[caption id="attachment_723" align="alignnone" width="1024"] Foto: Rodrigo Cruz[/caption]
A voz das esquinas de Porto Alegre está diferente. É um dom meio torto que sempre tive comigo: o de ouvir a voz da cidade, perceber seu estado de espírito, saber o que sentia e o que pensava de si mesma e de seus filhos e filhas, de nascença ou por adoção. Aprendi a andar pelas ruas de paralelepípedos, dobrando as esquinas cheias de gente, com a voz suave da cidade enchendo de incentivo meus ouvidos e meu espírito. Anda, me dizia a cidade, e olha bem quanta gente diferente, quanta surpresa guardei para ti. E eu andava, e eu olhava, e eu sorria por dentro e era feliz.
Fui jovem em Porto Alegre numa época em que era bom ser jovem em Porto Alegre. O espírito da cidade estava rejuvenescido também. Era um lugar que desejava o novo, que se posicionava como porta de entrada de uma realidade diferente, que transbordava de esperança no amanhã. A cidade gostava de si mesma, brilhava de pura beleza e sorria para todos que por ela andassem. Estar em Porto Alegre era importante e, até certo ponto, uma sorte: era um lugar que fazia diferença e onde o romantismo era possível. Andava-se a esmo pelas ruas e, mesmo assim, a sensação era de estarmos indo para algum lugar.
Com o tempo, a sensação perdeu-se. Porto Alegre adoeceu. Não sei dizer exatamente o que se deu: talvez a realidade de um mundo em desencanto tenha contaminado a cidade sonhadora, ou tenhamos simplesmente alcançado um estágio em que sorrisos e expectativas não eram suficientes. Seja como for, a espiral descendente teve início. Fiquei adulto em uma cidade cada vez mais cínica, mais carrancuda e desesperançada. A voz suave e musical das esquinas e casas antigas foi ficando mais grave e pastosa, falando de cansaço, desilusão, necessidades práticas. A cidade precisava crescer, era o que todos diziam. E ela crescia e ficava cada vez menos mágica, cada vez mais cinza. Não estou feliz, era o que ela me dizia cada vez que eu me aventurava por suas artérias, o coração batendo cada vez mais forte e, ao mesmo tempo, com menos entusiasmo. O meu próprio entusiasmo foi murchando junto com ela. Precisei escondê-lo num lugar bem fundo para que não desaparecesse de vez. Doía ver a cidade tão infeliz depois de dias tão esperançosos, e logo não pude mais suportar mais.
Fugi. Busquei a voz de outras ruas, basicamente. E elas me falavam de muitas coisas, de maravilhas e desgraças, de momentos mágicos e introspecções. Eram vozes diferentes, e por algum tempo a diferença me bastou. Enquanto isso, a cidade da minha infância e adolescência sofria em uma maturidade tomada de depressão. Dos que ainda estavam em Porto Alegre, o que me chegava era desolador - mas quando voltava brevemente à cidade para uma visita, e quando me aventurava pelas ruas que tanto tinham me dito no passado, eu conseguia escutar algo diferente. Era como se ela também estivesse cansada daquilo tudo - e não podendo ir embora como eu mesmo tinha feito, aos poucos tomasse coragem para fazer a mudança dentro de si mesma. Parecia cansada de estar doente. Volta, era o que ela dizia. Volta que as coisas podem melhorar. E eu quero que tu sejas parte disso.
De início, eu fingia que não estava ouvindo. Mas não estava dando certo: eu já escutava a voz dentro de mim. De certo modo, a ouvia desde que tinha partido. E quando a gente ouve não dá para deixar de escutar.
Voltei. E o que tenho visto nos quase quatro anos desde meu regresso demonstra que sim, era hora de voltar. Porto Alegre ainda sofre, ainda é infeliz em muitos momentos, mas voltou a sorrir de vez em quando. Achou em algumas de suas dores o estímulo para buscar o encanto que parecia perdido. Há novas vozes nas esquinas: vozes que falam de resgate, de uma esperança que pode até ser ingênua, mas traz em si a energia do sol que surge depois de muitos dias de céu nublado e carrancudo. Porto Alegre caiu, mas está se reerguendo. Não pode ser salva; ninguém a salvará de si mesma. Mas sente, depois de dias difíceis, que a idade adulta não é tão ruim assim. Ao poucos, concilia-se consigo mesma - e quem poderá dizer quão longe ainda pode ir? Agora mais madura e sábia, talvez ainda possa alcançar grandes coisas, as mesmas com que sonhou irresponsavelmente quando era uma criança dentro de mim.
Há música nos caminhos do centro de Porto Alegre, há cores se movendo com entusiasmada rapidez em meio ao concreto cinzento. Há quem grite para romper o silêncio cúmplice, há indignação diante dos caminhos de concreto e das árvores que caem. Ainda há gente que vai embora, mas tem gente voltando também: voltando a tentar coisas diferentes, a buscar novas praças, novas ruas, novos caminhos. Não está tudo bem, é claro - mas o peso de tudo é diferente. Sento na praça, contemplo as pessoas que surgem e desaparecem, e consigo sorrir. Vamos mal, mas ao mesmo tempo vamos bem, muito bem. Porto Alegre, te amo e te trarei eternamente dentro de mim como a imagem do que sou e do que devo ser. Em mim, sempre terás um interlocutor.