Quinta-feira à tarde. Já estava há vários minutos esperando pelo ônibus e observava sem muita concentração as pessoas que cruzavam de um lado a outro da avenida. De repente,uma delas se deteve de modo meio ridículo no meio da rua, agachando-se desajeitadamente para pegar algo que naquele momento eu não conseguia entender o que fosse. Demorou um pouco, o suficiente para que alguns carros passassem velozmente - mas o homem não parecia dar a menor importância ao caráter meio arriscado de sua situação, concentrando todo o seu intelecto naquela tarefa um tanto fora de propósito de juntar do chão aquela qualquer coisa que havia encontrado. Mas só quando ele finalmente se levantou, trazendo entre os dedos a bagana de cigarro que juntara do asfalto, pude entender melhor as circunstâncias daquela cena tão estranha.
Devia ter uns trinta anos, talvez um pouco mais, e pude perceber em um golpe de olhar os traços físicos e gestuais da Síndrome de Down. Vestia um abrigo verde humilde, mas limpo, e cobria sua cabeça totalmente careca com um boné azul bastante velho e desbotado. Terminou desajeitadamente de atravessar a rua e deteve-se no ponto de ônibus, não muito próximo de mim, mas em um ponto onde me era fácil observá-lo. Ficou ali, movendo-se de lado a lado como quem está num navio que balança, fumando o cigarro que catou do chão com uma sofreguidão impressionante. Não estava de modo algum saboreando as tragadas ou apreciando o sabor da nicotina: era uma ação determinada, quase mecânica, na qual até as breves pausas para tomar fôlego pareciam uma interrupção absurda e altamente indesejada. Não retinha a fumaça, que escapava abundante pela boca em cada tragada. De fato, não me parecia uma atividade executada com prazer ou mesmo com maior conhecimento de causa; a ideia era, simplesmente, acabar com o cigarro o mais rápido possível. Quando finalmente o consumiu até o filtro, jogou fora o que dele restou com o mal-disfarçado alívio de quem cumpriu um dever inadiável mas consideravelmente penoso, alheio aos olhares dos que, como eu, serviam de platéia para aquela pequena e estranha vitória.
Por alguns momentos, deve ter se sentido aliviado por ter se livrado do cigarro do único jeito que lhe parecia aceitável; logo depois, porém, colocou as mãos nos bolsos, voltou o olhar para o chão, e confesso que fiquei tocado com a expressão de puro desconsolo que tomou conta do seu rosto. Era como se, tendo acabado o cigarro, não restasse a ele mais nenhum dever a cumprir, nenhuma coisa para a qual pudesse ser útil - como se pesasse dolorosamente em sua alma a consciência de que, no fim das contas, não prestava para mais nada. Como o espetáculo fascinante de um deficiente mental fumando compulsivamente já tinha acabado, imagino que ninguém mais olhasse para ele naquele momento além de mim - e durante alguns momentos fui testemunha daquela profunda tristeza, aparentemente tão sem sentido mas que, com toda a certeza, dizia respeito a coisas que desconheço e cujos efeitos não posso pretender compreender plenamente.
Foi a passagem de um ônibus que operou a mudança final no ânimo daquele homem. Quando o veículo passou, com seu barulho de rodas e embreagens e escapamento e portas automáticas, o rosto do homem se ergueu, e sua expressão iluminou-se, ainda que de modo temporariamente confuso. Recordava algo, logo percebi. De repente, avançou rapidamente até a beira da calçada, ficando bem perto da parte de trás do veículo que estava prestes a partir - e, voltando-se para o local onde deveria estar o motorista e o cobrador, ergueu o punho direito com firmeza, fazendo um sinal de positivo com a mão enquanto o ônibus ia embora.
Demorei a entender o que se passava. Acho que só quando ele fez o sinal de OK para o terceiro ou quarto ônibus finalmente associei seu movimento ao dos fiscais de linha, que em suas pranchetas registram o ir e vir dos coletivos e das gentes da grande cidade. Deve ter visto um deles em uma de suas viagens de ônibus, tomando notas e acenando para os motoristas. Como naquela parada não havia nenhum deles, talvez tenha pensado que poderia preencher o espaço vazio até que alguém viesse retomá-lo. Como não tivesse prancheta, ficou a fazer sinais de positivo, de modo muito sério, sem nem mesmo uma sombra de sorriso no rosto. Não mais estava desapontado, mas novamente se via tomado por uma responsabilidade, a qual cumpria com silenciosa e atenta dedicação. Duvido que algum dos motoristas e cobradores aos quais acenou tenha respondido ao cumprimento, mas para ele isso não fazia diferença - a conexão que os unia ia muito além da cortesia e da camaradagem, podendo perfeitamente se manter por longo tempo sem o apoio nem de uma e nem de outra.
Não vi se o homem fez sinal de positivo para o ônibus no qual finalmente embarquei, minutos depois - o ângulo de visão não me permitia enxergar, e de qualquer modo estava entretido tentando encontrar moedas para pagar a viagem. Mas gosto de pensar que tenha cumprido com zelo e eficiência sua nova tarefa. E me agrada ainda mais imaginar que algum dos homens para os quais acenou tenha retribuído seu gesto, reconhecendo com um sorriso ou um menear de cabeça o bom serviço prestado por aquele novo profissional. Seria um gesto pequeno, quase insignificante, mas que teria lançado um pouco de luz naquela tarde nublada de Porto Alegre - e oferecido talvez um breve consolo a mais uma das tantas almas sem esperança desta cidade.