[caption id="attachment_712" align="alignnone" width="978"] Foto: Rumena Zlatkova[/caption]
(os dois capítulos anteriores da história podem ser lidos aqui e aqui)
Às vezes, uma maldição se choca com a outra. E então há tempestade. Choveu imensamente naquela parte da cidade, naquele final de tarde.
Era chuva quieta no início, chuva que quase nem chuva era, uma chuva que parecia vir mais das paredes úmidas e do asfalto molhado do que da barreira cinzenta do céu. Chuva que envolvia os caminhantes em suave abraço, um insinuar-se que mal se revelava contra a luz dos postes de rua. Aos poucos, contudo, a chuva foi sendo mais chuva, o abraço mais apertado, o molhado do asfalto empoçando no meio-fio. O vento desrespeitando os guarda-chuvas, os carros parados no semáforo, passos mais rápidos. Pressa. E então surgiu o homem, a capa de chuva escura escondendo quase de todo o rosto debaixo do capuz. Apareceu de uma esquina para a qual ninguém olhava, de modo que não houve quem se apercebesse de sua chegada. Andava devagar, olhando sem observar, os olhos já cansados de pretensa poesia, carregados de cinza. Era o único que não corria.
Ninguém percebia, mas a chuva andava junto com ele.
Dobrou a esquina em uma lentidão sem ênfase, vazia de propósitos. Era um movimento que não tinha em si nenhum ânimo além do próprio mover-se, incapaz de atingir o ponto de justificativa, nadar do peixe que não pode ir além das paredes de seu aquário. A chuva era sua redoma: levava ela consigo para onde fosse, arrastando-a a cada passo, compartilhando sua maldição pelo caminho. Sou o Homem que Traz a Chuva, havia pensando em determinado momento, em uma tentativa pobre de piada consigo mesmo. Conceito desprovido de humor porque no fundo verdadeiro: desde que tinha sido capturado, não haveria lugar onde estivesse no qual o sol pudesse brilhar.
Precisava achar o caminho de casa. Mas como saber para onde ir? Era incapaz de olhar adiante. Andava a esmo, já consumido pelo cansado, passos pesados de desesperança.
Vinha tão imerso no mau tempo que não percebeu que estava sendo seguido.
Quase ao fim daquela rua havia um mercado. Pediu que o senhor de cabelos brancos no balcão trouxesse a ele um isqueiro e um maço de cigarros. Ficou de pé na entrada: se eu entrar acabarei molhando tudo, justificou-se. O homem do outro lado olhou o freguês de alto a baixo, concordou com um som de garganta seca e levou os produtos até ele, em passos lentos e cansados. Tudo naquele pequeno comércio evocava cansaço, na verdade: as paredes cobertas de latas e pacotes, as frutas meio murchas, os legumes de verde apagado, o som monótono da geladeira. A luz fria. Era sempre final de tarde, dentro daquele lugar - e o Homem que Traz a Chuva percebeu isso com clareza. Fique com o troco, disse ele, fazendo um suave gesto de cabeça como despedida. O vendedor não respondeu. Virou as costas, passos lentos em direção aos fundos da loja. Parecia saber que não haveriam mais fregueses naquela noite.
Andou poucos passos antes de encostar-se debaixo de uma estreita marquise, proteção precária da entrada de uma garagem. A água que caía de um dos cantos batia no chão e respingava em suas calças, na altura da canela, mas não era algo a que ele fosse dar importância àquela altura. Os cigarros estavam secos, e esse era um prazer que não podia esperar. Abriu a carteira rapidamente, precisou de certo esforço para fazer o isqueiro funcionar, mas logo na primeira tragada sentiu-se brevemente reconfortado consigo mesmo. Era o mais próximo de um sorriso que seu rosto chegava em muito tempo.
A chuva era cada vez mais forte. As poças d'água pareciam fervilhar com as gotas que caíam furiosas do céu.
Ao longe, soavam os trovões. Os prédios, porém, eram altos; os estouros de luz eram invisíveis.
- Essa chuva vai longe - disse uma voz a seu lado.
Voltou-se rapidamente, sobressaltado. Seu interlocutor era um homem não muito alto, de olhos negros e olheiras profundas. Tinha o rosto de quem estivesse sempre prestes a bocejar. Vestia uma capa de chuva dois números maior que ele; os sapatos, muito molhados, pareciam prestes a desmanchar em seu pés. A gravata no pescoço estava frouxa, o nó pendendo ligeiramente para a esquerda.
- Posso incomodá-lo por um cigarro? - perguntou o recém-chegado. Parecia não abrir a boca quando falava. - Faz tempo que não fumo. E seus cigarros parecem secos.
Havia algo estranho e incômodo naquela situação. Ele não era capaz de confiar naquele desconhecido, naquela pessoa que surgia de nada para dirigir-lhe a palavra de modo tão inesperado. Ninguém falava com ele, quase sempre era como se não o vissem. A solidão o agradava; parecia mais lógico andar sozinho, dentro da redoma de sua chuva particular. Não gostava da ideia de que alguém se intrometesse na pureza melancólica de sua solidão.
Estendeu o cigarro, sem dizer palavra. Precisou de três tentativas antes de acendê-lo. O desconhecido tragou fundo, com entusiasmado prazer.
- Muito obrigado - disse em voz baixa, a fumaça ainda escapando entre os lábios. - Um cigarro sempre cai bem, nessa chuva maldita. Parece que não vai acabar nunca, esse aguaceiro. Você sabe como é.
Fez uma pausa para mais uma tragada. Um som de trovão ecoou pela rua, como um tom de baixo em meio à chuva.
- Afinal, você também é um prisioneiro dela, como eu. Você também carrega a chuva para onde quer que vá.