Houve uma época em que a cidade era minha. Eu gostava de andar pelas ruas semidesertas, acordar os cachorros de rua, molhar minhas meias nas poças d'água. Era bom perder tempo antes de voltar para casa, era bom rir com desconhecidos e dar cigarros aos mendigos e vagabundos. Era bom olhar pela janela do meu quarto e ver o horizonte emoldurando o jacarandá. Andar sem pressa, perder o ônibus, tomar uma saideira, pedir mais um beijo de despedida. A cidade era minha, e eu a saboreava da melhor maneira possível, sem sequer me dar conta de que o fazia.
Hoje em dia, querem roubar a cidade de mim. Ela está cada vez mais longe, mais difícil de alcançar; quando chego nela, me dizem que devo ir embora logo, que estou atrapalhando. As ruas que eram minhas agora me são negadas, quer pela inconveniência de minha presença, quer pelas ameaças que surgiram de uma hora para outra e que não devo conhecer ou desafiar. Engoliu-se o horizonte, cobriu-se o verde de piche. Bebo com pressa, beijo com pressa, fujo com pressa do que um dia pensei que fosse meu. As coisas precisam funcionar, dizem. E constroem prédios cada vez maiores, avenidas cada vez mais largas, e tudo funciona cada vez menos. Olho de longe e não entendo nada.
Pudesse, pintaria algumas cores nessa cidade. Escalaria as paredes e as latas de lixo para raspar o cinza e trazer as cores de volta. Pegaria ônibus errados, dançaria na faixa de pedestres e apertaria as mãos dos mendigos em um alegre reencontro. No meu reino, nada seria prático e nada jamais funcionaria a contento. Dos prédios abandonados, eu arrancaria poesia. Acordaria todos os que dormem em paz, cantando uma música tão bela de chama e de vida que todos abririam as janelas e cantariam junto comigo. Encheria a noite de sonhos, como era antes. Faria a cidade voltar a sorrir.