberá - respondi em um tom de desânimo quase triunfante. - Eu e ela nos separamos.
Eu sabia que isso o atingiria. Nunca tive muitas armas contra sua convicção, sua certeza inabalável. Sua fortaleza. Quando eu as tinha, usava sem muitas reservas. Me causava certo prazer abalá-lo: era uma forma de aproximá-lo de mim. O desconsolo nos fazia irmãos.
- Eu não sabia - disse ele então, devagar. - Sinto muito.
- Não sinta - sua resposta polida frustrou-me. Sabia usar as palavras, o maldito! Percebi-me subitamente irritado. - De mais a mais, por que devo eu fugir? Não fiz nada contra eles. Nem sei quem são, pois você se recusa a me dizer!
- Você estará aqui quando eles chegarem - sua voz agora era fria. - Eles saberão que nos conhecemos. E isso bastará para que desconfiem de você. Não agora, não imediatamente. Mas depois. Depois que acabarem comigo, aí lembrarão de você. E estarão certos, porque só você me conhece. Mesmo sem saber, você é o único que sabe.
- Então por que veio até aqui? - quase gritei, desesperado. - Eu não tenho nada com essa história. Deseja que me matem? Quer que eu vá para o inferno junto com você?
De novo aquele olhar pesado caiu sobre mim. A tarde ficou mais cinzenta; os olhos brilhavam como um lanterna mortiça em meio à crescente escuridão.
- Vim porque não poderia ir a outro lugar. Você sabe disso. Todas as minhas trilhas sempre acabam aqui.
Disse, e então calou-se, como quem nunca mais dirá coisa alguma. E eu soube tudo, então. Soube que era verdade. Senti-me tomado de compaixão, de vergonha. E então tive medo.
Parou de comer. Devolveu o salame à geladeira, colocou a faca na pia. Já tinha outra cerveja em mãos, mas desta vez bebeu devagar. Nunca tinha visto ele beber vagarosamente uma cerveja; fiquei tão impressionado que precisei me apoiar na mesa, as duas mãos para trás, pousadas com firmeza sobre o tampo. Bebia um gole, afastava a boca da lata, parecia brincar brevemente com o líquido antes de engolir. Então erguia a lata, aproximava os lábios, sorvia outro gole. O movimento era ritmado, calmo. Eu contemplava tudo fascinado.
A ânsia, logo entendi. A ânsia tinha ido embora. Pela primeira vez, ele sabia que não tinha mais tempo - e, justamente por isso, não sentia mais pressa.
A batida na porta foi seca, breve. Quase protocolar.
Olhei para ele. Ele ainda bebia, talvez o penúltimo gole. Engoliu devagar, como se nada estivesse acontecendo, como se não fosse atrás dele que tivessem vindo.
Batidas mais fortes. Duas. Várias.
Terminou a lata de cerveja como se estivesse na praia, um sorriso estranho dando sinais de surgir nos cantos de seu rosto.
Agora batiam com fúria. Em instantes, forçariam a entrada.
Finalmente, olhou para mim.
- Atenda, ora - disse, simplesmente.
Quis dizer algo. Despedir-me, talvez. Surgiram em minha mente milhões de lembranças e sensações, eventos irrepetíveis de uma amizade singular. Veio tudo de uma só vez, correnteza incontornável do que foi e do que deveria ter sido - e tudo foi se transformando em palavras, um caldo grosso e viscoso de incontáveis palavras virando onda dentro de mim. E o caldo foi se concentrando, ficando mais e mais compacto, de líquido virando sólido e então era como uma pedra que veio descendo rolando quicando até a minha boca e desabou, antes que eu pudesse propriamente pronunciá-la.
- Não.
E caiu no chão, com um estrondo.
Na entrada do apartamento, já chutavam a porta.