segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

2013: anotações para uma retrospectiva impossível

[caption id="attachment_494" align="alignnone" width="1600"]Foto: Yamini Benites Foto: Yamini Benites[/caption]

Eu acho que 2013 é um daqueles anos que não acabará tão cedo. Vocês sabem: existem momentos em nossas vidas que, pela profundidade de emoções que evocam, pelos inúmeros desdobramentos que geram e pelas reflexões que ensejam, acabam marcados com especial destaque na nossa história pessoal ou coletiva. Embora gostemos da sensação de controle que nos traz um calendário exato, em que um dia sucede o outro e assim surgem meses que geram anos e décadas pela vida afora, a verdade é que o tempo do mundo é bem diferente do nosso e em geral imprevisível. Espalha acontecimentos importantes por períodos tão longos que tudo se torna quase imperceptível, ao mesmo tempo que concentra grandes descargas emocionais em poucos instantes, como o vento que sopra suave trazendo as nuvens de grande tempestade. O mundo, como sabemos, não se presta muito a retrospectivas.

Sobrevivemos todos, não é? Porque houve momentos em que 2013 parecia que não ia acabar nunca. A passagem do tempo, geralmente uniforme, ganhou momentos de estranha densidade, como se os relógios andassem mais lentos, os passos fossem mais demorados, os dias extensos, as noites quase eternas. Eu andava pela João Pessoa molhada de chuva, vendo ao longe a fumaça e as explosões e pensando meu deus isso nunca vai acabar. As semanas explodiam nas segundas e quintas-feiras, enquanto os demais dias serviam de caldeirão onde o extrato de incontáveis revoltas cozinhava em fogo alto até a próxima explosão. E logo tudo era barulho e gritaria, tudo era correr e esconder-se e andar um pouco mais, sempre em frente. Uma gestação ruidosa e tensa, de algo que ninguém tinha certeza do que pudesse ser. Acabou a fúria, acabou a gestação, seguimos aguardando o parto. Tudo parou, mas nada está encerrado. O mundo novo só nasce depois que o velho já cansou de agonizar.

E eis o que todos somos neste 2013 que, mesmo encerrado, não acaba nunca: atores e testemunhas da lenta agonia de um mundo que deve morrer. Entre tantas dúvidas e incoerências, resta-nos o toque reconfortante de uma verdade coletiva - o mundo que existe não serve mais. E isso todos percebem, mesmo os que juram não perceber coisa alguma. É esse o extrato de todo pesadelo, de toda fobia inexplicável, de todo choro e toda fome e toda tristeza, inadequação, sofrimento e solidão: algo está muito errado no mundo. E em 2013 essa certeza, que não era nada nova, cristalizou-se entre nós. Não é algo que se resolva mudando o partido que está no governo ou colocando criminosos na cadeia: é a angústia coletiva de quem, sentindo tudo errado, não sabe bem por onde começar a mudança. Sabemos todos que a aurora do mundo em que vivemos há muito já passou - alguns sentem na carne, outros no espírito, mas quem sente sabe que sente e não pode mais fingir não sentir nada. Claro que para muitos nada disso faz sentido, uma vez que nada sentem e nada enxergam. Compreensível: não é em casa ou pela televisão que se verá o Fim do Mundo.

Houve muito fogo em 2013. Houve choro e houve dor, houve horror e sangue, mentira e contradição. Houve raiva. Mas é a raiva que nos faz dizer basta, que nos move a exigir algo além. É a raiva que nos impele para a frente - e é apenas a partir do movimento que podemos achar o amor perdido nas esquinas da conveniência e da conformidade. Raiva é o amor que não encontrou sua trilha, e nesse sentido 2013 foi um ano belíssimo: cheio de raiva, com a promessa de incontáveis trilhas de amor.

Fatos não interessam. São pequenas marcas na trilha arenosa, pegadas um pouco mais profundas talvez, mas que logo serão cobertas pelos passos dos que virão. O que importa é a trilha - e essa todos os pés constroem juntos. Falo de trilhas, e é por isso que de fatos e acontecimentos nada menciono por aqui.

E que efeitos teve 2013 sobre mim? Nenhum, e inúmeros. Tudo mudou, mas nada é diferente. Ao contrário: a trilha parece mais clara agora, mais nítida e mais convidativa ao passo. Ainda tateio no escuro (e quem de nós está livre disso?), mas a noite agora é menos densa, insinuam-se os primeiros raios de luz. Não temo os tropeços e quedas; resta, portanto, andar. Se eu fosse fazer alguma ou muitas resoluções pontuais, creio que todas remeteriam ao mesmo centro: há um caminho, já o enxerguei, por ele devo andar. É apenas isso que peço a mim mesmo: não temer os passos que virão. E apreciarei toda a companhia que a vida colocar a meu lado nessa jornada.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Um espresso, duas moças, três rapazes (e água mineral)

[caption id="attachment_622" align="alignleft" width="300"]Anders Fredenslund / Flickr Anders Fredenslund / Flickr[/caption]

Resolvo fazer uma pausa na tarde para tomar um café. Os cafés, como muitos sabem, são lugar convidativo para os escritores e farsantes: o fluxo de pessoas estimula a imaginação flutuante, e o ambiente favorece a auto-ilusão de quem, tentando iludir aos demais, triunfa em iludir a si mesmo. No momento, contudo, convencer a mim mesmo de que faz sentido escrever é uma preocupação não mais que acessória - muito mais me interessa o lugar à sombra, o espresso sem açúcar e a pausa necessária entre o vir de algum lugar e o seguir em frente.

Peço um espresso e uma água mineral. O café chega rápido e cheiroso; esquecem, porém, de me trazer a água. Ah sim, desculpe, só um instante, diz a moça que me atende, antes de sumir na cozinha por longos minutos.

Não me zango, mas é uma pena. Prezo muito a água mineral para acompanhar meu espresso, especialmente em dias de muito calor.

Duas moças sentam em uma mesa próxima. Diria que fazem uma pausa no trabalho: ambas usam crachás, embora eu não consiga ler o que está escrito neles. Tinham um assunto em andamento, do qual tomo conhecimento assim que ocupam seus lugares e, pela proximidade das mesas, se torna impossível não ouvi-las.

"Sabe quem está apaixonado?", diz uma delas. "O Luan!"

Nem imagino quem Luan seja, mas a interlocutora parece surpresa com a informação - e de tal forma reage à notícia que eu acabo ficando interessado também. Aparentemente, Luan encontrou a moça pela qual apaixonou-se ao acaso, em alguma festa íntima ou comemoração entre colegas. Não entendo bem os motivos, mas há algo que impede Luan de assumir o relacionamento: a moça que conta a história (e que parece ter ouvido a confissão do próprio Luan em determinado ponto) diz que ambos desejam estar juntos, mas não sentem-se capazes de fazê-lo e tampouco conseguem se distanciar um do outro. "É meio uma história inacabada, como tu e o Lucas", arremata.

A outra moça reage de forma neutra à comparação. Pelo jeito, a história complicada entre ela e Lucas não é segredo entre as duas amigas. "Às vezes, tenho vontade de ligar para ele e marcar alguma coisa, só para acabar tudo de uma vez", confessa a moça que tem uma história inacabada com Lucas. Não é uma moça solitária, porém: logo começa a falar de sua história com outro rapaz, chamado Erick, a quem não consegue dedicar tanto carinho e consideração quanto gostaria justamente porque ainda tem Lucas no pensamento.

Faço um gesto à moça que serve o café. Ocupada com outros clientes, ela infelizmente não me vê. É pena: tenho sede. Chego a cogitar erguer-me e ir até o balcão em busca de água.

Não levanto, porém. Fico sentado. Escutando as duas moças que falam, sentadas em um ângulo que me permite ouvi-las, mas que dificulta e transforma em espalhatosa qualquer tentativa de enxergá-las.

A moça que falava de Luan agora apenas escuta: quem fala é a moça que tem uma história mal resolvida com Lucas. Comenta vivamente seu relacionamento com Erick - um rapaz de quem ela aparentemente gosta bastante, mas que sofre de insegurança e seguidamente deixa-se levar por esse sentimento, cometendo gestos de insensibilidade e grosseria. Conta um incidente no aeroporto: o rapaz pediu que ela comprasse uma água tônica, ela equivocou-se e comprou um outro tipo de bebida, o que deixou Erick bastante irritado. "Me encheu de osso de cima a baixo", enfatiza, enquanto sua amiga solta exclamações de surpresa e indignação. Briga que os manteve em silêncio até depois do embarque, logo antes da decolagem. O clima ruim entre ambos, conta a moça, encerrou-se enquanto o avião movia-se na pista e Erick, de surpresa, pôs sua mão sobre a dela. "Pega na minha mão? Eu tô com medo", teria dito o rapaz.

Chega a água, assim mesmo de surpresa. Agradeço, sirvo o copo e tomo um longo gole, cheio de gratidão. Processo rápido, mas longo o suficiente para me distrair da conversa na mesa ao lado - de tal forma que a perda acaba sendo definitiva. Já não falam sobre Erick nem sobre Lucas e muito menos sobre Luan: estão ambas de pé, rumando ao caixa, preparadas para ir embora.

Não há um final para essa história: simplesmente fiquei sentado ali, refletindo um pouco sobre esse estranho e descosturado diálogo enquanto os minutos passavam sem muita pressa por mim. Logo a vida me puxou de volta e ficou para trás o café, a conversa entre as amigas, os homens que a motivaram e todo o resto. Pois assim são todas as conversas ouvidas ao acaso nas esquinas da vida: referem-se a tudo, sem que tratem exatamente de coisa alguma. E surgem do nada, como o amor, podendo sumir igualmente de surpresa. Há que se ter os ouvidos abertos, portanto. E tomar notas sempre que possível.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Notas de rodapé: Porto Alegre, dezembro e suas ausências

Quando o ano termina, Porto Alegre mergulha em uma quietude que é toda sua. Há, como bem sabemos, os que partem e os que ficam. Alguns rumam ao litoral ou além, buscando ambientes fora de sua rotina, lugares relaxantes ou extraordinários onde possam vivenciar o Natal e Ano-Novo de forma mais prazerosa para si. A mim não cabe qualquer julgamento a esse respeito e nem teria o menor interesse em fazê-lo, caso me coubesse. Mas estou certamente inserido em outro grupo, o daqueles que permanecem na metrópole quando os demais se vão - pessoas e famílias que não têm para onde ir, que ainda estão presas a compromissos profissionais ou familiares, ou que talvez apenas julguem que os eventuais benefícios de um deslocamento não valem o esforço.

Estou entre os que ficam e, sendo o tipo de pessoa que sou, me é natural observar os espaços vazios que surgem no meio do cinza. São numerosas e interessantes as ausências que saltam aos olhos em uma cidade que espera o ano acabar. Estão nos assentos livres nos ônibus, nas lojas que fecham mais cedo, no sinal vermelho sem carros diante de si. Há uma ausência de pessoas, é certo, mas também uma ausência de objetivos: ninguém espera muito mais do ano senão que ele acabe, de modo que nos limitamos a administrar coletivamente o fluxo das horas rumo ao giro do calendário. São sobreviventes, todos os que testemunham uma virada de ano; mas os que aguardam por ela nas ruas semidesertas de uma metrópole sobrevivem a algo além.

Não há exagero em dizer que existe uma camaradagem surda entre os moradores da Porto Alegre de fins de dezembro. De fato, olhamos o outro que passa por nós na rua como um companheiro de causa, um resistente, alguém como nós. Estamos unidos na permanência; mesmo distantes, somos mais próximos. E essa certeza difícil de explicar nos aproxima da própria cidade, como se nosso permanecer fosse uma prova não apenas de lealdade, mas de um laço de parentesco, uma irmandade talvez. Nossa conveniência se torna prova de convicção: mentimos uns aos outros que não estaríamos em outro lugar mesmo que pudéssemos. Amamos Porto Alegre de verdade, é o que dizemos uns aos outros nas ruas da grande cidade esvaziada. Somos fiéis. É uma ilusão reconfortante - e a cultivamos com tanto carinho que ela chega a ganhar um convincente invólucro de verdade.

Imagino que as cidades menores recebam um número considerável de pessoas nesses dias de encerramento. São os filhos que foram para longe, voltando ao aconchego da terra onde nasceram, mesmo que às vezes nem seja tão aconchegante assim. As cidades turísticas, que puxam para si os desgarrados e os fugitivos, também incham durante as festas de fim de ano. Às metrópoles que não se prestam ao turismo, com Porto Alegre, resta a temporária calmaria e a presença reconfortante dos que não partiram. É mais democrática, a Porto Alegre de fim de ano: ressaltam-se os filhos humildes, os bonés e bermudas, os chinelos de dedo. Fica mais simples, espontânea. Mais bonita, inclusive.

Ainda não é tempo, é claro. As pessoas ainda compram presentes de Natal: imagino que muitas irão à praia no fim de semana, mas ainda devemos ter ruas farfalhando de vida até a terça-feira pelo menos. Depois sim, a cidade será toda nossa. Estarei lá, nas esquinas vazias de gente, tomando notas.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Breve relato de um sonho com uma praça

Eu era um estudante. É uma das questões centrais mais recorrentes nos meus sonhos: estar no colégio ou na faculdade, no meio de algum curso ou retornando aos estudos, dentro de sala de aula ou me dirigindo para lá. Nunca entendi bem o que isso tem de tão marcante, de tão simbólico para mim ao ponto de eu sempre retornar a esse ambiente. De qualquer modo, era um estudante que tinha saído da escola para fazer qualquer coisa que não lembro o que fosse - eu carregava uma sacola de plástico, de modo que imagino agora, desperto, que eu tivesse feito compras em algum mercado ou qualquer coisa nessa linha. Tendo feito seja lá o que eu tinha me proposto a fazer fora da escola, estava na hora de retornar para lá - e eis o conflito na minha situação, já que eu não fazia ideia de qual fosse o caminho de volta.

É até um pouco difícil explicar a situação agora que estou acordado, ainda que no sonho ela fizesse sentido suficiente para que eu sequer a questionasse. Eu tinha certeza de estar perto da minha escola, mas não sabia onde estava - ou, melhor dizendo, tinha esquecido tudo sobre aquele lugar, em uma espécie de amnésia espacial. Para mim, era como se nunca tivesse estado lá - mesmo assim, eu sabia que já tinha andado muitas vezes por aquelas ruas, visto aqueles lugares, as pessoas. Apenas tinha esquecido tudo. E eu tinha plena consciência do meu esquecimento, ainda que não estivesse nervoso, apenas um pouco apreensivo pelo risco de não me deixarem entrar se eu me atrasasse demais. Era um estrangeiro em uma área que, ainda que desconhecida, me era bastante familiar.

Fui andando. As ruas eram de paralelepípedos; não havia prédios, apenas casas de alvenaria, humildes mas não pobres, com pátios pequenos de grama bem cortada. As calçadas eram feitas de grandes pedras de basalto, e estavam cobertas de folhas. Era outono? Não podia ser: as árvores estavam cheias de vida, transbordando de frutas. Pelo caminho, passo por uma praça circular, que ficava no meio do cruzamento de duas ruas um pouco mais largas. Nesta praça havia uma amoreira enorme, com frutas muito vistosas, maiores do que qualquer porção de amoras que eu tivesse visto antes. Debaixo dela, grupos de crianças brincavam, correndo, gritando, rindo. Comendo amoras que caíam no chão. Era quase uma chuva, que salpicava o chão de grama rala com pontos roxo-avermelhados. Era impossível atravessar a praça sem passar debaixo da árvore - e era impossível seguir procurando meu caminho se não passasse por ali. Fui caminhando o mais rápido que pude, tentando não ser atingido pelas amoras enormes que caíam - não queria manchar a roupa e assistir sujo as próximas aulas. Não me ocorreu provar nenhuma das frutas - o que agora, desperto, eu lamento um pouco.

Cruzei a praça e segui caminhando, metade guiado pelo instinto, metade a esmo. Sentia que não estava longe - mas, ao mesmo tempo, sentia que minha margem de tempo estava acabando, então caminhava um pouco mais rápido, mais atento aos detalhes. De repente, enxergo uma banca de revistas na esquina à frente e imediatamente fico tranquilo. Eu lembrava bem daquela banca: era só dobrar à esquerda naquela esquina, caminhar uns 50 metros no máximo e estaria na frente do prédio da escola. Tinha achado meu caminho.

Caminhei os último metros intencionalmente devagar, encenando uma esquisita peça de preguiça.

Meus colegas estão na frente do prédio, conversando. Junto-me a eles em silêncio, sem comentários, como se o meu retorno fosse casual - como se estar ali, entre colegas que eu sabia meus mas não lembrava de ter visto antes, fosse a coisa mais natural do mundo. Um deles me dirige a palavra, e aponta para uma terceira pessoa quando diz:

- Vocês combinam isso? Sempre chegam na mesma hora, mas por caminhos diferentes.

Respondo, fingindo o ar mais despreocupado do mundo, concentrado em meu papel:

- Isso é saber fazer as coisas, cara.

E entramos no prédio enquanto eu volto para a consciência, o mundo material começando a se insinuar por entre as pálpebras.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Sobre o dia em que descobri que era pai

Ligação telefônica de um número restrito. A cobrar.

Na primeira vez, desligo sem atender.

Insistem. Desta vez resolvo atender, embora já imaginando que fosse problema.

"Pai?", pergunta uma voz masculina, hesitante.

Descubro neste instante, via ligação telefônica, algo que não sabia até então: sou pai. E devo ser pai há tempos, uma vez que a voz é de um adolescente entrando na idade adulta, no mínimo. Um filho bem criado, eu diria.

A descoberta me deixa mau-humorado. Que diabos, se era para eu ser pai, que ao menos tivesse curtido as alegrias de ver meu filho crescer. Que tivesse as gratificações de conviver com uma criança, o prazer de vê-lo ir bem na escola, as brincadeiras, o afeto, o orgulho. Um filho que aparecia assim, me informando de forma súbita meu caráter de pai, ligando a cobrar sem me dar sequer a dignidade de saber qual o número de seu telefone, não me provocava nenhuma satisfação.

Pelo contrário: fiquei até um pouco ofendido.

"Que foi?", respondo, interpretando uma voz irritada tão bem quanto podia.

"PAI ME AJUDA PAI PELO AMOR DE DEUS ELES ME PEGARAM PAI ME AJUDA ME AJUDA", choraminga a voz.

Que diabos. Ainda me liga para me passar problemas. Realmente, criei muito mal essa criança. Só pode ser.

"Por quê? Que que tu aprontaste agora?", pergunto, controlando a custo a falsa raiva em minha voz.

"PAI ME ESCUTA ELES ME SEQUESTRARAM PAI PAI POR FAVOR PAI ME AJUDA" - o lamento é choroso, insistente e estridente.

Detesto gritaria ao telefone. Detesto.

De-tes-to.

"Ah, AGORA tu quer minha ajuda?", respondo com firmeza. "Pois quer saber? Te vira, moleque. Eu é que não vou fazer nada para te ajudar. Tu nunca me deu ouvidos, vivia se metendo com essa gente e agora quer que EU te ajude? Mas bem capaz. Dá um jeito na tua vida e depois vem falar comigo. Eu fora!"

Desligo o telefone sem nenhum remorso, o outro lado da linha tomado de silêncio.

Descubro neste instante, via ligação telefônica, algo além da paternidade. Percebo que posso ser um pai bastante severo, se for o caso.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Anotações sobre a chuva em Porto Alegre

[caption id="attachment_604" align="alignnone" width="900"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Atravessar a cidade em meio à chuva intensa é ao mesmo tempo um exercício de abandono e de compromisso. Há que se amar a cidade para cruzá-la de ponta a ponta nessas circunstâncias - mesmo porque, mais do que mero desestímulo, a barreira que impede o avanço é concreta, ainda que nem sempre tangível. É a água cinza e de mau cheiro que invade a minha rua, ameaçando me deixar ilhado, e é a água cinza e de mau cheiro que transborda do arroio e invade as casas dos humildes, certamente bem mais autorizados a reclamações do que eu próprio. Água que inunda as residências e também as avenidas pelas quais eu geralmente avanço rumo ao centro da cidade - trilha tornada impossível e que me força, depois de escapar da barreira da rua transbordante, a novos tipos de improviso.

Há algo de incomum no modo como os ônibus despejam as pessoas para fora em dias como esse. Não é exatamente como se elas desembarcassem nos lugares desejados, como se tivessem completado o trajeto normal de todos os dias: é muito mais como se desistissem, abandonassem o trajeto pela metade, cansadas da lenta tortura de um ônibus que avança devagar em meio à enxurrada. Na rua os pés molham rápido e a caminhada é difícil, mas há um ganho considerável de autonomia. Sei que é assim que pensam porque assim pensei eu, descendo antes do centro e avançando pela Redenção rumo ao Colégio Militar. A pé, quem dá o ritmo somos nós. Pelo menos isso.

A carona é generosa e bem-vinda, mas na prática resulta em pouco mais do que companhia para enfrentar o trajeto impossível. A cidade entra em suspenso: muitos tentam, mas ninguém vai e ninguém volta. Não deixa de existir um toque de anárquica poesia nisso tudo: o relógio humano é humilhado, os compromissos são ridicularizados, a hora de chegada vira um conceito impossível. A chuva impõe seu tempo - e é um tempo bastante lento, ainda que vigoroso. Toma para si as ruas, faz do asfalto seu remanso. Aos homens trancados em suas máquinas inúteis ou ilhados nas calçadas e residências, resta o estoicismo de ocasião ou uma renovada, ainda que eventualmente oportunista, fé em Deus. Do poder dos homens, como de hábito, não virá auxílio algum.

Pelo caminho ficam os guarda-chuvas, pontuando o avançar das almas pela chuva que não alivia. Vi grande quantidade deles: alguns completamente retorcidos, outros parecendo quase usáveis, só o olhar cuidadoso podendo revelar os estragos que justificam o abandono. Nas lixeiras, quase nenhum: eles ficam mesmo é nos canteiros, na beira das calçadas, junto às bocas de lobo. São cadáveres abandonados exatamente onde tombaram, sem muita cerimônia.

O meu guarda-chuva foi um desertor, talvez possamos dizer. Na verdade, quem o abandonou fui eu: paramos o carro para abastecer, entrei rapidamente na loja de conveniência para comprar água e comida e o esqueci dependurado junto aos bombons, ao lado da caixa registradora. Uma necessidade apagou a outra, creio eu: tão preocupado estava em preencher o buraco no estômago que ignorei a chuva que, mesmo em breve trégua, obviamente voltaria a cair. Um esquecimento quase admirável pelo absurdo.

Era um bom guarda-chuva. Espero que seja lá quem o tomou para si esteja fazendo bom proveito.

Comprei um novo guarda-chuva debaixo do viaduto, quase na Salgado Filho. Preto, hastes duplas, sem luxos mas sem aparentes carências. Doze reais. Não sei dizer se o valor é bom ou não. "Esse é um pouquinho mais caro, mas é mais resistente, vale a pena", acentuou o senhor que vendia os guarda-chuvas, abrindo um deles para eu ver que estava funcionando e já deixando-o aberto para que eu pudesse usá-lo imediatamente. Estava sorridente e falante, o vendedor, de certo contente com os consideráveis lucros do dia. "Vai chover amanhã também", advertiu-me ele, sem tentar esconder o sorriso otimista.

Vai sim, concordei com ele. Vai chover e vai ventar e trovejar; a água vai acumular nas ruas, invadir as casas dos humildes, atrapalhar a vida dos que trabalham e estudam. Guarda-chuvas vão ficar deitados na calçada, outros guarda-chuvas serão vendidos nos viadutos e nas esquinas. Vai ser uma chuvarada daquelas, sem dúvida. E a vida vai continuar. Porque essa é a natureza do homem, mesmo na cidade tornada impossível pela chuva: ele vai em frente. Molha os pés na água, abre o guarda-chuva e vai em frente, porque é para frente que todas as coisas devem ir. E que culpa tem a chuva, no fim das contas?

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Adeus à rasura

[caption id="attachment_601" align="alignleft" width="211"]Rascunho de "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector. Foto: reprodução Rascunho de "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector. Foto: reprodução[/caption]

Nunca tinha parado para pensar em como o fim dos manuscritos e das rasuras é, em certo sentido, trágico. Escreve algo no papel, muda de ideia, risca e escreve outra coisa: é uma trilha de pensamento que se desenha. Uma curva que o além-palavra faz em direção à palavra, talvez possamos dizer, já que esse trajeto nunca é uma linha reta. Fica ali a marca, o testemunho da eterna imprecisão da palavra em relatar o singular dentro de nós: é um registro histórico, digamos assim. Um registro de nossa história além da história, eu corrigiria - do mesmo modo que fatos contam de nossa caminhada pelo mágico absurdo do mundo, rasuras em um manuscrito falam da mágica de dentro, do esforço de nosso ser-além-do-que-somos em registrar, de algum modo eternamente precário, um pouco do seu próprio existir.

Hoje, a gente escreve quase tudo com teclados, de todos os tipos: a curva ainda existe, mas não deixa traço algum, desvanece rapidamente em algum lugar entre o homem e a tela. Fica só o texto final, belo, perfeito - e, nesse ponto específico, falso. Não traz mais em si as cicatrizes de seu surgimento. Em certo sentido, é puro externo, por mais interno que traga em si.

Há algo humano que se perde nesta ausência.

(não que os livros impressos tragam em si as rasuras, o esforço de reescritura permanente rumo à curva mais suave entre o sentir e o expressar: bem sabemos que quase nenhum livro sai da gráfica com anotações do tipo. isso perdeu-se desde que os livros pararam de ser exemplares únicos, lá longe nas areias do tempo. mas o papel permite que nós, enquanto leitores, preenchamos ativamente essa ausência, de lápis em punho - sublinhando, fazendo observações, concordando e discordando da ideia, do cenário, do autor. acrescentando nossas próprias rasuras, dividindo com o autor a tarefa criativa. com a palavra na tela, e somente nela, isso também se perderá.)

Concluo que a rasura ainda nos fará muita falta.

 

(inspirado em um comentário de Phillipe Willemart em "Bastidores da Criação Literária" - um bom e interessante livro, diga-se de passagem)

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Song 1

For ten thousand streets of treachery
My arrogance did tread
With the scorn of unfazed reason
No words ever left unsaid

What I knew was all to know
And what I saw was all to see
Biting hard and chewing faster
The green fruits of my frail tree

Raised my towers to the heavens
Had it all and wanted more
Wealth and fame and accolades
With no need to ask what for

Dead all deities of my pantheon
I could reign bold and supreme
Subjected to my strong yoke
All things flowing to my stream

But the clock I pledged allegiance
Soon would move its hands too fast
And the more in my possession
Like I could never have had less

The mouth fed with countless treasures
Gaping wide asking for more
Lost the shelter of my stronghold
My ships sunked far from the shore

On my lips my words of certainty
Would fall dead before its sound
And too loud I yelled my anger
While all towers crumbled down

And I saw with tearfilled eyes
My vain glory swept away
All my streets gone to a dead end
All my colors dimmed to gray

I had become death
And in the darkest core of my diseased soul
Ineffable found good soil
For a new tree

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

momento

No momento, sou a soma de todas as minhas possibilidades.
Logo, nada sou e quase tudo posso ser.

Terei sido outra coisa?

Seremos nós algo além do que enxergam em nós?
Neste caso, e se o que enxergam não é o que somos?

Onde existimos?

Talvez sejamos não mais do que outros percebem em nós
Quando nada pretendemos ser.

Defesa Pública da Alegria: o que mudou

[caption id="attachment_593" align="alignleft" width="300"]Foto: Ramiro Furquim/Sul21 Foto: Ramiro Furquim/Sul21[/caption]

Eu estava cansado. Tinha trabalhado bastante, e ainda cabia a mim a nada emocionante tarefa de registrar o último debate dos candidatos à prefeitura de Porto Alegre. Em casa, ouvia os intermináveis discursos sobre coisa alguma, o teatro que tenta substituir o conteúdo político pela repetição eterna de cacoetes e maneirismos. Havia estado no Defesa Pública da Alegria cerca de duas horas antes: um ambiente muito mais interessante, muito mais vivo e bem mais político, no sentido de política que hoje tantos parecem ter esquecido. Confesso, no entanto, que naquele momento não desejava retornar; estava cansado. Queria apenas deitar a cabeça no travesseiro e dormir.

É claro que não pude dormir. Não recordo mais quem mandou a primeira mensagem de celular: perguntava se eu sabia do que tinha acabado de acontecer no Largo Glênio Peres. Em instantes, comecei a receber telefonemas e mensagens nas redes sociais: manifestantes estavam feridos, outros presos, o ridículo Tatu-Bola de plástico estava no chão. No chão, como brinquei algumas vezes durante o curto período em que lá estive: um boneco sorridente de deboche, símbolo de uma cidade renunciante de si mesma, derrubado em meio a um absurdo de gritos e golpes de cassetete. Era para ser uma celebração animada, ainda que evidentemente desafiadora, da Porto Alegre que se recusava a deixar de ser; virou uma batalha campal.

Foi a cobertura mais emergencial do Sul21 até então. Fiquei como central de informações, fazendo e recebendo telefonemas, organizando relatos, coordenando a equipe que estava na rua. Só tive a chance de tentar inutilmente dormir quando eram quase seis horas da manhã. A cobertura do acontecimento, de certa forma, continua até hoje. Simplesmente porque as coisas seguem acontecendo, talvez até mais do que naquele dia, certamente mais do que antes dele.

Tudo já existia antes do Defesa Pública da Alegria. Mas, ao mesmo tempo, tudo nasceu naquela noite.

Eram vários grupos. Diferentes princípios, ideologias e ideais, unidos vagamente por um ânimo comum: a insatisfação com o mundo de agora, a expectativa de algo diferente. Seguem sendo vários grupos - seria excessivamente otimista e romântico afirmar que, desde o Tatu-Bola, tornaram-se um só. Mas algo mudou. Agora, são conscientes uns dos outros. Não são irmãos apenas na oposição a um poder absurdo governado por interesses que não são os seus e não são os de quase ninguém: são também vítimas de uma repressão comum. Estão unidos no ultraje, tiveram todos o mesmo batismo de fogo. Mesmo diferentes em muito ou em quase tudo, agora se conhecem. E serão leais uns aos outros. Estarão unidos sempre que necessário, sempre que o poder constituído surgir tentando esmagá-los ou consumir sua vontade. Não temem o confronto: já sobreviveram a ele uma vez. Ainda não sabem o que são, mas sabem quem é junto com eles.

A truculência policial deixou as periferias e veio até o centro da cidade. Arrogante de si própria, bateu por hábito, por ser não o modo mais fácil de lidar com uma situação, muito menos o mais eficiente, mas por ser o mais prazeroso. Deliciou-se e delicia-se com o uso da persuasão brutal. Mas agora não são os filhos à margem que voltam espancados para a casa dos pais: são os filhos da classe média, os estudantes, os jovens profissionais de ensino, os artistas. Os que antes liam as manchetes, enxergavam além delas talvez, mas não as sentiam. Eram testemunhas, mas nunca ou quase nunca tinham sido atores. São os filhos de quem compra jornal, de quem assiste TV ao meio-dia, de quem ouve rádio no caminho para o trabalho. Agora, a proteção do patrimônio público não funciona mais como desculpa no que se refere a um número crescente de pessoas. O que antes era certeza cristalina começa a rachar, a desfazer-se em grãos de areia ao contato com a dúvida.

Talvez seja ousadia, mas então ouso dizer que o Defesa Pública da Alegria foi, em outubro, o começo de junho. Que os protestos contra o aumento das passagens de ônibus em Porto Alegre seriam inviáveis sem o dia 4 de outubro de 2012. E sem esses protestos em Porto Alegre, como sabemos, talvez o Brasil inteiro protestando fosse igualmente inviável. Nada mudou, dizem os que enxergam no fato nada além do fato em si. Todos foram à rua e o Congresso segue o mesmo, as corporações estão intactas, ninguém mais lembra do que queria, dos gritos e da mobilização. Apanharam em nome de um boneco de plástico e a Copa continua aí, o governo segue o mesmo, derrubaram árvores, invadiram lugares, prenderam pessoas. Nada mudou, insistem. E, admito, não deixam de ter razão.

Nada mudou. Mas tudo está diferente. Foi um ano todo diferente, em Porto Alegre. É uma realidade em gestação, uma Porto Alegre que, no momento em que mais brutalmente foi negada, curiosamente passou a ser cada vez mais possível. Cada mais mais palpável. Próxima. Real.

Antes, as ruas eram cinzas de cansaço. De desesperança. E cinza continuam, não podemos negar essa verdade. Mas tem mais cor nas esquinas, mais brilho nos olhos, mais gente nas ruas. Eu observo e posso afirmar: é uma cidade que acorda. Que volta a gostar de si mesma. Aos poucos. Uma cidade que eu nem imagino o que vai acabar sendo, se é que vai acabar sendo alguma coisa, mas que quer ser algo diferente e pelo menos um pouco melhor do que tem sido. E que não sabe bem o caminho, mas vai andando, porque já cansou de ficar parada no mesmo lugar.

Nada mudou. Mas tudo está em mudança. E a mudança não se importa com a agenda de ninguém, com a pressa ou atraso de quem quer que seja: ela muda, simplesmente. Eu, por exemplo: não mudei em quase nada, mas ao mesmo tempo mudei em quase tudo. Hoje, sou outra pessoa - simplesmente porque agora quero ser outra pessoa. Antes, eu talvez não quisesse. E é toda essa a beleza e a poesia da mudança: antes de ser fato, ela precisa ser intenção. É esse o grande legado daquela noite absurda onde a BM protegeu de forma truculenta um boneco de plástico da Coca-Cola: as coisas, agora, querem mudar. E querendo mudar, elas mudam. Um pouco de cada vez, devagar talvez, mas sempre.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O que somos

Dizem um nome. Uma ocupação. Um local de trabalho. Um endereço residencial, uma caixa postal, instituições de ensino, telefone celular. Um e-mail válido. Uma data de nascimento. Uma posição política. Um estado civil. Coisas que foram adquiridas durante a marcha dos anos. Amigos em comum. Lugares onde se esteve. Músicas, livros, filmes, espetáculos de teatro e dança. Um time de futebol. Um restaurante ou casa noturna. Longas sequências de situações inusitadas e eventos extraordinários. Opiniões. Certezas.

Ouço tudo com paciência, mas mal consigo disfarçar os bocejos.

O que são os seres humanos, além da soma de tudo aquilo que ninguém (ou quase ninguém) faz ideia que sejam?

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Breve relato sobre a segunda-feira chuvosa e as coisas importantes

[caption id="attachment_581" align="alignleft" width="300"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

O centro de Porto Alegre tem uma qualidade toda particular nas manhãs chuvosas de segunda-feira. A cidade se encolhe para proteger-se das gotas finas: andam as pessoas rente às paredes, acumulam-se debaixo das marquises, enquanto as ruas de pedestres se esvaziam. Surgem os casacos com capuz e as pessoas que não sabem andar carregando guarda-chuvas. É um mau-humor suave, o da região central de Porto Alegre tomada pela chuva - o sentimento de quem, já enxergando tão menos do céu quanto gostaria, lamenta não ter contato, se não com a luminosidade, ao menos com o calor do Sol. Ainda mais em uma manhã de segunda-feira.

Há um toque de humano em tudo que vejo. Isso é inegável.

Para mim, esse tipo de observação é fácil: mesmo carregando guarda-chuva, como hoje, raramente o uso.

Depois de tomar café em uma pequena lancheria, resolvi aguardar debaixo de uma das marquises da Esquina Democrática. Um pouco à frente, um homem tentava distribuir panfletos do que imagino que fosse um centro médico ou algo do tipo. Tarefa complicada em uma segunda-feira chuvosa: mesmo o que não têm pressa estão apressados, e ninguém parece dispor de tempo para ler panfletos, por mais coloridos que sejam. Não desistia, porém. A cada transeunte que passava, estendia um papelzinho colorido, substituindo eventuais palavras por um sorriso que não recebia atenção de quase ninguém.

Uma das pessoas hesitou. Pareceu ver no pedaço de papel algo interessante para si; porém, não decidia-se em pegá-lo, por mais que a ela sorrisse o homem com os panfletos. Sentiu ele então que precisava reforçar a abordagem, e disse brevemente, enquanto a voz tentava sorrir:

"Pode pegar, moça, é bem importante".

Rompida a barreira de silêncio entre ambos, e persuadida pela eficaz argumentação, tomou a senhora o panfleto para si. Chegou a murmurar um obrigado antes de partir.

O sucesso do novo método não passou despercebido ao homem. Tomado de renovada confiança, acrescentou o número a seu esforço de panfletagem, e passou a realçar incansavelmente a importância do material que ofertava. "É importante! Pode pegar, senhor, que é bem importante! Leva, amigo, é importante!". E a pilha de panfletos foi diminuindo a olhos vistos, as pessoas que passavam convencidas de que tratava-se de algo importante, algo que merecia alguns instantes de sua atenção, algo que merecia sair das mãos do homem que panfletava, ir em direção aos bolsos e mochilas, às bolsas e pastas de trabalho, uma trilha colorida que nascia naquela esquina e de lá se espalhava pelos mais diferentes caminhos da cidade tingida de segunda-feira, preguiçosa de chuva.

Se era mesmo importante eu não sei: me distraí na hora de ir embora e acabei não pegando o papel. Mas não deixou de ser agradável perceber que, mesmo nas manhãs mais chuvosas das segundas-feiras menos animadoras, as pessoas ainda sabem que existem coisas importantes que exigem nossa atenção - mesmo que as confundam com um pequeno pedaço de papel vendendo seguros ou tratamento dentário. Imagino que tenha sido importante ao menos para o homem que distribuía panfletos, de qualquer modo.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

pontuação

nada quero
pontuar

antes busco na vida o texto fluido

mas que, tenha,
muitas, virgulas
pelo caminho,
assim, mesmo, espalhadas
de, qualquer, jeito sem, sentido
para, encher o texto, de lindas, pausas
mágicas,
imprevisíveis,

até a hora de ir
dormir.

sábado, 14 de setembro de 2013

Treze de setembro: recomeço

- Está tudo correto para o senhor? Alguma dúvida ou retificação? - me pergunta educadamente a moça com os papéis da rescisão de contrato, em um tom de voz bastante gentil, ainda que enfático. É alguém que certamente faz isso várias vezes por dia - afinal, jornalistas entram e saem de contratos de trabalho o tempo todo, ainda mais dentro da lógica de precário equilíbrio que se tornou quase sinônimo de trabalhar em uma redação no Brasil.

A moça em questão trabalha no Sindicato dos Jornalistas e está à minha direita. À esquerda, senta-se outra moça, da empresa de recursos humanos, que há pouco havia me explicado tudo - esse valor é referente a isso, esse desconto é devido a aquilo, esse é o crédito de férias, aqui o desconto da previdência social. Ouço tudo, mas não escuto nada: são números apenas, dígitos que se empilham em uma lógica que não me é de todo estranha, mas que me parece distante demais do que realmente motiva minha presença naquele local. Irrelevâncias, em suma.

Nenhuma dúvida, respondo eu. Nada a retificar.

Existe uma sensação de reencontro em cada partir. Limpar as gavetas é um pouco como remover o que está sobrando em nós mesmos - os papéis acumulados que jamais serão lidos novamente, as canetas que levarei para casa, os cartões com nome endereço telefone e-mail que não serão entregues a ninguém. O carregador extra de celular, que sempre ficava na redação para o caso da bateria acabar sem aviso. A pasta com nossos arquivos no computador. A pasta está vazia. A escova de dentes. O crachá. Pedaços do que a gente foi e de certo modo continua sendo, mesmo já não sendo mais. Reencontro com o que somos e que independe de onde estamos, do horário de chegar e de ir embora, de cargo ou posição. Despidos de um compromisso contratual que de certo modo nos define, voltamos a ser nada mais que a simples imagem de nós mesmos.

Recolho tudo que eu era e coloco algumas coisas dentro da mochila. O resto, no lixo.

São cinco vias. Assino uma a uma, sem pressa, colocando data e dia da semana. Sexta-feira, treze de setembro de dois mil e treze. Foi numa quinta-feira, doze de agosto de dois mil e dez, três dias antes de fazer trinta anos de idade, que coloquei meus pés na redação pela primeira vez. Desembarquei em Porto Alegre pouco depois das dez da manhã, pouco depois da uma da tarde já estava sentando na frente do computador, uma pauta vaga para ser cumprida, rostos simpáticos mas em sua maioria desconhecidos olhando para mim. E foi numa segunda-feira, doze de agosto de dois mil e treze, que comuniquei minha chefe que havia decidido pedir desligamento. Três anos exatos. Três anos.

Não há despedida; há um almoço, há café na redação, há chopp no fim de expediente. Seguirão havendo almoços, cafés, chopp, contato, amizade, convivência. Uma gangue não se separa assim tão fácil, disto eu sei muito bem. Tem muitas histórias lá fora: seguiremos, eu e eles, indo atrás delas. Em trilhas que podem parecer separadas agora, mas seguem mais unidas do que nunca. Tanta coisa precisando acontecer. Tanta coisa para semear.

É tempo de semeadura.

Do lado de fora, os papéis guardados na mochila, a cidade prometendo vento em meio ao sol e ao céu azul, detenho-me na esquina da Rua da Praia com a General Câmara. Observo. É um pouco como se fosse a primeira vez.

O natural seria subir a ladeira. Com os olhos, é como se subisse. Passo em frente ao Tuim, já cheio de gente no meio da tarde, pessoas que tomam chopp enquanto observam a sexta-feira ir embora. Contorno a pequena trincheira, atravesso a Andrade Neves, sigo subindo. Passo em frente ao cartório, à Lancheria Ladeira, dou uma olhada breve para o interior do Beco dos Livros, parte de mim querendo entrar e perder algumas horas procurando livros ao acaso. Detenho-me breve instante ao lado do Sindbancários, tentando lembrar qual o filme em cartaz lá dentro. E então cheguei. Quase entro no Edifício Montreal, corredor rumo ao elevador, quarto andar. Meu andar por quase três anos. Anos que valeram por décadas de vivência, da maior vivência e do melhor aprendizado que a vida pode oferecer.

Olho a ladeira, mas não subo. Volto a andar, em direção à Praça da Alfândega. No momento, é esse o meu lugar: junto aos velhos e vagabundos, aos casais que namoram em um intervalo do expediente, aos senhores que jogam damas, aos homens que vieram do interior e aguardam por entrevistas de emprego. Tenho tempo livre: em um banco da praça, ficarei observando as pessoas que passam, tomando notas em meu caderno enquanto o tempo vai embora lentamente. Cada um tem seu retorno, seu reencontro consigo mesmo: este é o meu.

Feliz de me ter de volta, a praça me oferece um de seus assentos mais confortáveis, à sombra.

Treze de setembro de dois mil e treze.
Nada acabou.
Tudo recomeça.

sábado, 31 de agosto de 2013

Sobre o prazer de descer na parada errada do ônibus

[caption id="attachment_572" align="alignnone" width="1024"]Foto: Mariana Gama Foto: Mariana Gama[/caption]

Ônibus em direção ao centro de Porto Alegre. Não muito cheio: era fim de tarde, quase noite, horário em que as pessoas e os coletivos mais voltam do que vão. Fim de uma tarde maravilhosa de sol - um sol daqueles que faz a gente esquecer a chuva, esquecer tudo que é cinza e frio, esquecer de qualquer coisa que não seja o brilho da luz e o azul do céu.

Embarco, passo a roleta, encontro um assento vazio. À minha frente, uma família - a mãe e o filho, portador de Síndrome de Down. Conversam algo que, por estar com fones de ouvido, eu não consigo ouvir a princípio.

Desligo a música e, sem remover os fones, passo a escutar o que dizem.

É um diálogo simples e que desenha-se rapidamente. O menino está ansioso para descer; a mãe, com um sorriso transbordante de amorosa paciência, diz que ainda faltam três ou quatro paradas. Imagino que, seja lá onde estivessem indo ou o que estivesse esperando por eles nesse local, a viagem fosse uma experiência inédita para o garoto. Falava com voz aguda e excitada, perguntando se faltava muito, a mão pousando no ombro da mãe - que, encarnação da tranquilidade, apenas pedia que ele esperasse um pouco mais.

É um menino obediente, ou ao menos tenta sê-lo. Silencia, aponta aos risos para um cão de rua que passa rapidamente pela janela, ajeita o descanso de braço primeiro para cima, depois para baixo. Mas é visível que não consegue distrair-se: não é capaz de livrar-se da vontade de chegar logo a seu destino.

De repente, o menino se levanta. Mal posso ver seus olhos, mas consigo perceber no perfil de seu rosto uma confiança renovada, de quem muito pensou e finalmente achou a solução para um grande impasse. Segura uma das barras metálicas do ônibus com uma mão, toca o ombro da mãe com a outra e diz:

- Mamãe, vamos descer!

- Mas ainda não chegamos, meu filho - responde ela, sem crispar o rosto, sem erguer ou mudar o tom da voz.

É neste momento que o menino completa, triunfante:

- Então: a gente desce agora e vai caminhando até lá!

Falou bem alto, ele. Creio que todo o ônibus ouviu. Sua mãe, no entanto, não se deixou levar pelo argumento: gentil, mas investida de sua autoridade de mãe, fez com que o menino voltasse a sentar. Faltava pouco mesmo para chegarem, de qualquer modo: mais duas paradas e desceram, de mãos dadas, o menino com um sorriso no qual cabia uma tarde inteira.

Foi uma pena que nenhum de nós, testemunhas involuntárias daquela singela cena, tenha se dirigido à carinhosa mãe e, com o máximo possível de educação, pedido que ela reconsiderasse sua decisão. Afinal, tinha razão o menino: fins de tarde como aquele, ainda banhados pelo sol da vida que sobreviveu a quase uma semana inteira de chuva e céu cinzento, certamente justificam que a gente desça duas paradas antes e vá caminhando até o destino.

sábado, 24 de agosto de 2013

Passos na chuva (II)

[caption id="attachment_442" align="alignleft" width="269"]Foto: likeyesterday / Flickr Foto: likeyesterday / Flickr[/caption]

A primeira parte da história pode ser lida aqui.

Deteve-se debaixo da marquise em uma decisão súbita, de improviso. Era estreita: precisou encostar-se de corpo inteiro na parede do prédio, as costas completamente alinhadas com o concreto para evitar que um dos ombros ficasse exposto à chuva agora fraca, mas sem dar sinais de ceder. Não que fosse uma precaução muito útil, já que estava completamente molhado há dias, mas parecia justo que ao menos naquele momento as gotas insistentes deixassem seu corpo em paz.

Chovia há tanto tempo que ele era incapaz de calcular.

Espanou os ombros com as mãos, tentando remover a água acumulada nas dobras da capa de chuva. Deu pequenos chutes no ar, como quem tenta acomodar melhor as botas plásticas nos pés. Removeu o capuz. Tossiu.

Seu lar estava distante. Não sabia mais se estava indo em direção a ele ou afastando-se: haviam sido ruas demais, esquinas todas parecidas demais, muitas poças d'água, muitas marquises. Havia andado muito, quase sem pausas: dos lugares por onde agora andava, tudo desconhecia. A única constante era o mau tempo. Sempre o mesmo céu cinzento, a mesma chuva fina e persistente. O som monótono da água caindo nos telhados, nas calçadas. Pouco vento. Nenhum relâmpago.

Onde quer que fosse, a chuva ia com ele.

Tinha saído de casa do modo como costumava fazer todas as coisas: ao sabor do momento, sem planejar nada, atendendo o chamado surdo de um impulso sempre mais forte do que ele próprio. Tinha sido uma semana de alguns gritos e muitos silêncios, de olhares que tudo observavam e julgavam, sem jamais cruzarem um com o outro. Viu na chuva uma chance de limpeza, de fugir ao silêncio acusatório daquela casa e finalmente ter a chance de ouvir os próprios pensamentos. Apenas jogou a capa de chuva sobre as roupas gastas, calçou as botas e murmurou uma despedida pobre, algo sobre estar de saída e não ter hora para voltar. Ninguém tentou detê-lo e então ele foi em direção à chuva, ajeitando o capuz sobre a cabeça, fechando o último botão logo abaixo do pescoço, escondendo as mãos dentro dos bolsos enquanto lamentava não ter pego luvas para aquecê-las.

Só mais tarde entendeu que a chuva, na verdade, queria capturá-lo.

Como voltar?, perguntava a si mesmo. Os ecos da briga terrível já haviam há muito silenciado dentro de si. Sentia que, se reencontrasse sua trilha, a volta ao lar não seria de palavras ásperas e ressentimentos, mas um reencontro suave, de silenciosos pedidos mútuos de perdão. Desejava voltar. Estava, porém, cercado pela estática da chuva; o ruído das gotas contra o asfalto era ele próprio um estranho silêncio dentro de sua alma. Não sabia onde estava. Não fazia ideia de que rumo tomar, qual a esquina correta, por quais ruas seguir. Andava a esmo, buscando uma súbita compreensão que indicasse a trilha de retorno para si mesmo.

Nada havia. Apenas o som fraco e insistente da chuva ao seu redor.

Vestiu o capuz. Olhou brevemente para a rua silenciosa diante de si: janelas fechadas, poucas luzes acesas. Uma pequena cerca protegia os limites de um terreno baldio.

Lançou-se novamente à rua. Em um abraço apertado, a chuva uniu-se a ele.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Trinta e três

Acredito que, em um momento já distante da minha trajetória, eu fui uma pessoa jovem. Não um jovem do ponto de vista metabólico, bem entendido; refiro-me mais a uma juventude de espírito, uma ingenuidade de quem tudo aprende, uma sadia ignorância diante do mundo e de todas as coisas. Houve sim um tempo (dele não recordo, mas sou capaz de jurar) em que eu nada sabia de coisa alguma, não trazia em mim nenhum temor ou incerteza, nenhum tipo de ansiedade, busca ou expectativa. Lindos dias devem ter sido aqueles, no quais a vida explicava e justificava a si mesma, momento único e interminável que eu era todo o universo e isso bastava. Encanto que se rompe tão logo é percebido, incapaz de sobreviver à mais singela consciência de si mesmo.

Lembro que um dia eu discutia com meu irmão sobre a idade que tínhamos e o ano em que cada um de nós tinha nascido. Meus pais estavam ausentes nesta ocasião; quem tomava conta de nós era um dos meus tios, que neste momento estava na cozinha fazendo uma coisa qualquer. Eu discutia com meu irmão aos gritos, como imagino que façam todas as crianças de todos os lugares, tentando convencê-lo de que eu tinha nascido naquele ano mesmo, naquele exato 1985 em que vivíamos. Era um raciocínio evidentemente absurdo, mas hoje consigo compreendê-lo até certo ponto: eu simplesmente não tinha, até aquele momento, a consciência da passagem do tempo. Para minha mente infantil, o agora era eterno, o passado era apenas um conceito vago que não tinha qualquer importância na minha existência. Encanto tênue que durou pouco mais de cinco anos e que se desfez quando meu irmão, indignado com minha insistente afirmação, chamou nosso tio da cozinha e pediu que viesse, que nos ajudasse a resolver de uma vez a questão.

Uma vez inteirado do dilema, e percebendo minha extraordinária empolgação, perguntou-me em que ano, no fim das contas, eu achava que tinha nascido. Neste mesmo ano, disse eu triunfante: afinal, eu estou vivo neste ano, então esse é o ano em que nasci. A risada de meu tio, ao ouvir a pequena e sincera bobagem que eu dizia, é inesquecível: não foi algo cruel ou debochado, mas eu diria que ela foi o som que o encanto fez ao se quebrar em mim. Tu tens cinco anos, guri, ele respondeu ainda rindo, como é que tu ia ter nascido esse ano ainda e já estar com cinco anos? Se tu tens cinco anos e se estamos em 1985, então tu nasceu em 1980, completou, acreditando sinceramente que estava me ensinando algo útil e importante. Meu irmão começou a gritar alegremente, comemorando o meu fracasso, mas lembro que meu tio repreendeu-o dizendo que ao menos eu era um guri muito novo, que ele era mais velho e por isso deveria saber melhor do que eu quantos anos tinha e em que ano tinha nascido. A essa altura, porém, creio que a questão toda já não me importasse mais - afinal, eu tinha um novo e imenso problema com o qual lidar, muito mais terrível e permanente do que uma simples ignorância sobre o ano em que nasci. Agora, mais do que saber que o tempo passava, eu era capaz de senti-lo. De percebê-lo. Naquele instante, precisamente naquele instante, eu entendi passado e futuro. Tornei-me velho.

Hoje em dia, sou perfeitamente capaz de contar a passagem do tempo. Tenho exatamente 33 anos de idade, vinte e oito a mais do que tinha naquele distante começo de noite, em um 1985 que jamais voltará a existir senão na minha imperfeita memória. Deu tempo de viver muita, muita coisa mesmo nesse período. Vi muito, ouvi outro tanto, esforcei-me sempre para entender, aprender. Não sei até que ponto tive sucesso, nisso e em tantas outras coisas. Superei grandes barreiras na minha existência: aprendi a comer feijão, a amarrar os cadarços do tênis, a subir num ônibus e descobrir sozinho onde deveria descer. Sobrevivi a doenças, ferimentos, acidentes domésticos. Vivenciei sem muitos problemas a troca de dentes, as primeiras brigas, as primeiras mentiras e decepções, o primeiro beijo. Amei e fui amado por diferentes pessoas, com diferentes graus de sincronia e reciprocidade. Quis coisas que não pude ter e sobrevivi à ausência delas. Descobri a arte, a ironia, a amizade desinteressada, o sexo e o futebol. Aprendi a ser míope. Assumi a barba e a careca mais ou menos ao mesmo tempo. Apertei a mão de desconhecidos no meio de ruas desertas, fui assaltado, recebi gestos de pura bondade da parte de gente que nunca mais vi na vida. Já bebi para tentar esquecer uma mulher, o que obviamente não funcionou. Andei muito, muito mesmo, por ruas conhecidas e ruas que jamais tinha visto antes. Aprendi a gostar de ficar sozinho e de tomar banho de chuva. Antes de completar quinze anos, perdi meu pai. Descobri que sou jornalista, que conto histórias com alguma propriedade e que sou absolutamente incapaz de entender como diabos se calcula um logaritmo. Fiz faculdade, fiquei desempregado, morei praticamente de favor em um sótão de uma cidade desconhecida. Mais de uma vez fiquei acordado a noite toda exclusivamente pelo prazer de contemplar o nascer do sol. Tive que encarar os fatos algumas vezes, já disse a verdade quando era muito difícil e pedi perdão a pessoas que decepcionei. Já achei que estava tudo perdido, já tive muita pena de mim mesmo e já quase fiquei sem esperança. Nunca pensei em tirar minha própria vida, mas já achei que não restava muita coisa senão morrer. E de alguma forma sobrevivi a tudo isso, ficando mais forte e ciente de mim mesmo pelo caminho, em uma trilha meio acidentada que me trouxe até aqui, até esse preciso instante em que escrevo um texto sobre mim mesmo sem saber exatamente o que, no fim das contas, estou tentando dizer. Trinta e três anos.

Qual é o resumo de um ser humano? Qual é o seu extrato, o que ele é e segue sendo além de todas as coisas que disse e fez, algo que sobra dele quando tudo mais é removido e que - sabe-se lá - seja capaz de sobreviver a ele próprio, muito depois de sua morte? Haverá alguma grande obra, algum tipo de legado que possa ser descrito e quantificado, ou será que somos mesmo apenas as sombras na parede, pés que andam pela grama rala sem deixar sequer as pegadas para trás - mas que fazem o trajeto tantas e tantas vezes que acabam gerando o atalho por onde os outros andarão, caminho que segue lá muito depois de termos mergulhado na inexistência? Vale mesmo a pena esse esforço todo, essa dedicação quase maníaca de colocar uma palavra depois da outra, em um mundo onde tudo é tão tênue e acaba tão rápido e logo vira apenas lembrança ou nem mesmo isso? De que vale o futuro em um mundo onde o presente nos foi negado e somos, cada vez mais e eternamente, escravos do passado que construímos a cada respiração?

No que tange a todas essas indagações, sou um cronista dos mais relapsos. Não sou capaz de respondê-las e, mesmo que eventualmente fosse, certamente declinaria da tarefa. São questões, de qualquer modo, que me parecem bem mais úteis perguntadas do que respondidas. Talvez seja delas que fui tirando, depois de cada tropeço, a vontade de continuar. Talvez por meio delas eu tenha sobrevivido ao primeiro e mais definitivo dos meus desafios: achar o que fazer de mim mesmo quando percebi que o tempo existia e, uma vez existindo, já estava próximo de acabar. Esse, amigos e amigas, é o tempo e a vida que estou vivendo - é, ao mesmo tempo, o melhor e o pior dos tempos, o mais extraordinário e o mais insignificante, e é todos esses tempos de uma vez só. E estou em paz. Sou velho, nunca mais serei jovem novamente, a inconsciência de apenas viver sem que nada mais importe já me foi negada há tempo e creio que não deve mais voltar. Mas a vida cresce em encanto a cada instante. Quanto menos eu tenho, mais incrivelmente belo e precioso me parece o que ainda resta. E mais grato me sinto.

Meu nome é Igor Natusch, tenho 33 anos e nunca me senti tão vivo em toda a minha vida.

sábado, 10 de agosto de 2013

Observação

É estranho, enquanto observador, saber-se não observado. Observar é uma arte negligenciada em nosso mundo: poucos observam. Olho todos com os olhos de quem não é alvo dos olhares de ninguém. Observo só. Então, sei que pouco provável é que me observem, esteja eu onde estiver, seja lá qual fatia do mundo eu esteja a observar.

Saber isso traz a mim uma estranha liberdade. Quase como saber-se seguidor de uma doutrina quase esquecida, uma fé secreta. Algo que existirá enquanto o mundo for mundo. Uma pertença em meio à solidão.

A solidão não é claustro nem castigo, nesse caso. A solidão sou eu. Eu sou minha própria solidão. Minha fronteira sou eu mesmo - além de mim, o que existe? Jamais saberei: da minha existência perante o mundo, nunca perceberei mais do que pálidos e imprecisos reflexos. Dos olhos que porventura me enxergam, pouquíssimos me verão, nenhum saberá de fato quem sou.

O que me constitui é também a ausência de olhares sobre mim. Existo em mim mesmo. E estou completo. Estou em paz.

sábado, 3 de agosto de 2013

Passos na chuva (I)

[caption id="attachment_563" align="alignnone" width="1024"]Foto: Henti Smith Foto: Henti Smith[/caption]

Foi numa noite de chuva que ele saiu para nunca mais voltar. Lembro muito bem: era uma chuva igualzinha a essa, de gotas grossas e insistentes, chuva que bate no asfalto com um barulho que lembra coisas que já não existem senão dentro de nós. Uma chuva de noite fria, daquelas geladas mesmo. E foi justamente em uma noite como essa, exatamente como essa, que ele calçou um par de botas, vestiu uma capa de chuva por cima das roupas de ficar em casa e saiu. Não sei quando volto, ainda lembro dele dizendo, em voz não muito alta, como quem não quer fazer muito alarde de si mesmo. Mas olha essa chuva, onde é que você vai, ainda perguntei. Vou caminhar, foi o que disse, e então disse de novo Não sei quando volto, e foi em direção à porta sem falar mais nada. Passou duas voltas na chave antes de sair. O último som que dele ouvi foi seus passos sumindo no corredor, rumo às escadas.

Não olhei pela janela, então não sei que rumo tomou.

Desde então, sigo aguardando que retorne. Mesmo quando faz sol, mesmo quando há calor e a luz da grande estrela brilha quase insuportável nas janelas do outro lado da rua, mesmo assim sinto que ainda chove em algum lugar, que em algum ponto do mundo ainda é céu fechado, que ainda faz frio em alguma esquina distante muito além dos meus sentidos. Porque ele segue caminhando lá fora, e a chuva o acompanha onde quer que ele vá; isso eu sei, acima de dúvidas.

Será que ele volta, algum dia?

Quando chove do lado de fora, assim mesmo do modo que está chovendo agora, essa chuva fria que bate no asfalto e faz um som que a gente escuta mais aqui dentro da gente do que em qualquer outro lugar - nessas noites eu fico aqui, sentado de costas para a janela, sem olhar para a porta, esperando ele voltar. Aguço os ouvidos e tento escutar qualquer coisa além do som monótono e insistente das gotas no asfalto. Quero ouvir os passos familiares no corredor, a chave girando lentamente na porta que me separa do mundo e que não me animo a deixar aberta. Quero vê-lo usando a mesma capa de chuva, as botas sujas molhando o chão, a voz dele se erguendo apenas o suficiente para ser ouvida enquanto diz Eu sei, acabei demorando um pouco, desculpe.

Breves palavras sobre voltar às aulas

Ultimamente, eu tenho sonhado quase todas as noites que estou voltando a estudar. Às vezes, é como se eu estivesse entrando em outra faculdade, em um local estranho e com colegas desconhecidos; em outras, sou mais novo e estou retornando à escola - às vezes o velho Visconde do Rio Grande onde fiz todo o primeiro grau, às vezes algum outro lugar que não conheço e provavelmente só existe no meu subconsciente. Nem sempre esse retorno às aulas é o aspecto central do que estou sonhando - muitas vezes é apenas um detalhe, um cenário onde coisas ocorrem ou apenas uma ideia que flutua difusa em minha mente enquanto outros eventos se desenrolam. Seja onde e como for, é sempre um retorno: sinto-me como quem não frequenta a aula há tempos, alguém que volta de recesso ou mesmo que abandonou seus antigos compromissos em nome de um recomeço, de um novo aprendizado.

Não sei interpretar isso muito bem. Sonhos não costumam ser muito literais, de forma que eu não acredito que o lado escuro da minha mente esteja dizendo largue tudo, largue tudo agora mesmo e volte a estudar. Mas talvez ele esteja me pedindo disposição renovada para alguma coisa - para aprender, para conviver e viver. Talvez existam coisas dentro de mim que ainda preciso contemplar, e seja necessário esse retorno. Talvez seja o meu encantamento da criança que precisa voltar... Ou talvez seja apenas a simbologia do recomeço. Estamos sempre recomeçando, não é? Coisas acabam na nossa vida o tempo todo, e às vezes a gente não entende imediatamente, às vezes não queremos entender, às vezes apenas fechamos os olhos, o coração. Pode ser que o recado seja: algo acabou, é hora de algo começar. Permita, permita-se. Talvez seja apenas isso: preciso retornar a mim mesmo. Corrigir ligeiramente a rota, para que ela diga ainda menos sobre o mundo, um pouco mais sobre mim mesmo.

Não sei, não sei. Mas estou tentando apreender. Aprender, enfim.

domingo, 28 de julho de 2013

Alguns instantes após o Fim do Mundo

Abriu a porta e comprovou: o mundo tinha mesmo acabado.
Tão cedo, lamentou.

Fechou a porta e fez café. Bem forte.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O começo

Estava sozinho. Deixou lentamente seu precário esconderijo e, de pé em meio aos escombros, contemplou os arredores. Tudo havia sido posto abaixo. Os arranha-céus, os monumentos, telhados, janelas, asfalto e escadarias - tudo arruinado. Alguns focos de incêndio ainda eram visíveis, não muito longe - podia sentir as ondas de calor incidindo em sua pele. Um hidrante inútil cuspia jatos d'água em direção ao céu.

Amanhecia. Deu alguns passos, tentando não tropeçar nos destroços, testando a firmeza das placas de concreto antes de avançar. Uma viatura policial estava a poucos metros dele, virada com as rodas para cima, queimada de dentro para fora. Inofensiva, pensou, sem entender direito por quê. Não muito longe, as vitrines quebradas, cheias de brinquedos e eletrodomésticos - não havia ninguém por perto para saqueá-las. Na entrada da loja destruída, ainda era possível ver os enfeites de natal, parte deles caída ao chão, em meio ao vidro e os pedaços de metal. Não havia luz alguma que se pudesse ver ao longe, não importava o quanto ele se esforçasse para enxergar. Nenhuma luz que não a dos focos de incêndio e os raios do amanhecer.

Era o Começo do Mundo, pensou ele.

Sorriu.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Andante, o Relógio e o Caminho

Em uma pedaço de grama à beira do Caminho, senta o Andante. É um longo e acidentando Caminho, o que talvez justifique a pausa. Uma linha reta? Certamente não; parece mais uma trilha sinuosa, com várias curvas, que desvia-se várias vezes de forma estranha e pouco lógica. O próprio Andante parece ter pouca pressa: quando anda, perde tempo em rotas inexploradas e usa poucos atalhos. Tropeça. Às vezes dá uma série de passos para trás. Em outras, como agora, senta-se longamente em uma das laterais da estrada, toma fôlego, observa a paisagem enquanto esquece de todo o resto.

Se continuares assim, não chegarás nunca, diz o Relógio, exasperado com tanto atraso e lentidão. Por que diabos te atrasas? Por que insistes em ficar aí, perdendo tempo?

Gosto do Caminho, responde o Andante, após alguns instantes de silêncio. E não posso cruzá-lo muito rápido; quando ele acabar, não mais terei por onde ir.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O Livro, a Morte e as respostas

Duas perguntas que fiz aos meus pais, quando muito criança, ficaram especialmente marcadas na minha mente.

Ao meu pai, perguntei uma vez, andando da casa de minha vó para a minha própria, quem é que escrevia esse livro. Que livro?, perguntou meu pai. O Livro da Vida!, disse eu, exultante.

Meu pai riu e não respondeu.

À minha mãe perguntei em uma ocasião, chorando após ver uma notícia na televisão sobre uma criança que tinha morrido com poucos meses de vida, por que a gente precisava morrer. Só assim, de forma aguda e direta como só crianças de cinco ou seis anos conseguem fazer: por que a gente precisa morrer?

Minha mãe ficou muito chateada com minha dor, disse-me palavras de consolo, mas também não conseguiu responder.

Desnecessário dizer que essas duas perguntas seguem comigo até hoje. E que em noites como essa, quando o frio e o silêncio convidam a mente a mergulhar em si mesma, elas surgem com especial ênfase. Quem escreve o livro? E qual a lógica da morte em um mundo onde a vida parece tão importante?

Como nunca recebi respostas (e pode haver uma resposta a tais perguntas, no fim das contas?), fui levado a criar minhas próprias teorias. Pensei muito, andei muito, ando e penso cada vez mais. E tendo a concluir que a incapacidade de respostas está na imperfeição das perguntas. Ninguém escreve o Livro porque não há Livro, e não há motivo na morte porque, no fundo, não há morte: o que existe é um permanente rearranjar, na história e na vida. Ambas tomam formas permanentemente mutantes e indescritíveis, animadas pela mágica que é todos nós sem ser nenhum de nós ao mesmo tempo. E aí ficamos nós, nessa busca sem fim, ansiando por um sentido que não existe porque simplesmente não precisa existir. Achando que a fagulha vale mais que a chama, que a trilha da gota d'água na parede é mais importante que toda a tempestade.

É assim? Não sei. Não faço a menor ideia. Mas me agrada contemplar as perguntas que jamais responderei, em noites onde a incerteza parece ser a ponte entre o que pude e o que poderei ser. Assim agindo, me sinto um pouco mais dentro do Livro, e sinto a Morte um pouco mais distante.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Breve parábola sobre o esquecimento

[caption id="attachment_544" align="alignleft" width="300"]Foto: Monkey Business Images Foto: Monkey Business Images[/caption]

Desceu do ônibus já observando tudo, os olhos sedentos de pessoas, de paisagens, de vida. Há tanto tempo não regressava à cidade! As horas de viagem, cumpridas durante a madrugada, não as pôde dormir: viajou o tempo todo de olhos bem abertos, como que tentando devorar com os olhos cada partícula de paisagem que passava pela moldura da janela. Cada árvore, cada folhagem. Tentando enxergar as cores em meio à escuridão da noite sem lua.

Andou pela rodoviária com passos contidos: queria correr, mas a inconveniência do gesto parecia clara e conteve-se. Foi andando devagar entre as poucas lancherias e lojinhas abertas àquela hora da manhã, olhando cada produto como se fosse único, como se apenas ali pudesse ser encontrado. Sorria para os vendedores; sonolentos e um pouco confusos, nenhum deles retribuiu.

Não quis tomar um táxi. Resolveu ir caminhando, observando a cidade, saboreando-a. Desceu lentamente pelas ruas próximas, buscando reconhecimento nos detalhes. Nas lâmpadas cinzas que pediam limpeza. Nos ladrilhos um pouco soltos e nas calçadas de pedras descontínuas. Nos botecos e lancherias que recém abriam para receber os clientes erráticos da manhã. Nas praças cercadas de telas metálicas, de árvores sem folhas e pássaros que não cantavam. Nos bancos de praça vazios. Nas vozes que não se faziam ouvir.

Caminhou longamente, e não sentiu-se em paz.

Sentou em uma praça, levemente cansado e um tanto confuso. Seu entusiasmo da chegada havia sido substituído por uma preocupação difusa, e procurava dar sentido às sensações estranhas que passavam velozes pela sua mente. O que estava havendo? Tanto havia amado e sido feliz naquela cidade, tantos sorrisos havia recebido, tantas vezes havia cruzado aquelas ruas com o sentimento inexplicável e inequívoco de estar no lugar certo, na cidade certa. Verdade que tinha se ausentado por um período razoavelmente longo, mas ainda era o mesmo lugar, ainda reconhecia a si mesmo naquelas ruas. Não era problema dos olhos que observavam; parecia antes um problema de quem recebia aquele olhar.

Foi quando a compreensão veio, veloz e implacável, sem espaço para trégua ou compaixão. Foi alvejado por ela de tal forma que chegou a perder o fôlego, a sentir o corpo tremer, uma sensação áspera e com gosto de doença subindo lentamente pela garganta.

Era horrível, mas era verdade.

A cidade não lembrava mais dele.

Tomou o primeiro táxi e foi direto à rodoviária.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Dr. Thiago, um pedido: afaste-se

Resumindo brevemente: em entrevista concedida na manhã desta terça-feira (16) à Rádio Gaúcha (e que pode ser ouvida aqui), o presidente da Câmara de Porto Alegre, Dr. Thiago Duarte, demonstrou estar um tanto abalado com a situação que envolve a ocupação da Câmara de Porto Alegre. Com voz embargada, pede que a população perceba que o movimento que está há quase uma semana ocupando a Casa não é pacífico, mas sim violento e movido por interesses partidários. Compara a ação dos manifestantes com um atentado à democracia, diz que está impedido o direito de ir e vir, que foi além do que é possível em uma busca de solução. Indagado pela entrevistadora Rosane de Oliveira se está chorando, faz duas longas e dramáticas pausas, antes de retornar a falar de forma que me pareceu um bocado desconexa. Nada diz sobre sua disposição em aparecer na audiência de conciliação de quarta-feira, nem sobre as possiblidades de retomar diálogo com os manifestantes: apenas expõe seu imenso desconforto com toda a situação, no tom inequívoco de quem faz um grande desabafo.

Vou assumir a sinceridade da comoção do Dr. Thiago Duarte na entrevista que deu há pouco na Rádio Gaúcha. Sim, porque assumir que o presidente da Câmara estava interpretando um papel, além de insinuação grave, é algo que o colocaria desde o início em má posição nesta breve análise, o que eu considero injusto. Parto então da hipótese obviamente mais benéfica para o Dr. Thiago Duarte: a de que ele comoveu-se sinceramente ao falar da ocupação da Câmara de Porto Alegre e, portanto, sente-se sinceramente abalado com o andamento da situação. Analisando friamente, não tenho nenhum motivo para duvidar disso.

Nesse caso, me vejo forçado a sugerir que o Dr. Thiago Duarte afaste-se em definitivo das negociações com o Bloco de Lutas e com todos que no momento ocupam a Câmara de Porto Alegre. Porque o impasse já dura quase uma semana, e não será resolvido senão com serenidade - atributo que, a se julgar pelas últimas manifestações, o presidente da Câmara não está mais em condições de oferecer. Uma pessoa que chora ao falar de um problema de tal dimensão não está em condições de enfrentá-lo de frente. Uma pessoa que, com voz embargada, acusa seus interlocutores de racismo e de estarem "esfaqueando" e cometendo um "estupro" contra a democracia não está com a mente suficientemente clara, o pensamento cristalino, a capacidade de decisão no ápice. Está, isso sim, abalado. Cansado, desgastado, com o pensamento confuso. Com dificuldades de lidar com uma questão que personalizou de tal forma que virou motivo de dor psicológica, de agonia e sofrimento. Não está em condições de negociar. E creiam ou não, digo isso sem nenhum tipo de maldade, de ironia ou de condenação. Apenas constato algo que, para mim, torna-se impossível não enxergar.

Admitir uma eventual debilidade ou fraqueza momentânea não é algo vergonhoso. Pelo contrário: eu mesmo, por exemplo, estou doente e por isso me vi forçado a ficar alguns dias sem ir não só até a Câmara, mas a meu próprio local de trabalho. É algo que me deixa chateado e me provoca uma sensação de impotência bastante grande - mas pior seria se eu fingisse estar capaz de executar minhas tarefas, causando ainda mais problemas do que a minha ausência temporária possa provocar. Acho que cabe ao Dr. Thiago Duarte a mesma reflexão. Que ouça a própria entrevista, que releia suas declarações anteriores e perceba que está demasiado abalado, que não mais enxerga a questão com clareza, que corre sérios riscos de prejudicar a cidade que o elegeu caso insista em tentar administrar essa situação. Fazer isso não seria um fiasco: seria uma demonstração de grandeza. Seria um gesto em favor de Porto Alegre. Passe a negociação para seu vice e vá para sua residência, recuperar-se. Até porque, depois que tudo isso passar, só um Dr. Thiago Duarte com controle pleno dos seus nervos será útil para a cidade de Porto Alegre.

Tudo isso, é claro, assumindo a sinceridade de sua reação durante a entrevista na Gaúcha - algo de que, como antes dito, não tenho razões para duvidar. Porque sempre presumo o melhor das pessoas, em especial das que estão em tão elevada posição, lidando com questões tão importantes para o futuro da cidade onde vivo e que tanto amo.

domingo, 14 de julho de 2013

A ocupação, a desocupação e a mudança

[caption id="attachment_539" align="alignnone" width="900"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Entrei pela primeira vez na Câmara ocupada de Porto Alegre ainda na quarta-feira, quando havia alguma lembrança de dia em meio à noite já quase completa. Muitas vezes estive na Câmara durante meus anos de trabalho jornalístico, fazendo desde cobertura de pautas até simplesmente assistindo uma ou outra sessão mais interessante - mas entrar lá naquele dia foi um pouco como conhecer a Câmara novamente, como se aquele fosse um lugar novo e, ao mesmo tempo, carregasse o espírito do reencontro dentro de si.

Estava bela e pulsante a Câmara de Porto Alegre - cheia de cartazes, palavras de ordem, música. Pessoas. Era um ambiente transbordante de boas intenções - que não se modificou nos dias seguintes, ainda que o natural desgaste de uma longa ocupação tenha ampliado algumas tensões. Uma ocupação de pessoas confiantes na validade de sua causa, dispostas a sacrificar várias coisas em nome de sua crença na mudança. Sou um entusiasta da mudança, alguém que sente dentro de si a necessidade imperiosa de redesenhar esse mundo injusto e absurdo; natural, portanto, que nutra considerável simpatia por essas pessoas e pelo que estão fazendo em Porto Alegre.

Escrevo esse texto antes do processo de desocupação, previsto para o comecinho da manhã de segunda-feira. Não sei, portanto, como a coisa se dará - espero que de forma tranquila, já que tenho certeza que nenhum dos lados está interessado em qualquer situação incontrolável. Também não sei se a decisão do Bloco de Lutas de acompanhar das tribunas a sessão da tarde de segunda-feira será levada a cabo - e o que se dará depois dela, caso haja mesmo sessão. Mas acredito que, mesmo com eventuais críticas ao processo (como o impedimento total a muitos veículos de imprensa de entrar no plenário, o que considero humildemente um equívoco), seja possível dizer que o movimento sairá triunfante - pois conseguiu expor algumas coisas, acentuar outras, e deixar muito clara a necessidade urgente de repensar muitas coisas no modo como nos relacionamos com a política, em todas as suas esferas.

Não é mais tolerável, por exemplo, que empresas cujas identidades desaparecem em meio a consórcios explorem um serviço público e fundamental para a população sem que ninguém tenha noção real de quanto lucram com isso. Não é aceitável que estejamos há mais de duas décadas esperando uma licitação em serviço de tamanha importância. Não é correto que qualquer diminuição no valor das passagens venha de deduções de imposto e outras medidas nas quais é o governo que abre mão de dinheiro, enquanto os pedidos de aumento de passagem são sempre aceitos rapidamente pelo comitê que os analisa. Talvez não seja de fato possível uma passagem 100% livre em cidades de grande população, mas é difícil crer que não seja possível diminuir os custos a um valor racional - especialmente porque não é luxo ou privilégio usar ônibus em Porto Alegre ou em qualquer uma das grandes cidades brasileiras: é uma necessidade inarredável. Essas questões todas o Bloco trouxe ao debate, e não será fácil retirá-las de pauta. Se isso não é uma vitória do movimento, não consigo sequer imaginar o que seria.

A incapacidade dos políticos eleitos em compreender o caráter desse movimento é bastante visível. Não diria que o vereador Thiago Duarte, presidente da Câmara, seja o único responsável pela dificuldade de diálogo: acompanhando o caso como repórter, pude perceber que ele estava sob grande pressão de muitos colegas de Casa, que não deram as caras na Câmara mas muito se mexeram nos bastidores. Fico aliviado que se tenha evitado uma solução truculenta (algo que deve ser atribuído em grande medida aos vereadores de oposição, que atuaram intensamente para evitar medidas do tipo), e acho que o sr. Thiago Duarte também deve comemorar esse desfecho, mesmo que nem sempre tenha atuado nesta direção. Cabe deixar claro, porém, que os nobres vereadores não são vítimas de coisa alguma: contribuíram decisivamente para que ocorresse a ocupação, ao derrubar todas as emendas que buscavam maior transparência no transporte coletivo, em evidente proteção ao interesse dos empresários do setor.

É difícil, estando dentro do momento histórico, compreendê-lo completamente, de forma que qualquer tentativa de leitura corre o risco de ficar velha em questão de segundos. Mas me parece claro que estamos vendo, mais que o nascimento, a legitimação ativa de novos atores políticos - um processo que, aqui em Porto Alegre, ganhou fôlego a partir do episódio do Tatu-Bola, em outubro do ano passado, embora já viesse ocorrendo desde bem antes disso. A movimentação da sociedade civil (esse mesmo povo que adoravam chamar de "alienado" e "desligado da política") lançou o país em uma linda e intensa ebulição - e haverá quem considere isso ruim? Não era exatamente disso que precisávamos, que pedíamos dentro de nós há tanto tempo? O que haverá a temer?

A mudança é barulhenta, é confusa, às vezes confude a si mesma. Nos leva de arrasto, em outras. Não nos pede licença nem pergunta se estamos de acordo: quando está madura, simplesmente surge, e cabe a nós ter fôlego e disposição para juntar-se a ela em sua marcha. Gostem ou não da mudança, e seja lá no que ela resultará, o fato é que ela está em andamento em Porto Alegre - e foi o que pude ver quando entrei no plenário da Câmara, na última quarta-feira e nos dias seguintes. A quem tem, como eu, a pretensão de dar testemunho das coisas do mundo, não cabe aprovar ou desaprovar a mudança - é meu dever observá-la, entender o melhor possível, relatar. Porque ninguém, nem mesmo os próprios atores da mudança, sabe para onde ela irá. Só há uma certeza: ela não vai parar. A desocupação não é um fim; está mais para um recomeço. E está sendo muito enriquecedor ver tudo isso acontecer.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Trilha sonora: Armas de 68

A primeira vez que ouvi "68 Guns" do The Alarm foi numa madrugada de dia de semana, sozinho na sala de casa, assistindo Clássicos MTV. Lembro que era um período em que eu ficava muitas madrugadas sozinho, acordado até altas horas, sem nenhum compromisso no dia seguinte - deve fazer quanto tempo isso, dez anos talvez, quem sabe um pouco mais? Não lembro - condensou na mente, virou memória sem tempo e sem referência, caldo de um passado que começa lá longe e não acaba nunca. Era algo comum na minha vida, de qualquer modo: ficar solitário na noite silenciosa, vendo vídeos de músicas que não conhecia, esperando alguma coisa acontecer. Algo que nem eu mesmo imaginava que fosse, e que demorei tempo para entender que ninguém mais poderia saber além de mim mesmo.

[caption id="attachment_534" align="alignleft" width="300"]Foto: Reprodução Foto: Reprodução[/caption]

Seja como for, fiquei fascinado. Eram punks (ao menos, me pareciam punks), mas a música não era suja, tosca. Era algo além. Havia um clima de poesia no negócio: eram caras dizendo uma coisa muito sincera e, mais importante que isso, SÁBIA até certo ponto. Era um grito de guerra, mas era também sensível e generoso, ou ao menos assim me soava. Os próprios músicos, na minha visão de adolescente, pareciam caras prontos para lutar, mas não pelo direito de beber até cair ou caçar mulheres noite adentro. A causa deles me parecia mais pura, mais sincera e mais justa - ainda que eu não entendesse lá muito bem que causa fosse essa no fim das contas. E o nome do disco que aparecia nos créditos de abertura me fascinou também: Declaration. Que coisa mais linda, uma banda batizar seu disco de Declaration. É o mais forte e sincero dos nomes, quase como Augusto dos Anjos batizar seu único livro de Eu. Declaration. Declaration.

Na época, eu não tinha sequer computador em casa, que dirá as facilidades de hoje para baixar mp3. Vi o clipe, ele acabou e devo ter ficado alguns anos sem sequer ouvir aquela música de novo, apenas a memória do refrão gritando "68 Guns will never die" tocando no fundo do cérebro de vez em quando. Isso é algo que o pessoal uns anos mais novo jamais entenderá: a sensação de apenas lembrar de alguma música ou cena de filme, recriá-la na mente sempre com novos detalhes, fazê-la cada vez mais mítica e cheia de significado até que ocorra, por mágica ou investimento, o reencontro. Até mesmo algo como o mercantilismo cultural tem lá a sua parcela de encanto - no caso, o encanto de fazer com que pouco mais de três minutos de música transbordem de significado, e cada vez mais na medida em que se mantém longe dos sentidos, guardados apenas dentro da alma.

Hoje, é claro, tudo é diferente. Tenho a discografia completa do The Alarm em mp3 e aos poucos estou adquirindo tudo em CD. O Declaration penso seriamente em comprar em LP, inclusive. "68 Guns" nem é mais minha música favorita da banda - "Blaze of Glory" tomou esse lugar, sendo hoje em dia praticamente o Hino Nacional de Igor Natusch (busquem no YouTube, ouçam e entenderão). Não fico mais assistindo TV sozinho de madrugada, não existe mais Clássicos MTV e a própria MTV está à beira de não existir mais. Eu mesmo, embora não tenha mudado tanto assim, já não sou mais a mesma pessoa. Entrei e saí da faculdade, tenho emprego, projetos, amigos, amores, vivências. Buscas. Não estou mais só.

Mas acordei hoje com o coração meio inseguro, depois de ter dormido um pouco além do que gostaria, resquícios de um pesadelo transformando-se em ideias confusas dentro de mim - acordei me sentindo com 16 ou 17 anos de novo, em suma. E me surgiu na mente o refrão de "68 Guns" - não o refrão de verdade, o que está a um botão de distância e consigo hoje ouvir a qualquer instante, graças ao universo em rede. Ouvi o refrão da minha memória, muito mais grandioso e eloquente, o refrão que eu ouvia quando só existia a lembrança e que era quase uma lenda dentro de mim. Era o moleque inexperiente e recluso do meu passado gritando para o Igor Natusch mais velho e experiente, mas ainda cheio de incertezas: deixa de frescura, cara. Tua vida é ótima. Levanta e vamos em frente.

Eu escutei, claro.

68 Guns will never die.

http://youtu.be/gLK3k_0GHrg

domingo, 7 de julho de 2013

O Mercado vive

[caption id="attachment_530" align="alignnone" width="960"]Foto: Ramiro Furquim / Sul21 Foto: Ramiro Furquim / Sul21[/caption]

Fui até o Mercado com o coração cheio de dor. A notícia, como todos sabem, era terrível: ardia em chamas o Mercado Público de Porto Alegre, agonizava e sumia diante de nossos olhos um dos únicos locais ainda capazes de agregar a população da grande cidade em busca do próprio espírito. Hesitei um pouco em ir até lá: mais do que a eventual sensação de inutilidade em minha jornada, meu coração temia explodir em dor diante do Mercado, que tanto amo e tanto amor me trouxe em tantas situações, em um momento que parecia ser o de sua morte. Mas meus colegas de redação estavam lá, precisando de minha presença, e não me vi mais em condições de fugir: peguei o crachá, vesti as primeiras roupas que achei e lancei-me na noite cinza de chuva e fumaça, cinzenta no coração dos homens e nas perspectivas do que viria.

"Vamos direto para o fogo, meu amigo", disse eu ao taxista, e de mais informações ele não precisou para entender perfeitamente o que eu dizia. O motorista foi rápido, sério e profissional: entendeu minha pressa e a gravidade da situação, deslocando-se com agilidade rumo ao coração da cidade. Antes de chegar ao Estádio Beira-Rio já sentíamos o cheiro da fumaça. "Estão defumando a cidade", brincou ele, mas nenhum de nós riu. A nenhum de nós a situação parecia divertida.

Pelo caminho, enquanto tomava rápidas notas no caderno que puxei da escrivaninha e me servia como bloco de notas naquela pauta inesperada, imagens do Mercado Público me ocorriam à mente. Caminhadas em meio às bancas, leituras sentado em mesas de pedra, aguardando o ônibus, parando para contemplar. Dando a volta pelo prédio de ponta a ponta, apenas pelo prazer de observá-lo e observar as pessoas. Uma noite recente, sentado no meio do Largo Glênio Peres, cercado de alegria e de vida, a sombra do Mercado caindo sobre nós. O Mercado Público é mais que um prédio ou ponto de referência: é um ponto central da minha memória afetiva, uma espécie de marco zero para os corajosos, os que ainda ousam amor na cidade que luta para não ser totalmente corrompida pelo cinza. É onde meu coração porto-alegrense fincou seus alicerces. Um lugar que amo. E quem morará nessa cidade e não terá amor pelo Mercado Público, pela sua insistência em dizer que somos mais que ir e voltar do trabalho, que somos mais do que passar correndo pela vida, que algo permanece, que certas coisas que somos existem além de todos nós?

Com certo esforço, consigo controlar as lágrimas.

Paguei a corrida em questão de segundos, desci do táxi e rumei pela Borges de Medeiros, caminhando com dolorida pressa, me esforçando para enxergar o cadáver no meio da fumaça.

Não havia cadáver, porém.

As chamas ainda eram visíveis. Janelas do andar superior cintilavam com fagulhas vermelhas, sombras insinuavam movimentos enquanto eram assediadas pela cor inconfundível e indescritível das chamas. Parte do teto já não existia mais. Uma solitária escada Magirus tentava fazer o trabalho que talvez dez delas não conseguissem cumprir. Corajosos homens corriam e lutavam para que o fogo não exigisse ainda mais terreno para si, enquanto curiosos oscilavam entre a surpresa, o quase divertimento e as lágrimas. A chuva estava ausente. Não havia muito ruído, mas havia muita confusão. E o Mercado continuava de pé, no lugar onde sempre esteve, as chamas devorando-o por cima, cambaleando diante do incêndio. Ferido.

Mas vivo.

Não sou capaz de descrever a sensação que tive naquele momento. Foi mais que um alívio; foi como uma descarga de energia, uma breve epifania, uma revelação. O Mercado não ia cair, não ia arder até o chão, não ia transformar-se totalmente em cinza diante dos nossos olhos chorosos e incrédulos. Não era o fim: era dor e era incerteza e era destruição e separação, mas não era o fim. Não tinham tirado tudo de nós, no fim das contas: o Mercado continuava lá. Continuávamos lá, junto com ele. E sorri abertamente, algumas das lágrimas há muito sufocadas encontrando vazão pelo rosto abaixo. Mas não mais por luto. Não mais.

"Vamos precisar reconstruir essa cidade", disse eu a um casal de amigas, algumas das boas pessoas que me emprestaram um pouco de afeto no meio da desordem. Agora, pensando a respeito dela, sinto-a ainda mais verdadeira. Porque é isso, não é? Reerguer o Mercado é, de certa forma, reerguer Porto Alegre - e ambas são urgências, ambas são necessidades inarredáveis se queremos salvar o que de melhor nós fomos, somos e podemos ser. Há, de fato, uma cidade esperando por nós. Ela resiste, porque ela é forte, mas precisamos ajudá-la a não desaparecer - seja em meio ao fogo, seja em meio à frieza de um cotidiano terrível e intolerável. Precisamos voltar. Os corajosos, os que ainda ousamos amor em meio ao cinza: somos nós os que não podemos recuar. Que venha o fogo: não viraremos cinza.

domingo, 30 de junho de 2013

Junho de 2013: um canto

[caption id="attachment_522" align="alignnone" width="900"]Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21 Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21[/caption]

Acho que desde o início percebi que junho não seria um mês qualquer. Ele já nasceu intenso, puxando o chão dos meus pés como alguém que tira de um só golpe a toalha de cima de uma mesa. Não havia tempo para contemplar o que quer que fosse. Confuso, mas sem medo, me vi solto no espaço por instantes - para em seguida cair em solo acidentado, uma voz na minha mente dizendo apenas corre, corre, corre. Então corri, com o mundo explodindo ao meu redor - a vida estendeu-me uma mão, a agarrei e corri, mal sabendo por onde ia, conquistando a custo cada respiração. Quando parei, vi o mundo lançado em linda e terrível desordem. E avancei em direção ao perigo, sem nenhuma certeza de estar fazendo o que era certo, movido apenas pela inarredável necessidade de ver o que o mundo mostrava, ouvir o que ele dizia. Entender.

O primeiro gás lacrimogêneo foi perto do prédio da Zero Hora. Não fomos capazes de correr; a fumaça nos tragou e nada nos restou senão andarmos um abraçado no outro, ambos sem enxergar quase nada, tossindo, ofegando. Alguém borrifa algo no meu rosto, consigo respirar melhor, mas quem me salva é a chuva - abençoada chuva que surge como milagre em meio à fumaça, que lava meus olhos e minhas narinas com o cuidado de quem sempre me amou. Reconcilio-me com a chuva ali mesmo, no meio da confusão dos homens, e peço que ela me perdoe por tê-la tratado de maneira tão injusta. Chovendo em pequenas gotas, ela afaga meu rosto e sorri.

Na esquina da Duque de Caxias com Doutor Flores, um contêiner de lixo arde em chamas. Alguém surge com um extintor de incêndio para apagá-lo. Ouço aplausos e vaias; vejo uma pedra que voa para o alto, rumo a pessoas que assistiam a cena da janela de um apartamento. Ouço o som de uma arma de choque; vejo pessoas correrem. Todos correm, o tempo todo. Eu muito já corri; apenas me afasto, devagar. Não sei para onde ir. Não há onde esconder-se do Tempo.

Leio e releio as mesmas palavras. Já sou capaz de repeti-las de forma exata, e ainda assim as memorizo um pouco mais a cada noite. E o Tempo condensa-se em novas formas, junta o que foi e o que está sendo, ri da hierarquia ridícula dos dias. Durmo pouco, acordo sobressaltado. Tomo café. Vou à rua. Por vezes, ando só. E logo desisto de entender as coisas, percebendo que não há nelas nada para ser antecipado, nenhum acontecimento sobre o qual eu possa acautelar-me ou pretender ter qualquer tipo de controle. Tudo escapa de minhas mãos. Nada tenho. E estou em todas as coisas.

Faço uma longa caminhada. Saio da esquina com a Osvaldo Aranha, desço pela Venâncio Aires, pego a João Pessoa até a Salgado Filho, passo pela Esquina Democrática. Pelo caminho, vejo os vidros quebrados, as frases escritas com tinta berrante no meio do cinza. Há um toque de humano em cada coisa que vejo; meu coração lembra de cada detalhe. Meus olhos estão cheios de beleza. Ao fim da caminhada, detenho-me longamente no Largo Glênio Peres. Percebo imediatamente que, para mim, ele jamais voltará a ser o mesmo. É madrugada de sexta-feira, e estou só. Mas estou pleno.

Consigo sorrir.

Perguntam-me o que acho. Não acho nada. Não há o que dizer em meio ao turbilhão. Ontem foi segunda, hoje já é quinta-feira, e então o fim de semana, e ja é segunda-feira de novo. Após o almoço de domingo, faço um longo retorno para casa; desvio o trajeto e vou até o colégio onde passei parte da infância. Está fechado, e hoje as grades de arame viraram muros de tijolos, altos. Só um dos pavilhões segue o mesmo; mesmo assim, nada mudou. A calçada da rua de trás segue tomada pela grama não cortada. Lembro da menina que, com um sorriso no rosto, me revelou que eu um dia seria o que hoje sou: um contador de histórias. Meus olhos enchem de lágrimas de pura gratidão.

Não consigo parar de andar. É uma caminhada que liga pontos inexistentes, sem partida e sem chegada: é uma jornada sentimental no coração da cidade que grita e sangra. O mundo todo está louco. O cachorro que foi meu amigo fiel por tantos anos morre enquanto estou preso no engarrafamento, incapaz de dizer a ele pela última vez o quanto ele foi um bom cão o tempo todo. A última vez que o vi foi na noite anterior, chegando em casa depois de uma noite de bombas, balas e fugas. Me recebe feliz, mas sem muito fôlego: tosse e geme baixinho. Digo a ele que é um bom cão e que ele pode voltar a dormir. Ele vai, e nunca mais o verei: no começo da manhã o levam até a clínica veterinária, e à noite ele está morto. Morreu de olhos abertos, boca aberta. Querendo viver. Afago rapidamente sua cabecinha sem vida e digo uma última vez, em silêncio: bom cachorro. Bom cachorro.

Não há tempo para luto. Amor e morte se misturam, sentimentos antagônicos lutam para achar algum tipo de calmaria dentro de mim. Não posso parar de andar; o mundo não me permitiria. O amor que vejo em todas as coisas me impulsiona. Sento brevemente diante de pessoas importantes; elas não me trazem explicação alguma. Olho nos olhos de um homem transtornado em meio a carros destruídos por uma onda de revolta além palavra, além explicação. Eram uns quinhentos, ele diz, e porque ninguém faz nada, ele diz, só deixam quebrar tudo e jogam bombas sobre a gente. O senhor está trabalhando?, me pergunta outra voz. Tá na linha de tiro, qualquer coisa a gente não se responsabiliza. Sussurro dizendo que não tem problema, eu me garanto, muito obrigado. Mas não me garanto de coisa alguma, isso eu bem sei. Que garantia existe em um mês como esse, em um mundo como esse?

Surge música. Sinto cheiro de pipoca, churrasco, quentão. Consolo efêmero: não será desta vez que a vida fará sentido. Nenhum odor alegre consegue mascarar o cheiro do gás. Não corram, eu grito. Não corram. Mas todos acabam correndo, atropelando uns aos outros, empurrando, gemendo, gritando. Cheios de medo. Alguns cheios de ódio. Contra a parede. Alguns dormem. Passo por dentro de suas casas e peço desculpas, mas sigo andando sem nem saber mais por quê, apenas porque não consigo mais parar de andar. De ver. Sai e vê, diz a besta; eu saio, e vejo. Ando em sentido contrário aos que correm, na exata direção do mundo que explode.

Pego a vida pela mão e a arrasto até uma esquina ligeiramente mais segura. Não há fuga: estamos encurralados. Gás sobe e desce pela rua onde estamos; há ruído e terror em todos os lados. Querem entrar aqui?, nos perguntam da porta de um hotel, que dias depois seria ele também alvo das pedras ausentes de razão. Olho para a vida, ela olha para mim, e ficamos do lado de fora. Não há esconderijo; não há saída senão encarando de frente a confusão.

Respiro fundo. Vamos?, pergunto. E começo a andar de novo, os lábios úmidos com lembranças distantes, uma música absurda tocando repetidamente na minha mente. Uma música que não existe.

Há um toque de humano em tudo que vejo.

Ao fim da jornada, um anjo me dá um doce. É a mais saborosa de todas as iguarias. Como com o coração cheio de gratidão, os olhos voltados para o céu.