O pequeno cãozinho sentou-se no meio da via pública como se aquele lugar fosse dele, como se aquela calçada fosse sua propriedade eterna e inalienável. Era um vira-lata magrelo, de pêlo café-com-leite, algumas manchas pretas, várias costelas aparecendo. Seu dono não devia estar longe: pelo menos três moradores de rua dormiam a poucos metros do cão, cobertos debaixo de sujeira, indiferença e tiras de papelão. Na verdade, talvez o bichinho seja mesmo dono daquele espaço de chão, e eu que não tenha me apercebido disso. Afinal, quantas vezes terá o cachorro dormido ali, em noites frias ou calorentas, em quintas-feiras movimentadas ou domingos preguiçosos? As ruas têm suas próprias regras, seus códigos e soluções, então vai saber. Seja como for, sentou-se na calçada, com a inconsequência dos jovens de todas as espécies, com o ar distraído e tranquilo dos que nada entendem de stress, pressa ou compromissos.
Tal era a tranquilidade que emanava do bicho, tão forte era a sensação que ele passava de ser o dono daquele pedaço de pavimento, que de alguma maneira as pessoas que andavam por ali tornaram-se silenciosas cúmplices aquela auto-proclamada autoridade. Desviavam do cachorro de maneira quase inconsciente, muitas vezes sem nem olhar para baixo, convencidas de alguma forma mágica de que aquele animal estava em seu lugar e que a melhor coisa a fazer era seguirem em frente, sem incomodá-lo. Homens de terno e gravata, jovens moças sorridentes, vendedores ambulantes, trabalhadores, vagabundos e apressados de todos os tipos – todos desviavam do pequeno animal, sem ousar perturbá-lo, sem questionar a autoridade do grande espírito que comanda as ruas de todas as metrópoles do mundo.
Foi quando surgiu o casal. Não faço ideia de onde vieram; um casal humilde, com aquela idade indefinível dos pobres e sofridos, dos que tratam de viver sem ficarem contando a passagem dos dias e dos anos. O homem usava um jeans velho e chinelos de dedo; a mulher carregava uma bolsa chamativa e uma blusa que devia ter sido vermelha, mas agora tinha assumido um estranho tom de rosa esbranquiçado. Nenhum dos dois tinha todos os dentes na boca. Andavam de mãos dadas, sorrindo e conversando, como geralmente fazem os casais que se sentem felizes com a ideia de serem casais. Iluminavam aquele viaduto sujo e mal cuidado com a beleza pura e ingênua do sentimento que nutriam um pelo outro, e eu gostei de vê-los, gostei de ser de certo modo testemunha daquela união.
E caminhou o casal em direção ao cão, atravessando a distância entre eles, aproximando-se até que a interação entre eles fosse inevitável. Ao contrário de muitos, perceberam o animal, e creio que comentaram algo a respeito dele, pois olharam para ele, olharam um para o outro e riram. E como precisassem desviar do bicho, e como não quisessem separar as mãos, simplesmente distanciaram-se um pouco um do outro, as mãos ainda dadas, erguendo levemente os braços em um pequeno arco. No momento em que passaram por cima do cachorro, o bichinho ergueu o olhar para um deles, com expressão de curiosidade, como quem honestamente não entendesse o propósito daquele improvisado balé. E assim os vi, o casal de mãos dadas, entre eles o cachorro, sobre o cachorro duas mãos que se uniam num misto de moldura e bênção.
Lamentei muito, muitíssimo mesmo, não ter algum equipamento comigo, ao menos um celular que pudesse registrar visualmente aquele momento de inesperada mágica. Se eu tivesse os meios, e se eu tivesse o talento, talvez pudesse ter extraído daquele pequeno instante parte da beleza que nele senti, e gerar uma imagem que fizesse a ele um mínimo de justiça. Resta a imagem da minha visão, a foto agora impossível que carrego na minha retina e na minha memória. É uma bela foto, podem acreditar.
De qualquer modo, a cidade segue me mandando esses sinais, esses pequenos momentos mágicos, essas histórias que se revelam e que precisam ser contadas. Não sei se a intensidade realmente aumentou, ou se sou eu que agora percebo melhor, que estou mais atento, os olhos mais abertos.
Originalmente publicada em 18/jan/2010