quarta-feira, 26 de março de 2014

Nas esquinas de Porto Alegre, uma voz

[caption id="attachment_723" align="alignnone" width="1024"]Foto: Rodrigo Cruz Foto: Rodrigo Cruz[/caption]

A voz das esquinas de Porto Alegre está diferente. É um dom meio torto que sempre tive comigo: o de ouvir a voz da cidade, perceber seu estado de espírito, saber o que sentia e o que pensava de si mesma e de seus filhos e filhas, de nascença ou por adoção. Aprendi a andar pelas ruas de paralelepípedos, dobrando as esquinas cheias de gente, com a voz suave da cidade enchendo de incentivo meus ouvidos e meu espírito. Anda, me dizia a cidade, e olha bem quanta gente diferente, quanta surpresa guardei para ti. E eu andava, e eu olhava, e eu sorria por dentro e era feliz.

Fui jovem em Porto Alegre numa época em que era bom ser jovem em Porto Alegre. O espírito da cidade estava rejuvenescido também. Era um lugar que desejava o novo, que se posicionava como porta de entrada de uma realidade diferente, que transbordava de esperança no amanhã. A cidade gostava de si mesma, brilhava de pura beleza e sorria para todos que por ela andassem. Estar em Porto Alegre era importante e, até certo ponto, uma sorte: era um lugar que fazia diferença e onde o romantismo era possível. Andava-se a esmo pelas ruas e, mesmo assim, a sensação era de estarmos indo para algum lugar.

Com o tempo, a sensação perdeu-se. Porto Alegre adoeceu. Não sei dizer exatamente o que se deu: talvez a realidade de um mundo em desencanto tenha contaminado a cidade sonhadora, ou tenhamos simplesmente alcançado um estágio em que sorrisos e expectativas não eram suficientes. Seja como for, a espiral descendente teve início. Fiquei adulto em uma cidade cada vez mais cínica, mais carrancuda e desesperançada. A voz suave e musical das esquinas e casas antigas foi ficando mais grave e pastosa, falando de cansaço, desilusão, necessidades práticas. A cidade precisava crescer, era o que todos diziam. E ela crescia e ficava cada vez menos mágica, cada vez mais cinza. Não estou feliz, era o que ela me dizia cada vez que eu me aventurava por suas artérias, o coração batendo cada vez mais forte e, ao mesmo tempo, com menos entusiasmo. O meu próprio entusiasmo foi murchando junto com ela. Precisei escondê-lo num lugar bem fundo para que não desaparecesse de vez. Doía ver a cidade tão infeliz depois de dias tão esperançosos, e logo não pude mais suportar mais.

Fugi. Busquei a voz de outras ruas, basicamente. E elas me falavam de muitas coisas, de maravilhas e desgraças, de momentos mágicos e introspecções. Eram vozes diferentes, e por algum tempo a diferença me bastou. Enquanto isso, a cidade da minha infância e adolescência sofria em uma maturidade tomada de depressão. Dos que ainda estavam em Porto Alegre, o que me chegava era desolador - mas quando voltava brevemente à cidade para uma visita, e quando me aventurava pelas ruas que tanto tinham me dito no passado, eu conseguia escutar algo diferente. Era como se ela também estivesse cansada daquilo tudo - e não podendo ir embora como eu mesmo tinha feito, aos poucos tomasse coragem para fazer a mudança dentro de si mesma. Parecia cansada de estar doente. Volta, era o que ela dizia. Volta que as coisas podem melhorar. E eu quero que tu sejas parte disso.

De início, eu fingia que não estava ouvindo. Mas não estava dando certo: eu já escutava a voz dentro de mim. De certo modo, a ouvia desde que tinha partido. E quando a gente ouve não dá para deixar de escutar.

Voltei. E o que tenho visto nos quase quatro anos desde meu regresso demonstra que sim, era hora de voltar. Porto Alegre ainda sofre, ainda é infeliz em muitos momentos, mas voltou a sorrir de vez em quando. Achou em algumas de suas dores o estímulo para buscar o encanto que parecia perdido. Há novas vozes nas esquinas: vozes que falam de resgate, de uma esperança que pode até ser ingênua, mas traz em si a energia do sol que surge depois de muitos dias de céu nublado e carrancudo. Porto Alegre caiu, mas está se reerguendo. Não pode ser salva; ninguém a salvará de si mesma. Mas sente, depois de dias difíceis, que a idade adulta não é tão ruim assim. Ao poucos, concilia-se consigo mesma - e quem poderá dizer quão longe ainda pode ir? Agora mais madura e sábia, talvez ainda possa alcançar grandes coisas, as mesmas com que sonhou irresponsavelmente quando era uma criança dentro de mim.

Há música nos caminhos do centro de Porto Alegre, há cores se movendo com entusiasmada rapidez em meio ao concreto cinzento. Há quem grite para romper o silêncio cúmplice, há indignação diante dos caminhos de concreto e das árvores que caem. Ainda há gente que vai embora, mas tem gente voltando também: voltando a tentar coisas diferentes, a buscar novas praças, novas ruas, novos caminhos. Não está tudo bem, é claro - mas o peso de tudo é diferente. Sento na praça, contemplo as pessoas que surgem e desaparecem, e consigo sorrir. Vamos mal, mas ao mesmo tempo vamos bem, muito bem. Porto Alegre, te amo e te trarei eternamente dentro de mim como a imagem do que sou e do que devo ser. Em mim, sempre terás um interlocutor.

sábado, 22 de março de 2014

Sobre o estado de espírito de desenhos em papel

Nunca fui um desenhista. Sequer cheguei perto disso, na verdade. Talvez tenha uma pequena dose de talento: sou capaz de dar formas razoavelmente proporcionais a uma figura humana e consigo desenhar uma série de objetos, animais e plantas de forma facilmente compreensível - embora, é claro, de forma absolutamente instintiva e sem nenhum domínio de técnicas de desenho. Mas gosto de rabiscar desenhos nos cantos do papel: me ajuda a pensar. É como se o lápis ou a caneta, na medida em que deslizam e formam imagens não planejadas no papel, abrissem espaço para outras ideias, ainda sem forma - impressões, analogias, soluções que aproveitam a trilha e saltam para fora do meu subconsciente, tomando forma rapidamente na minha imaginação. São geralmente produtivos, os momentos em que tenho um papel em branco e muita margens livres para desenhos pobres de técnica, breves e irrepetíveis retratos de qualquer coisa que me venha à mente.

Uma coisa, porém, não consigo desenhar: pessoas infelizes. Sim, é uma pequena bobagem, mas é fato - se eu desenho uma caricatura humana com os lábios voltados para baixo, me sinto imediatamente culpado, chateado comigo mesmo, quase envergonhado. Passo imediatamente a encarar o desenho como uma maldade que cometi - afinal de contas, condenei o desenho a ser permanentemente, eternamente infeliz. Um desenho não pode sorrir por vontade própria: se eu o faço com um aspecto miserável, assim ele vai sentir-se por todo o sempre, assim será seu estado de espírito sempre que algum olhar pousar sobre ele, em todos os momentos, enquanto a tinta ou grafite for visível e o papel existir. É uma decisão muito séria, fazer um desenho infeliz, e por isso eu evito ao máximo colocá-los nesta situação. Faço-os contemplativos, distraídos, confusos, irônicos, maliciosos ou exultantes - infelizes, jamais. Na minha caneta, todos estão no máximo ressabiados; se sou eu que invento, então não vou inventar nada sofrido, nenhuma tristeza que eu não possa desfazer. Na vida e no papel.

sábado, 15 de março de 2014

Extinção

[caption id="attachment_719" align="alignright" width="225"]Foto: graficalicus / Flickr Foto: graficalicus / Flickr[/caption]

"Sou o último", disse-me ele, no dia em que nos conhecemos. Não que fosse velho, mas era visível que não trazia mais a juventude dentro de si: falava em voz baixa e sem calor, o branco já conquistando o negro nas laterais do couro cabeludo. Seus olhos, firmes nos meus, ainda assim pareciam distantes, como se não mais pertencessem ao mundo.

"O último?", perguntei por perguntar, apenas para não ficar em silêncio.

"Sim", respondeu, e sua resposta foi quase um suspiro, um desalento imenso surgindo em sua voz e ecoando dentro de mim. "Nunca fomos muitos, de qualquer modo".

Fez-se silêncio. Longo, pastoso silêncio. Tratei de rompê-lo pedindo mais uma cerveja.

Choveu fraco a noite toda.

Nos despedimos na porta de meu prédio, já ao amanhecer. "Nos vemos outro dia", disse eu, sem ter certeza de dizer a coisa certa, apenas para que não nos despedíssemos em silêncio. Um vento suave criava minúsculas ondas nas poças d'água, iluminadas pelo sol indeciso.

"Não voltarei", respondeu-me, com uma estranha ternura na voz. Quase sorria. "Gostaria de voltar, mas não vai acontecer. Sinto muito".

A esquina é ao lado do prédio onde moro. Dobrou-a. Nunca mais o vi.

Às vezes, repito a cena em minha mente. Mudo os diálogos, o cenário. Em minha imaginação, peço que fique. Se não pode voltar, então não vá embora, digo eu. Algumas vezes, ele concorda. Em outras, vai embora mesmo assim.

terça-feira, 4 de março de 2014

Passos na Chuva (III)

[caption id="attachment_712" align="alignnone" width="978"]Foto: Rumena Zlatkova Foto: Rumena Zlatkova[/caption]

(os dois capítulos anteriores da história podem ser lidos aqui e aqui)

Às vezes, uma maldição se choca com a outra. E então há tempestade. Choveu imensamente naquela parte da cidade, naquele final de tarde.

Era chuva quieta no início, chuva que quase nem chuva era, uma chuva que parecia vir mais das paredes úmidas e do asfalto molhado do que da barreira cinzenta do céu. Chuva que envolvia os caminhantes em suave abraço, um insinuar-se que mal se revelava contra a luz dos postes de rua. Aos poucos, contudo, a chuva foi sendo mais chuva, o abraço mais apertado, o molhado do asfalto empoçando no meio-fio. O vento desrespeitando os guarda-chuvas, os carros parados no semáforo, passos mais rápidos. Pressa. E então surgiu o homem, a capa de chuva escura escondendo quase de todo o rosto debaixo do capuz. Apareceu de uma esquina para a qual ninguém olhava, de modo que não houve quem se apercebesse de sua chegada. Andava devagar, olhando sem observar, os olhos já cansados de pretensa poesia, carregados de cinza. Era o único que não corria.

Ninguém percebia, mas a chuva andava junto com ele.

Dobrou a esquina em uma lentidão sem ênfase, vazia de propósitos. Era um movimento que não tinha em si nenhum ânimo além do próprio mover-se, incapaz de atingir o ponto de justificativa, nadar do peixe que não pode ir além das paredes de seu aquário. A chuva era sua redoma: levava ela consigo para onde fosse, arrastando-a a cada passo, compartilhando sua maldição pelo caminho. Sou o Homem que Traz a Chuva, havia pensando em determinado momento, em uma tentativa pobre de piada consigo mesmo. Conceito desprovido de humor porque no fundo verdadeiro: desde que tinha sido capturado, não haveria lugar onde estivesse no qual o sol pudesse brilhar.

Precisava achar o caminho de casa. Mas como saber para onde ir? Era incapaz de olhar adiante. Andava a esmo, já consumido pelo cansado, passos pesados de desesperança.

Vinha tão imerso no mau tempo que não percebeu que estava sendo seguido.

Quase ao fim daquela rua havia um mercado. Pediu que o senhor de cabelos brancos no balcão trouxesse a ele um isqueiro e um maço de cigarros. Ficou de pé na entrada: se eu entrar acabarei molhando tudo, justificou-se. O homem do outro lado olhou o freguês de alto a baixo, concordou com um som de garganta seca e levou os produtos até ele, em passos lentos e cansados. Tudo naquele pequeno comércio evocava cansaço, na verdade: as paredes cobertas de latas e pacotes, as frutas meio murchas, os legumes de verde apagado, o som monótono da geladeira. A luz fria. Era sempre final de tarde, dentro daquele lugar - e o Homem que Traz a Chuva percebeu isso com clareza. Fique com o troco, disse ele, fazendo um suave gesto de cabeça como despedida. O vendedor não respondeu. Virou as costas, passos lentos em direção aos fundos da loja. Parecia saber que não haveriam mais fregueses naquela noite.

Andou poucos passos antes de encostar-se debaixo de uma estreita marquise, proteção precária da entrada de uma garagem. A água que caía de um dos cantos batia no chão e respingava em suas calças, na altura da canela, mas não era algo a que ele fosse dar importância àquela altura. Os cigarros estavam secos, e esse era um prazer que não podia esperar. Abriu a carteira rapidamente, precisou de certo esforço para fazer o isqueiro funcionar, mas logo na primeira tragada sentiu-se brevemente reconfortado consigo mesmo. Era o mais próximo de um sorriso que seu rosto chegava em muito tempo.

A chuva era cada vez mais forte. As poças d'água pareciam fervilhar com as gotas que caíam furiosas do céu.

Ao longe, soavam os trovões. Os prédios, porém, eram altos; os estouros de luz eram invisíveis.

- Essa chuva vai longe - disse uma voz a seu lado.

Voltou-se rapidamente, sobressaltado. Seu interlocutor era um homem não muito alto, de olhos negros e olheiras profundas. Tinha o rosto de quem estivesse sempre prestes a bocejar. Vestia uma capa de chuva dois números maior que ele; os sapatos, muito molhados, pareciam prestes a desmanchar em seu pés. A gravata no pescoço estava frouxa, o nó pendendo ligeiramente para a esquerda.

- Posso incomodá-lo por um cigarro? - perguntou o recém-chegado. Parecia não abrir a boca quando falava. - Faz tempo que não fumo. E seus cigarros parecem secos.

Havia algo estranho e incômodo naquela situação. Ele não era capaz de confiar naquele desconhecido, naquela pessoa que surgia de nada para dirigir-lhe a palavra de modo tão inesperado. Ninguém falava com ele, quase sempre era como se não o vissem. A solidão o agradava; parecia mais lógico andar sozinho, dentro da redoma de sua chuva particular. Não gostava da ideia de que alguém se intrometesse na pureza melancólica de sua solidão.

Estendeu o cigarro, sem dizer palavra. Precisou de três tentativas antes de acendê-lo. O desconhecido tragou fundo, com entusiasmado prazer.

- Muito obrigado - disse em voz baixa, a fumaça ainda escapando entre os lábios. - Um cigarro sempre cai bem, nessa chuva maldita. Parece que não vai acabar nunca, esse aguaceiro. Você sabe como é.

Fez uma pausa para mais uma tragada. Um som de trovão ecoou pela rua, como um tom de baixo em meio à chuva.

- Afinal, você também é um prisioneiro dela, como eu. Você também carrega a chuva para onde quer que vá.