[caption id="attachment_682" align="alignright" width="233"] Foto: Flávia de Castro / Arquivo / JC[/caption]
Não consigo mais lembrar a data com clareza. Talvez fosse 2004 ou 2005; era verão, mas não um verão como esse, onde o calor é uma presença quase sólida e qualquer caminhada ao sol é um convite ao desespero. Era um calor de chuva que tinha chovido pouco antes, um calor de pôr do sol de tons de laranja e violeta, um calor daqueles que a gente sente num final de tarde andando pela Duque de Caxias para atalhar pela Praça da Matriz, pegar a Espírito Santo e descer a Riachuelo rumo às paradas de ônibus da Salgado Filho. Eu fazia alguns projetos em vídeo na época: tínhamos nos reunido para discutir detalhes de roteiro de um curta-metragem, se eu bem recordo. Acompanhado de um amigo, eu voltava para casa meio distraído, ainda pensando nos dilemas não solucionados da história que pretendíamos contar, quando uma movimentação no outro extremo da praça chamou minha atenção.
Era na entrada do Theatro São Pedro. Em um primeiro instante, pensei de forma absurda que algo grave estivesse ocorrendo, alguma briga após tentativa de assaltou ou algo assim (vale lembrar que os protestos de rua, tão belamente comuns hoje em dia, não eram moeda corrente por ali naqueles dias, ficando restritos ao MST e a algumas sinetas de professoras em greve). Logo entendi que não era o caso, porém - afinal, os sorrisos eram inúmeros, o som era de cantoria e convenhamos que ninguém sai cantando e sorrindo se a situação é de medo e tensão. Eu e meu amigo nos aproximamos. Palmas, música cantada aos gritos, uma gaita. E então surgem Kraunus e Pletskaya, triunfantes em meio ao alarido, cercados por talvez uma centena de pessoas fascinadas, hipnotizadas. Era a Sbornia que, tão gigante de coração, não cabia mais dentro do teatro - e transbordava para a rua, tomando para si a Praça da Matriz, fazendo uma defesa pública da alegria quase uma década antes de a gente entender o quanto isso era profundamente necessário e fundamental.
Fiquei uns vinte minutos ali, assistindo o espetáculo. A parte que mais me impressionou foi ver os mendigos e desgraçados, os humanos já quase não humanos que moram no coração da cidade indiferente, completamente integrados ao espetáculo inesperado. Eram uns três ou quatro, e haviam também jovens moradores de rua, crianças de talvez doze ou treze anos com enormes sorrisos de orelha a orelha. Cantavam também, batiam palmas também, inclusive interagiram com os dois estrangeiros que comandavam aquela intervenção no meio da metrópole. Infelizmente a memória me falha, de modo que não sou mais capaz de contar fielmente o que foi dito e feito naqueles minutos; mas lembro que meu coração se encheu de cores, e não foi nada melancólico o sumir do sol naquela tarde pós-chuva, porque havia música nas ruas para espantar as trevas de dentro de nós.
Hoje morreu Nico Nicolaiewsky, o Maestro Plestkaya, um dos grandes artistas da Porto Alegre que existe para sempre na minha memória. E o que vou lembrar dele não é dos espetáculos no belo interior do Theatro São Pedro, nem das tantos bons e criativos projetos dos quais participou: vou lembrar dele saindo porta afora, deixando o espaço formal e indo para o meio da praça, cantar e dançar com os vagabundos e desgarrados da cidade que tanto o amou e que ele, certamente, amou de volta. É uma lembrança um pouco confusa e talvez sem nada de extraordinário, mas que vou levar comigo vida afora.
Nico era um artista que transbordava Porto Alegre e amor de todos os poros. Ficamos todos um pouco mais pobres quando algum desses vai-se embora - mas ele nunca vai embora de fato, não é? De certa forma ainda está lá, de pé no topo da escadaria da Praça da Matriz, tocando o acordeon e olhando para o horizonte como um profeta da beleza da vida, cercado de gente boa e feliz. Subvertendo o cinza da melhor forma possível.