[caption id="attachment_365" align="alignleft" width="300"] Foto: Grufnik / Flickr[/caption]
Houve um tempo, milhares e milhares de anos antes que as torres fossem tão altas que se tornou impossível enxergar o céu, em que havia apenas o Homem, o Sol e a Lua. O Homem, desconhecedor de todas as grandes verdades, apenas vivia, esperando a Lua após o Sol e o Sol após a Lua, e isso o bastava, e isso era bom. Vivia sem perceber e, assim vivendo, também morria sem se dar conta de que, a cada inspirar de Vida, expirava um sopro de Morte.
Então um dia veio, de algum lugar que ninguém soube muito bem onde era, o Outro Homem. E ao ver que o Homem vivia e morria de forma tão desleixada, sem saber de nada e sem nenhuma preocupação com todas as coisas tão importantes, o Outro Homem resolveu intervir.
"Trago algo para ti", disse ao Homem o Outro Homem. "Um presente. Chama-se Relógio. Com ele medirás o Tempo, e medindo o Tempo poderás sempre saber de onde veio e para onde estás indo. Poderás construir e controlar as Máquinas, e controlando as Máquinas poderás entender o Mundo. Não mais serás dependente do Sol ou da Lua; sendo dono do teu Tempo, controlarás o teu Destino. Toma o Relógio e o mantém sempre contigo; um dia, por meio dele, conseguirás chegar até meu mundo, onde vivem os Outros Homens, e então voltaremos a conversar".
Disse essas coisas, o Outro Homem, e foi-se embora.
O Homem não entendeu muito bem aquele monte de palavras que jamais tinha ouvido, mas ficou muito impressionado com o Outro Homem, com o modo como chegou em meio a fogo e trovão e foi-se embora no mesmo estrondo, sem olhar para trás. Observou o Relógio que tinha consigo, e viu que algo nele se movia, fazendo um estalo, depois outro estalo, depois mais outro. Era um ritmo. Demorou um pouco, mas ficou olhando aquele Relógio até entender que ele era uma Máquina e que aqueles estalos um depois do outro depois do outro eram o Tempo. E tão longo entendeu essas coisas, percebeu que não podia mais ser Homem - porque agora sabia da Vida e da Morte, agora sabia que tinha um Mundo a conquistar, e nem o Sol e nem a Lua estavam livres daquelas Verdades todas, daqueles estalos que marcavam a Vida que ia e a Morte que chegava.
Muito tempo passou. E aquele que havia sido Homem aprimorou ao máximo sua compreensão do Tempo, controlou as Máquinas, criou incontáveis outros Relógios, decifrou a Vida e a Morte e uma porção de outras coisas que quando era Homem nem tinha imaginado que existissem, que dirá que tivesse que entendê-las. Tinha cada vez mais controle sobre o Destino, dominava o Mundo de tal forma que tudo a seu redor era engenho e submissão. Suas torres eram cada vez mais altas; logo seriam tão imensas que talvez pudesse até mesmo tocar o Sol e a Lua e deter o seu já quase inútil caminhar pelo céu. Apenas uma coisa não podia controlar: o estalo, um depois do outro e depois do outro e depois do outro. O ritmo que vinha da ponta da Vida e o levava - cada vez mais rápido, ainda que sem jamais acelerar-se - pelo caminho cinzento que terminava na Morte. Mesmo assim, sempre trazia consigo o Relógio, como única coisa que o lembrasse de onde tinha vindo, único elo entre todas as coisas que sabia e as que precisava compreender.
E das Máquinas criou outras Máquinas, e tantas Máquinas criou que podia cruzar distâncias cada vez maiores. Tanto aprimorou seu engenho que, mesmo sem controlar o Tempo, encontrou a trilha para ir e vir através dele. Acreditou tolamente, aquele que havia sido Homem, que por meio desta trilha poderia vencer o estalo incessante e inverter os canais entre Vida e Morte. Logo percebeu, porém, seu erro. Podia controlar o Tempo de todos os seres, menos o seu próprio; podia vivenciar e mudar infinitas Vidas e Mortes, menos a sua. Era escravo de si mesmo. E como poderia então libertar-se, se sabia apenas que não era mais Homem, sem no entanto saber o que era agora?
Seja como for, navegou pela trilha do Tempo inúmeras vezes, em busca de uma impossível Resposta. E numa dessas viagens encontrou, como que por encanto, um atalho até então desconhecido, que o levou até uma planície brilhante e a uma sacada para o infinito na qual, apoiado em um parapeito, aguardava o Outro Homem.
"Você demorou um pouco mais do que eu esperava", disse o Outro Homem, sorridente. "Cheguei a pensar que não mais voltaríamos a conversar. Seja como for, estou feliz em vê-lo; percebo que aprendeu muitas Verdades e que domina as Máquinas muito bem. Consegues até mesmo viajar no Tempo! Fizeste grande progresso. Ainda trazes contigo o Relógio?"
Neste momento, o Outro Homem e aquele que havia sido Homem olharam diretamente um nos olhos do outro. E era estranho porque, mesmo que aquela fosse uma conversa há tanto aguardada por ambos, fez-se longo silêncio.
"Sim, o Relógio está comigo", disse enfim o que um dia tinha sido Homem.
Estendeu a mão, como quem fosse entregar o Relógio ao Outro Homem. E abriu os dedos, deixando o Relógio cair ao chão, onde bateu com estrondo no piso gelado. Avançou um ou dois passos e, como o Relógio ainda funcionasse, começou a pisar nele com violência, quebrando os vidros e engrenagens, espalhando estilhaços por todos os lados.
O Outro Homem observava aquilo e não entendia nada.
O que um dia havia sido Homem pisou no Relógio incontáveis vezes, até que o Relógio fosse apenas uma carcaça retorcida, até que estivesse ofegante e com as pernas doendo. Então, chutou o que havia restado do Relógio em direção ao Outro Homem e disse:
"Eis o Relógio. Vim devolvê-lo".
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quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
Espera
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_361" align="alignleft" width="300"] Foto: Melissa Venable[/caption]
Esperava há tanto tempo que não era mais capaz de contar. Sentado na cadeira de estofado pouco confortável, sem espaço para as costas, para esticar as pernas. Chão de pedra, frio. Chão frio em uma sala quente. Ventilador de teto estragado, dizia a folha de ofício ao lado do interruptor. No balcão, ninguém. Todos tinham sumido há muito, sem deixar nem mesmo o eco atrás de si. Estava só.
Espere um minuto, haviam dito. E ele esperou. E ainda esperava, envolto em tempo parado. Cercado de vazio. Paredes, chão, teto. Luz fluorescente. Uma janela.
Levantou-se.
Do lado de fora, um mendigo deitado na grama rala, debaixo da única árvore visível.
Aguarde apenas mais um pouco, disse uma voz atrás de si. Em breve chamarão o senhor.
Respirou muito fundo.
A porta bateu com estrondo atrás de si. Mas ele mal ouviu o barulho - era como algo que vinha de muito longe, de uma sala que nunca havia existido, de um mundo de estranho sonho ao qual nunca mais precisaria voltar.
Esperava há tanto tempo que não era mais capaz de contar. Sentado na cadeira de estofado pouco confortável, sem espaço para as costas, para esticar as pernas. Chão de pedra, frio. Chão frio em uma sala quente. Ventilador de teto estragado, dizia a folha de ofício ao lado do interruptor. No balcão, ninguém. Todos tinham sumido há muito, sem deixar nem mesmo o eco atrás de si. Estava só.
Espere um minuto, haviam dito. E ele esperou. E ainda esperava, envolto em tempo parado. Cercado de vazio. Paredes, chão, teto. Luz fluorescente. Uma janela.
Levantou-se.
Do lado de fora, um mendigo deitado na grama rala, debaixo da única árvore visível.
Aguarde apenas mais um pouco, disse uma voz atrás de si. Em breve chamarão o senhor.
Respirou muito fundo.
A porta bateu com estrondo atrás de si. Mas ele mal ouviu o barulho - era como algo que vinha de muito longe, de uma sala que nunca havia existido, de um mundo de estranho sonho ao qual nunca mais precisaria voltar.
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
Pequena vitória em um ônibus de Porto Alegre
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_353" align="alignleft" width="300"] Foto: dearaujors / Flickr[/caption]
Era fácil perceber que aquela pessoa, mesmo longe da pobreza total ou da mendicância, trazia consigo a inequívoca disposição de pedir alguma coisa. Era um negro de poucos dentes na boca, usando um blusão vermelho já bastante gasto e calças largas, e que subiu no ônibus de forma muito cautelosa, procurando ter bastante certeza de que o pé estava firme na escada antes de arriscar o próximo passo. Cumprimentou o motorista e o cobrador como se já os conhecesse, passou com dificuldades pela roleta e imediatamente dirigiu a palavra a nós, passageiros geralmente alheios a tudo que não diga respeito a nossas dores, nossos receios e problemas.
Desliguei a música nos fones e me pus a ouvi-lo.
Dizia o homem que era portador de câncer colorretal, o que obrigava ele e outras pessoas do grupo ao qual pertencia a adquirir bolsas especiais para coleta de fezes. O governo federal fornecia gratuitamente uma pequena e insuficiente quantidade para todos os que, segundo ele, necessitavam da tal bolsa - o que levava ele a pedir contribuições aos passageiros, para que fosse possível comprar mais bolsas de modo que a ninguém elas faltassem. Foi isso que disse, entremeado por seguidas citações a Deus, dizendo que só através dEle poderia encontrar cura e pedindo que Ele nos abençoasse por qualquer donativo que porventura pudéssemos fazer.
Não pesquisei sobre o assunto posteriormente, de forma que não sei dizer até que ponto o homem dizia a verdade - mas uma senhora em especial, sentada muito próximo de onde se erguia o homem, pareceu bastante incomodada com aquele discurso. Enquanto os primeiros passageiros já colocavam as mãos em mochilas e carteiras em busca de alguns trocados, ela começou a criticar o homem que pedia as doações - à princípio de forma quase inaudível, resmungando que aquilo tudo era mentira, mas logo erguendo a voz e passando a criticar e, em seguida, xingar o homem sem nenhum constrangimento.
Não sei até que ponto ela tinha alguma razão no que dizia, mas colocava as coisas de maneira tão agressiva e, assim me pareceu, pouco coerente que seus argumentos perdiam força e pareciam mais o desabafo de uma pessoa descontrolada do que qualquer coisa mais concreta ou coerente. Segundo ela, o homem era um mentiroso, não havia falta de bolsas para tratamento colorretal nos postos de saúde e ela podia dizer, já que trabalhava há anos como assistente social e conhecia a realidade na prática. Na visão dela, o homem fazia uso de sua condição para enganar as pessoas, juntando dinheiro para coisas bem menos nobres, como bebida ou drogas - e nós, passageiros de um ônibus de começo de tarde, estaríamos dando dinheiro a uma pessoa sem o mínimo caráter, que explorava nossa boa fé sem o menor escrúpulo e com uma tremenda cara de pau.
A esses ataques o homem respondeu com alguma irritação, mas com admirável autocontrole. Disse repetidas vezes que aquela senhora estava "descontrolada" e falando "de quem não conhece" - argumentos que pareciam deixá-la ainda mais irritada, devo acrescentar. O homem exaltou-se visivelmente apenas uma vez, quando sua interlocutora insinuou, por meio de ironias duras, que talvez ele nem doente fosse. "A senhora está duvidando da minha doença?", disse o homem, e imediatamente levantou o blusão, revelando uma bolsa colada ao próprio corpo com fita adesiva, cheia já pela metade de fezes. Um gesto dramático, que calou os ataques da mulher por alguns instantes - insuficiente, porém, para dissuadi-la, mesmo que sua postura confrontadora contra o pedinte provocasse nos presentes, ao invés de apoio, uma antipatia cada vez mais perceptível.
No entanto, diria eu que o homem venceu de vez a discussão instantes antes da mulher descer do veículo, quando, já com os pés na escada que leva à porta de saída, a senhora soltou um xingamento especialmente odioso, pronunciado com raiva tão intensa quanto incompreensível naquele contexto:
- Safado, cara de pau! Fica enganando as pessoas... Tomara que tu morras por causa desse câncer, seu sem-vergonha!
Por um instante, pareceu-me que o homem iria perder de vez o controle, que cometeria algum xingamento ou gesto violento contra aquela mulher que, sem conhecê-lo pessoalmente, o ofendia de forma tão agressiva a ponto de expressar o mais desumano dos desejos. Mas foi um instante breve, tanto que imagino que mais ninguém o tenha percebido. Tão logo recobrou-se do insulto, olhou fixamente para a mulher e sentenciou, com um sorriso estranho no rosto, mas voz firme:
- E eu desejo que Deus dê à senhora muita saúde. Não desejo nada de mal nem para a senhora, nem para ninguém.
Tão repleta de dignidade foi essa resposta, e pronunciada com tanta firmeza, que não resisti e acabei concordando com um gesto ostensivo de cabeça, um sorriso escapando entre os meus lábios diante daquela bela demonstração de resistência. E o homem olhou fixamente para mim, viu que eu concordava com ele e parece ter se encorajado, pois ainda completou, enquanto a mulher sumia, ainda xingando, vida afora:
- Vai com Deus, viu minha senhora? Que ele ajude a senhora, que tá precisando.
Não sei se Deus foi com ela, do mesmo modo que não sei que tipo de problemas a afligem ou se ela tinha, no fim das contas, algum tipo de razão no que dizia. Sei apenas que foi bom ver que aquele homem, mesmo insultado de forma tão ofensiva diante de várias pessoas, recolheu os trocados que lhe deram e desceu do ônibus com uma expressão tranquila, parecendo até um pouquinho orgulhoso de si mesmo. Se me perguntassem, diria eu que ele tinha sim motivos para sentir-se bem - porque sei o quanto é difícil negar-se ao ódio, recusar o confronto inútil e responder ao ruim não com o pior, mas com o melhor. É um desafio pelo qual todos passamos inúmeras vezes, no trajeto de nossos dias - e quantos de nós fracassam nessa luta uma, duas, incontáveis vezes? Ver aquele homem obviamente humilde e pouco instruído triunfar sobre si mesmo fez com que eu me sentisse um pouco triunfante também, e trato de levar esse bom sentimento comigo, agora que o confronto deixou o presente para esvanecer-se em minha imprecisa (ainda que eterna) memória.
Era fácil perceber que aquela pessoa, mesmo longe da pobreza total ou da mendicância, trazia consigo a inequívoca disposição de pedir alguma coisa. Era um negro de poucos dentes na boca, usando um blusão vermelho já bastante gasto e calças largas, e que subiu no ônibus de forma muito cautelosa, procurando ter bastante certeza de que o pé estava firme na escada antes de arriscar o próximo passo. Cumprimentou o motorista e o cobrador como se já os conhecesse, passou com dificuldades pela roleta e imediatamente dirigiu a palavra a nós, passageiros geralmente alheios a tudo que não diga respeito a nossas dores, nossos receios e problemas.
Desliguei a música nos fones e me pus a ouvi-lo.
Dizia o homem que era portador de câncer colorretal, o que obrigava ele e outras pessoas do grupo ao qual pertencia a adquirir bolsas especiais para coleta de fezes. O governo federal fornecia gratuitamente uma pequena e insuficiente quantidade para todos os que, segundo ele, necessitavam da tal bolsa - o que levava ele a pedir contribuições aos passageiros, para que fosse possível comprar mais bolsas de modo que a ninguém elas faltassem. Foi isso que disse, entremeado por seguidas citações a Deus, dizendo que só através dEle poderia encontrar cura e pedindo que Ele nos abençoasse por qualquer donativo que porventura pudéssemos fazer.
Não pesquisei sobre o assunto posteriormente, de forma que não sei dizer até que ponto o homem dizia a verdade - mas uma senhora em especial, sentada muito próximo de onde se erguia o homem, pareceu bastante incomodada com aquele discurso. Enquanto os primeiros passageiros já colocavam as mãos em mochilas e carteiras em busca de alguns trocados, ela começou a criticar o homem que pedia as doações - à princípio de forma quase inaudível, resmungando que aquilo tudo era mentira, mas logo erguendo a voz e passando a criticar e, em seguida, xingar o homem sem nenhum constrangimento.
Não sei até que ponto ela tinha alguma razão no que dizia, mas colocava as coisas de maneira tão agressiva e, assim me pareceu, pouco coerente que seus argumentos perdiam força e pareciam mais o desabafo de uma pessoa descontrolada do que qualquer coisa mais concreta ou coerente. Segundo ela, o homem era um mentiroso, não havia falta de bolsas para tratamento colorretal nos postos de saúde e ela podia dizer, já que trabalhava há anos como assistente social e conhecia a realidade na prática. Na visão dela, o homem fazia uso de sua condição para enganar as pessoas, juntando dinheiro para coisas bem menos nobres, como bebida ou drogas - e nós, passageiros de um ônibus de começo de tarde, estaríamos dando dinheiro a uma pessoa sem o mínimo caráter, que explorava nossa boa fé sem o menor escrúpulo e com uma tremenda cara de pau.
A esses ataques o homem respondeu com alguma irritação, mas com admirável autocontrole. Disse repetidas vezes que aquela senhora estava "descontrolada" e falando "de quem não conhece" - argumentos que pareciam deixá-la ainda mais irritada, devo acrescentar. O homem exaltou-se visivelmente apenas uma vez, quando sua interlocutora insinuou, por meio de ironias duras, que talvez ele nem doente fosse. "A senhora está duvidando da minha doença?", disse o homem, e imediatamente levantou o blusão, revelando uma bolsa colada ao próprio corpo com fita adesiva, cheia já pela metade de fezes. Um gesto dramático, que calou os ataques da mulher por alguns instantes - insuficiente, porém, para dissuadi-la, mesmo que sua postura confrontadora contra o pedinte provocasse nos presentes, ao invés de apoio, uma antipatia cada vez mais perceptível.
No entanto, diria eu que o homem venceu de vez a discussão instantes antes da mulher descer do veículo, quando, já com os pés na escada que leva à porta de saída, a senhora soltou um xingamento especialmente odioso, pronunciado com raiva tão intensa quanto incompreensível naquele contexto:
- Safado, cara de pau! Fica enganando as pessoas... Tomara que tu morras por causa desse câncer, seu sem-vergonha!
Por um instante, pareceu-me que o homem iria perder de vez o controle, que cometeria algum xingamento ou gesto violento contra aquela mulher que, sem conhecê-lo pessoalmente, o ofendia de forma tão agressiva a ponto de expressar o mais desumano dos desejos. Mas foi um instante breve, tanto que imagino que mais ninguém o tenha percebido. Tão logo recobrou-se do insulto, olhou fixamente para a mulher e sentenciou, com um sorriso estranho no rosto, mas voz firme:
- E eu desejo que Deus dê à senhora muita saúde. Não desejo nada de mal nem para a senhora, nem para ninguém.
Tão repleta de dignidade foi essa resposta, e pronunciada com tanta firmeza, que não resisti e acabei concordando com um gesto ostensivo de cabeça, um sorriso escapando entre os meus lábios diante daquela bela demonstração de resistência. E o homem olhou fixamente para mim, viu que eu concordava com ele e parece ter se encorajado, pois ainda completou, enquanto a mulher sumia, ainda xingando, vida afora:
- Vai com Deus, viu minha senhora? Que ele ajude a senhora, que tá precisando.
Não sei se Deus foi com ela, do mesmo modo que não sei que tipo de problemas a afligem ou se ela tinha, no fim das contas, algum tipo de razão no que dizia. Sei apenas que foi bom ver que aquele homem, mesmo insultado de forma tão ofensiva diante de várias pessoas, recolheu os trocados que lhe deram e desceu do ônibus com uma expressão tranquila, parecendo até um pouquinho orgulhoso de si mesmo. Se me perguntassem, diria eu que ele tinha sim motivos para sentir-se bem - porque sei o quanto é difícil negar-se ao ódio, recusar o confronto inútil e responder ao ruim não com o pior, mas com o melhor. É um desafio pelo qual todos passamos inúmeras vezes, no trajeto de nossos dias - e quantos de nós fracassam nessa luta uma, duas, incontáveis vezes? Ver aquele homem obviamente humilde e pouco instruído triunfar sobre si mesmo fez com que eu me sentisse um pouco triunfante também, e trato de levar esse bom sentimento comigo, agora que o confronto deixou o presente para esvanecer-se em minha imprecisa (ainda que eterna) memória.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Uma corrida de táxi até o Palácio da Polícia
Postado por
Igor Natusch
"Conheço a rua, sim. Lá na Zona Sul, né? A rua dos blocos?" Perguntou, o taxista, e tinha razão, era lá mesmo. A maioria dos taxistas não sabe, mas eu pergunto sempre, explico ao motorista em tom de brincadeira. "Ah, mas já são mais de vinte anos, né? A gente acaba aprendendo uma coisinha". E deu uma risada expansiva, barulhenta.
Não chovia, mas o céu estava carregado de cinza, alguns raios cruzando o espaço vazio entre os edifícios. Sabia o caminho, o taxista, e foi dirigindo até minha casa sem perguntar mais nada. O que não significa, claro, que fez a viagem em silêncio. Viu em mim, como os taxista normalmente veem, uma pessoa disposta a ouvi-lo falar. E foi falando.
[caption id="attachment_341" align="alignnone" width="850" caption="Foto: Juan José Richards Echeverría"][/caption]
"É bastante tempo, né? Vai fazer vinte e três anos que eu estou na lida", continuou, fazendo o cálculo em voz alta, enumerando os carros que teve para não se enganar na conta. "A gente acaba vendo um monte de coisa. Teve umas situações que, olha, vou te contar. Do cara se beliscar para ver se ainda está vivo, porque o cara fica na dúvida. Do cara ficar pensando tô vivo mesmo, tô vendo mesmo tudo isso acontecer?"
Percebi que queria contar uma história. E é prerrogativa do bom ouvinte encorajar o falante, para que a história surja mais facilmente, mais caudalosa e cheia de detalhes. Contar história a quem não quer ouvir é uma tristeza, eu bem sei. Então fiz meu papel de ouvinte interessado e disse olha meu amigo, eu posso imaginar, mas como assim se beliscar, o amigo achou que ia morrer?
"Olha, já tentaram me assaltar com faca de pão, afiada dos dois lados, que nem punhal. Eu desarmei o cara daqui mesmo, do banco do motorista, preso no cinto ainda. Nem reagi de valente, que eu tenho duas filhas, né: reagi porque achei que eu ia morrer, mesmo. Tu lembra dos tempos que os moleques de rua cheiravam cola de sapateiro? Pois é, uma vez eu vi uma mãe toda mendiga cheirando cola e dando pros filhos cheirarem também. Um dos piás no colo ainda. Me deu uma raiva, fui lá e chutei a lata da mão dela. Joguei no bueiro aquela porcaria. E não é que me deduraram para a Brigada, disseram que eu tinha espancado a mulher? Os caras vieram, me levaram preso, eu me explicando e eles nem queriam saber de nada. Eles são a autoridade, né. Fiquei até cinco da manhã no Palácio, me ficharam, meu patrão teve que ir me tirar de lá. Que coisa, né? O cara faz o que é certo e ainda se incomoda com polícia..."
Entendi que ele fazia um preâmbulo. Trazia consigo uma história maior, uma experiência que ele guardava acima das demais, principal vivência de uma vida no coração de Leviatã.
"E tem uma... Essa é a maior de todas", confirmou, falando bem alto, dando um discreto tapa no volante. "Essa sim, saiu até no jornal. Essa eu me belisco até hoje para ver se estou vivo mesmo".
"Eu era novo no rádio táxi, tinha acabado de entrar na empresa", começou, um estranho sorriso no rosto, como quem recorda um velho fantasma que não mais tem forças para assombrá-lo. "Chamaram um carro na Dona Otília, Beco Dois, e eu sou macaco velho, né, já me liguei que era na Cruzeiro, boca braba. Mesmo assim eu disse ok, deixa que eu vou. Aí o cara da rádio escuta disse olha, tem recomendação especial: entrar de ré".
"Fui lá, entrei de ré no beco, cuidando o número. Mal encostei, o cara abriu a porta de trás do meu Santana, eu tava num Santana na época, né, e jogou uma mala e uma mochila para dentro. Tava lavado de suor o cara, todo ensopado, e nem tava muito calor naquele dia, eu vi que tinha coisa errada. O cara jogou as malas dele no carro, saltou para dentro e disse toca, toca o carro, toca que os caras tão vindo me matar".
Um raio gigantesco cruza o céu, bem à frente ao veículo em que estamos. "Olha que relâmpago, hein", diz o taxista, aproveitando o fenômeno para mudar brevemente de assunto. Concordo com ele, dizendo pois é, o céu tá carregado, vem mais chuva aí. É um bom contador de histórias, penso comigo mesmo; sabe até o momento para fazer uma pausa dramática.
"Eu tô chegando na entrada do beco e aparece os caras. Um com uma 12, cano serrado, o outro com uma 45. Já chegaram fazendo sinal para eu parar, e eu olhei pelo retrovisor para trás, porque achei que o cara que tava no carro ia sacar também e aí deu, né, eu tava fodido. Mas não, o cara não tava maquinado, não tinha arma nenhuma. Só dizia toca, toca por cima, pelo amor de deus, que eles vieram me matar".
Houve nova pausa. Não muito longa, um ou dois segundos no máximo, um breve intervalo de quem toma fôlego para seguir. Ou de quem ainda pesa, muitos e muitos anos depois, as consequências de uma decisão terrível, tomada em uma fração de segundo, diante da urgência que não admite qualquer hesitação.
"Eu não tinha escolha, né", disse ele, quase como se parasse novamente o veículo, como quem novamente salvasse a própria vida às custas de uma sentença de morte. "Parei o carro. Não tinha como. Duas guriazinhas em casa. Os caras iam me furar inteiro. Não tinha como".
"Só vi o cara ali atrás todo lavado de suor, se abaixando, se encolhendo todinho, abraçado nas malas. Nem vi o cara da 45 chegando. É engraçado porque nessa hora, né, no susto da coisa o cara só se liga de ficar olhando a arma maior. O cara da 12 eu fotografei direitinho. O da 45 eu nem vi, só quando ele chegou na janela de trás e meteu bala".
"Onze tiros, amigo. Furou tudo. O cara do banco de trás ficou demolido. Não tem como escapar, as balas se espalham por tudo. Tinha pedaço de cérebro até no porta mala. Tiveram que trocar a porta do Santana". Enumerou esses detalhes mórbidos com uma curiosa dose de orgulho inconsciente. Me pareceu que esse trecho do relato, ainda que nauseante, era uma espécie de reafirmação pessoal, renovado alívio de uma pessoa que viu a morte alheia de perto, mas sobreviveu - ainda que não sem sequelas. "Eu falo alto assim porque perdi 25% da audição do ouvido direito", acrescentou, tirando a mão rapidamente do volante e colocando o indicador quase dentro da orelha. "É uma coisa de louco. Eu achei que só 38 fazia um estampido alto, sabe, aquele BAM, BAM. Que nada, aquela 45 faz um barulho desgraçado também. Eu nem vi nada, só me joguei por cima do volante e fiquei ouvindo. BAM. BAM. BAM".
Imitou os tiros, e silenciou. De novo, não por muito tempo. Com seu silêncio, pontuava o silêncio que tomou conta do beco depois do alarido da morte, naquela noite da qual era um misto de testemunha, carrasco e sobrevivente.
"O cara da 45 disse e aí, motora, tu sabe que tu nasceu de novo, né. Toca para fora daqui e só para lá no Palácio da Polícia. E eu fui mesmo. Fiz todo o caminho bem quietinho, com o cara todo arrebentado ali atrás. Só parei lá no Palácio mesmo. Desci, fui no balcão e disse olha só, aconteceu isso e isso, meu carro tá ali fora, o corpo tá dentro. Os caras não acreditaram, saíram correndo, foram lá fora e viram a desgraça toda. É ou não é do cara se beliscar para ver se está vivo, uma coisa dessas?".
Era sim. Sem dúvida que era.
"A incomodação que isso me deu o senhor nem imagina. Me fizeram ir até lá, reconhecer os caras. Que pavor". Talvez pela única vez em toda a corrida, ficou completamente sério. Me pareceu até um pouco contrariado. Em seguida, porém, retomou a jovialidade. "Eu não reconheci, né", disse, e eu entendi imediatamente o que ele queria dizer. "Não, não eram eles, de jeito nenhum. E me perguntaram, mas o senhor tem certeza? Certeza absoluta, nunca vi na vida, não eram esses aí de jeito nenhum. Eu com duas guriazinhas em casa, me esperando para ter café da manhã. Não tem como".
Concordei com ele, em silêncio. Duas guriazinhas em casa. Todas as noites na rua, doze horas por noite, cinquenta e duas semanas por ano. Duas guriazinhas em casa. Tinha razão, o motorista: não eram eles. Claro que não eram eles.
"E no outro dia eu já tava trabalhando de novo". Ele me disse, e eu não pude acreditar. Como assim, no dia seguinte?, perguntei. "Tô te dizendo", confirmou, o mesmo sorriso estranho do início de volta a seu rosto. "Ficou o carro lá a manhã inteira, fizeram a perícia, trocaram a porta, pintaram e eu já tava na rua de novo. Fazer o quê, né. A vida da gente é isso aí. Tem que colocar a cara na rua. Tem que encarar".
Me deixou na porta de casa, em perfeita segurança. Ficou com o troco; agradeceu-me com um sorriso aberto, um muito obrigado expansivo, de quem traz consigo uma compreensão peculiar sobre as coisas e sobre a vida. Até a próxima, digo eu. "Até a próxima, amigo. Quarenta e três anos, tô no rua mais da metade deles. É muita história. Quer escrever um livro? Fala comigo, fala com os meus colegas, história não vai faltar".
Não faltaria, mesmo. Disso, eu tenho absoluta certeza.
Não chovia, mas o céu estava carregado de cinza, alguns raios cruzando o espaço vazio entre os edifícios. Sabia o caminho, o taxista, e foi dirigindo até minha casa sem perguntar mais nada. O que não significa, claro, que fez a viagem em silêncio. Viu em mim, como os taxista normalmente veem, uma pessoa disposta a ouvi-lo falar. E foi falando.
[caption id="attachment_341" align="alignnone" width="850" caption="Foto: Juan José Richards Echeverría"][/caption]
"É bastante tempo, né? Vai fazer vinte e três anos que eu estou na lida", continuou, fazendo o cálculo em voz alta, enumerando os carros que teve para não se enganar na conta. "A gente acaba vendo um monte de coisa. Teve umas situações que, olha, vou te contar. Do cara se beliscar para ver se ainda está vivo, porque o cara fica na dúvida. Do cara ficar pensando tô vivo mesmo, tô vendo mesmo tudo isso acontecer?"
Percebi que queria contar uma história. E é prerrogativa do bom ouvinte encorajar o falante, para que a história surja mais facilmente, mais caudalosa e cheia de detalhes. Contar história a quem não quer ouvir é uma tristeza, eu bem sei. Então fiz meu papel de ouvinte interessado e disse olha meu amigo, eu posso imaginar, mas como assim se beliscar, o amigo achou que ia morrer?
"Olha, já tentaram me assaltar com faca de pão, afiada dos dois lados, que nem punhal. Eu desarmei o cara daqui mesmo, do banco do motorista, preso no cinto ainda. Nem reagi de valente, que eu tenho duas filhas, né: reagi porque achei que eu ia morrer, mesmo. Tu lembra dos tempos que os moleques de rua cheiravam cola de sapateiro? Pois é, uma vez eu vi uma mãe toda mendiga cheirando cola e dando pros filhos cheirarem também. Um dos piás no colo ainda. Me deu uma raiva, fui lá e chutei a lata da mão dela. Joguei no bueiro aquela porcaria. E não é que me deduraram para a Brigada, disseram que eu tinha espancado a mulher? Os caras vieram, me levaram preso, eu me explicando e eles nem queriam saber de nada. Eles são a autoridade, né. Fiquei até cinco da manhã no Palácio, me ficharam, meu patrão teve que ir me tirar de lá. Que coisa, né? O cara faz o que é certo e ainda se incomoda com polícia..."
Entendi que ele fazia um preâmbulo. Trazia consigo uma história maior, uma experiência que ele guardava acima das demais, principal vivência de uma vida no coração de Leviatã.
"E tem uma... Essa é a maior de todas", confirmou, falando bem alto, dando um discreto tapa no volante. "Essa sim, saiu até no jornal. Essa eu me belisco até hoje para ver se estou vivo mesmo".
"Eu era novo no rádio táxi, tinha acabado de entrar na empresa", começou, um estranho sorriso no rosto, como quem recorda um velho fantasma que não mais tem forças para assombrá-lo. "Chamaram um carro na Dona Otília, Beco Dois, e eu sou macaco velho, né, já me liguei que era na Cruzeiro, boca braba. Mesmo assim eu disse ok, deixa que eu vou. Aí o cara da rádio escuta disse olha, tem recomendação especial: entrar de ré".
"Fui lá, entrei de ré no beco, cuidando o número. Mal encostei, o cara abriu a porta de trás do meu Santana, eu tava num Santana na época, né, e jogou uma mala e uma mochila para dentro. Tava lavado de suor o cara, todo ensopado, e nem tava muito calor naquele dia, eu vi que tinha coisa errada. O cara jogou as malas dele no carro, saltou para dentro e disse toca, toca o carro, toca que os caras tão vindo me matar".
Um raio gigantesco cruza o céu, bem à frente ao veículo em que estamos. "Olha que relâmpago, hein", diz o taxista, aproveitando o fenômeno para mudar brevemente de assunto. Concordo com ele, dizendo pois é, o céu tá carregado, vem mais chuva aí. É um bom contador de histórias, penso comigo mesmo; sabe até o momento para fazer uma pausa dramática.
"Eu tô chegando na entrada do beco e aparece os caras. Um com uma 12, cano serrado, o outro com uma 45. Já chegaram fazendo sinal para eu parar, e eu olhei pelo retrovisor para trás, porque achei que o cara que tava no carro ia sacar também e aí deu, né, eu tava fodido. Mas não, o cara não tava maquinado, não tinha arma nenhuma. Só dizia toca, toca por cima, pelo amor de deus, que eles vieram me matar".
Houve nova pausa. Não muito longa, um ou dois segundos no máximo, um breve intervalo de quem toma fôlego para seguir. Ou de quem ainda pesa, muitos e muitos anos depois, as consequências de uma decisão terrível, tomada em uma fração de segundo, diante da urgência que não admite qualquer hesitação.
"Eu não tinha escolha, né", disse ele, quase como se parasse novamente o veículo, como quem novamente salvasse a própria vida às custas de uma sentença de morte. "Parei o carro. Não tinha como. Duas guriazinhas em casa. Os caras iam me furar inteiro. Não tinha como".
"Só vi o cara ali atrás todo lavado de suor, se abaixando, se encolhendo todinho, abraçado nas malas. Nem vi o cara da 45 chegando. É engraçado porque nessa hora, né, no susto da coisa o cara só se liga de ficar olhando a arma maior. O cara da 12 eu fotografei direitinho. O da 45 eu nem vi, só quando ele chegou na janela de trás e meteu bala".
"Onze tiros, amigo. Furou tudo. O cara do banco de trás ficou demolido. Não tem como escapar, as balas se espalham por tudo. Tinha pedaço de cérebro até no porta mala. Tiveram que trocar a porta do Santana". Enumerou esses detalhes mórbidos com uma curiosa dose de orgulho inconsciente. Me pareceu que esse trecho do relato, ainda que nauseante, era uma espécie de reafirmação pessoal, renovado alívio de uma pessoa que viu a morte alheia de perto, mas sobreviveu - ainda que não sem sequelas. "Eu falo alto assim porque perdi 25% da audição do ouvido direito", acrescentou, tirando a mão rapidamente do volante e colocando o indicador quase dentro da orelha. "É uma coisa de louco. Eu achei que só 38 fazia um estampido alto, sabe, aquele BAM, BAM. Que nada, aquela 45 faz um barulho desgraçado também. Eu nem vi nada, só me joguei por cima do volante e fiquei ouvindo. BAM. BAM. BAM".
Imitou os tiros, e silenciou. De novo, não por muito tempo. Com seu silêncio, pontuava o silêncio que tomou conta do beco depois do alarido da morte, naquela noite da qual era um misto de testemunha, carrasco e sobrevivente.
"O cara da 45 disse e aí, motora, tu sabe que tu nasceu de novo, né. Toca para fora daqui e só para lá no Palácio da Polícia. E eu fui mesmo. Fiz todo o caminho bem quietinho, com o cara todo arrebentado ali atrás. Só parei lá no Palácio mesmo. Desci, fui no balcão e disse olha só, aconteceu isso e isso, meu carro tá ali fora, o corpo tá dentro. Os caras não acreditaram, saíram correndo, foram lá fora e viram a desgraça toda. É ou não é do cara se beliscar para ver se está vivo, uma coisa dessas?".
Era sim. Sem dúvida que era.
"A incomodação que isso me deu o senhor nem imagina. Me fizeram ir até lá, reconhecer os caras. Que pavor". Talvez pela única vez em toda a corrida, ficou completamente sério. Me pareceu até um pouco contrariado. Em seguida, porém, retomou a jovialidade. "Eu não reconheci, né", disse, e eu entendi imediatamente o que ele queria dizer. "Não, não eram eles, de jeito nenhum. E me perguntaram, mas o senhor tem certeza? Certeza absoluta, nunca vi na vida, não eram esses aí de jeito nenhum. Eu com duas guriazinhas em casa, me esperando para ter café da manhã. Não tem como".
Concordei com ele, em silêncio. Duas guriazinhas em casa. Todas as noites na rua, doze horas por noite, cinquenta e duas semanas por ano. Duas guriazinhas em casa. Tinha razão, o motorista: não eram eles. Claro que não eram eles.
"E no outro dia eu já tava trabalhando de novo". Ele me disse, e eu não pude acreditar. Como assim, no dia seguinte?, perguntei. "Tô te dizendo", confirmou, o mesmo sorriso estranho do início de volta a seu rosto. "Ficou o carro lá a manhã inteira, fizeram a perícia, trocaram a porta, pintaram e eu já tava na rua de novo. Fazer o quê, né. A vida da gente é isso aí. Tem que colocar a cara na rua. Tem que encarar".
Me deixou na porta de casa, em perfeita segurança. Ficou com o troco; agradeceu-me com um sorriso aberto, um muito obrigado expansivo, de quem traz consigo uma compreensão peculiar sobre as coisas e sobre a vida. Até a próxima, digo eu. "Até a próxima, amigo. Quarenta e três anos, tô no rua mais da metade deles. É muita história. Quer escrever um livro? Fala comigo, fala com os meus colegas, história não vai faltar".
Não faltaria, mesmo. Disso, eu tenho absoluta certeza.
sábado, 22 de setembro de 2012
Breve relato de um sonho com Brilhante Ustra
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_334" align="alignleft" width="211" caption="Foto: Coletivo Muralha Rubro Negra / Divulgação"][/caption]
Sonhei que estava em uma coletiva de imprensa na qual falaria o Brilhante Ustra. Pelo jeito, ele ia anunciar que estava livre de processos judiciais, comemorar a impunidade garantida a ele pela Lei da Anistia - ao menos, é essa a pauta que eu recordava ter recebido. A sala era ampla e estava cheia de entusiastas, muitos militares, alguns poucos repórteres. Um deles, conhecido meu de pautas em Assembleias e Câmaras por aí, comentou comigo, em voz baixa:
- Pelo jeito, esse cara se escapou mesmo...
Respondi em um cochicho:
- Se escapou nada, nem imagina a matéria que eu vou fazer sobre essa palhaçada toda!
Ustra estava com uma expressão radiante, plena de confiança. Sorria. Recebia tapinhas nas costas. No centro da sala, uma imensa bandeira brasileira, de verde vivo e chamativo. Nos cantos do palco (pelo jeito, a coletiva seria em um palco), estranhos arranjos misturando rosas brancas, lírios e metralhadoras.
Eu, sentado a um canto, sinto nojo daquilo tudo.
Começa a tocar o hino nacional. Todos se erguem, em júbilo absoluto, para saudar a pátria mãe. É como a abertura de uma convenção partidária. Eu permaneço sentado, segurando o bloquinho e a caneta.
- O senhor precisa se levantar. É o hino - diz uma pessoa, cujo rosto eu não enxergo.
- Não vou me levantar - respondo eu, em voz branda, mas já prevendo incomodação.
- Levante e saúde o líder - disse outro, mais ríspido, me tocando no ombro. Repeli sua mão. Outras pessoas começam a se aproximar. Meu colega jornalista (que estava de pé, mas sempre esteve de pé, então não era por adesão a eles que se erguia) tentava debilmente me defender.
- Não vou levantar. Não vou! - continuava eu, já cercado, levando os primeiros empurrões, enquanto o hino tocava mais alto, cada vez mais alto.
Acordo a instantes do linchamento.
Sonhei que estava em uma coletiva de imprensa na qual falaria o Brilhante Ustra. Pelo jeito, ele ia anunciar que estava livre de processos judiciais, comemorar a impunidade garantida a ele pela Lei da Anistia - ao menos, é essa a pauta que eu recordava ter recebido. A sala era ampla e estava cheia de entusiastas, muitos militares, alguns poucos repórteres. Um deles, conhecido meu de pautas em Assembleias e Câmaras por aí, comentou comigo, em voz baixa:
- Pelo jeito, esse cara se escapou mesmo...
Respondi em um cochicho:
- Se escapou nada, nem imagina a matéria que eu vou fazer sobre essa palhaçada toda!
Ustra estava com uma expressão radiante, plena de confiança. Sorria. Recebia tapinhas nas costas. No centro da sala, uma imensa bandeira brasileira, de verde vivo e chamativo. Nos cantos do palco (pelo jeito, a coletiva seria em um palco), estranhos arranjos misturando rosas brancas, lírios e metralhadoras.
Eu, sentado a um canto, sinto nojo daquilo tudo.
Começa a tocar o hino nacional. Todos se erguem, em júbilo absoluto, para saudar a pátria mãe. É como a abertura de uma convenção partidária. Eu permaneço sentado, segurando o bloquinho e a caneta.
- O senhor precisa se levantar. É o hino - diz uma pessoa, cujo rosto eu não enxergo.
- Não vou me levantar - respondo eu, em voz branda, mas já prevendo incomodação.
- Levante e saúde o líder - disse outro, mais ríspido, me tocando no ombro. Repeli sua mão. Outras pessoas começam a se aproximar. Meu colega jornalista (que estava de pé, mas sempre esteve de pé, então não era por adesão a eles que se erguia) tentava debilmente me defender.
- Não vou levantar. Não vou! - continuava eu, já cercado, levando os primeiros empurrões, enquanto o hino tocava mais alto, cada vez mais alto.
Acordo a instantes do linchamento.
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
A Balada do Rapaz que saiu para tomar Chuva
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_329" align="alignnone" width="512" caption="Foto: crvdude / Flickr"][/caption]
Originalmente publicado em 05 de novembro de 2009
Era uma vez um rapaz que resolveu sair para tomar chuva. E fazia tempo que não chovia naquele mundo, para falar a verdade. Os escritores por aí gostam de falar de raios trovões que bagunçam e chovem todos os dias, mas às vezes se esquecem, por desatenção ou por desinteresse lírico, de falar dos trovões que nunca soam, das chuvas fugidias que nunca caem e acabam não bagunçando coisa nenhuma. Eis como era a situação do tempo no mundo do rapaz em questão – sol entre nuvens, um dia mais úmido ali, uma semana de ar seco ali, mas chuva mesmo não caia nunca.
Até que apareceu uma grande nuvem cinzenta no céu daquele mundo, e o rapaz animou-se bastante com aquilo. Era uma nuvem vendaval céu preto trovoada que prometia uma chuva daquelas, o que era uma tremenda novidade e deixou o rapaz imediatamente atento e com os olhos e ouvidos bem abertos. Estava longe ainda, não dava para ter certeza de quão grande era a nuvem e de quanta chuva trazia dentro de si – e, como a coisa toda estava demorando bastante para se aproximar, o que era animação foi virando ansiedade e o rapaz começou a ficar preocupado. Era só o que faltava, depois de tanta espera e tanta promessa, o trovão virar estalinho e a chuva virar vento molhado. Uma brisa gostosa vinha da direção na qual a nuvem surgia, trazendo um frescor agradável e um cheiro bom de terra molhada. O rapaz gostava daquilo, mas não achava que fosse o suficiente, e começou a caminhar na direção da nuvem, com uma ideia absurda na cabeça de que, se chegasse mais perto, a espera ia diminuir e ia ter mais chuva na qual se molhar.
Ficou andando o rapaz por um tempinho, mas a nuvem não parecia estar mais perto – na verdade, ela parecia estar se distanciando, como se um vento inoportuno surgisse sabe-se lá de onde para levá-la embora e fazê-la chover em outra freguesia. Começou a andar mais rápido, quase correr, mas não dava jeito de conseguir se aproximar da nuvem vento contrário relâmpago surdo não posso chover aqui desculpe até outro dia. Foi atrás dela por um bom tempo ainda, cada vez menos esperançoso, até que parou, frustrado e cansado, fechando os olhos enquanto tentava recuperar o fôlego.
De repente, assim mesmo sem aviso e sem sentido, começou a chover. Uma chuvinha bem leve de início, uma chuvinha ventinho frio barulho na janela carícia no rosto que pegou o rapaz de olhos fechados totalmente desprevenido, tanto que ele levou um tempo até perceber que de alguma maneira ele tinha alcançado a nuvem ou a nuvem tinha ido em direção a ele ou ambos ou nem um nem outro enfim não faz diferença. Abriu os olhos, viu encantado a chuva fraca caindo, sorriu com a timidez de quem nem lembrava que uma chuva de vez em quando podia ser tão agradável e bem-vinda. E ficou na chuva, e deixou que a chuva chovesse.
E então, tão de repente quanto tinha chegado, a chuva fraca dobrou-se num barulho de trovão e virou um temporal daqueles de meter medo. Uma chuvarada barulhão luz de relâmpago guarda chuva quebrado rua alagada engarrafamento que surpreendeu muito o rapaz, ao mesmo tempo que o deixou extasiado. Mal acostumado que estava, achava ele que qualquer garoa de quinta-feira à tarde era digna de ser chamada de chuva, de modo que nunca tinha imaginado que uma chuva pudesse ser tão forte, tão bonita e tão poderosa. Ficou totalmente encharcado em questão de instantes, e achou aquilo simplesmente sensacional, fechando de novo os olhos para saborear a sensação.
Pena, para o rapaz, que o temporal foi rápido – e parou tão de repente que, não estivesse o rapaz ensopado da cabeça aos pés, poderia até pensar que nunca tinha chovido. A chuva sumiu num vento gelado calçada molhada passarinho cantando chovi demais nem devia ter chovido chega de chuva adeus boa sorte, e veio um sol forte, um sol de protetor solar fator 50 para cima, um sol daqueles que parece dizer já era, rapaz, aqui não vai chover é nunca mais se depender de mim. Aceitou bem até o rapaz aquele final abrupto; afinal, uma chuva bonita e forte como aquela não podia mesmo ser normal. Ficou triste, mas ao mesmo tempo satisfeito de ter saído para tomar chuva, e resolveu ficar um tempo no sol, para ver se ficava seco e podia então voltar para casa.
Mas, e isso era uma coisa engraçada, ele nunca ficava plenamente seco. Por mais tempo que passasse, sempre parecia que tinha uma dobra da camisa, um espaço entre a meia e o tênis, algum lugar que continua molhado com as águas daquele temporal cada vez mais distante na memória. E dependendo de como o rapaz se mexesse, dependendo de como movesse a cabeça ou balançasse os braços ou olhasse para o horizonte, a descoberta de uma nova região úmida causava um calafrio dolorido, uma sensação debaixo da pele que era fria e quente ao mesmo tempo, uma espécie de dor que não doía mas que mesmo assim dava vontade de chorar.
Ficou um tempo bem grande ali, esperando que algo acontecesse, embora não soubesse àquela altura o que estava esperando no fim das contas. Então decidiu ir embora. Olhou rapidamente para o sol, que continuava ardendo como se fosse o único e eterno dono do céu, e começou a caminhar de volta para o mundo de sol entre nuvens do qual tinha saído. E foi com um susto e com uma correria no coração que viu o fiapo de nuvem cinza, bem longe na fronteira do céu com a terra, tão distante que um pouco mais de desatenção e o rapaz nunca teria reparado. Era parecida com a nuvem que tinha visto antes, a que tinha chovido tão bonito e o deixado todo molhado, mas podia muito bem ser uma nuvem diferente, de uma outra qualidade de chuva: estava muito longe, e ele não conseguia ter certeza. Ficou olhando, e começou a lembrar do vento gostoso, do cheiro de terra molhada e de tudo que tinha vindo depois daquilo.
Ficou na dúvida: ia até lá, ou ficava esperando? Tinha sido uma linda chuva, mas a sensação de estar todo molhado no meio do sol tinha sido muito ruim, e ele ainda lembrava, e ele tinha medo de sentir aquilo de novo. De mais a mais, estava tão longe… Hesitou um tempo, mas na verdade a hesitação era apenas da sua mente: seus pés já estavam andando na direção da tempestade.
Originalmente publicado em 05 de novembro de 2009
Era uma vez um rapaz que resolveu sair para tomar chuva. E fazia tempo que não chovia naquele mundo, para falar a verdade. Os escritores por aí gostam de falar de raios trovões que bagunçam e chovem todos os dias, mas às vezes se esquecem, por desatenção ou por desinteresse lírico, de falar dos trovões que nunca soam, das chuvas fugidias que nunca caem e acabam não bagunçando coisa nenhuma. Eis como era a situação do tempo no mundo do rapaz em questão – sol entre nuvens, um dia mais úmido ali, uma semana de ar seco ali, mas chuva mesmo não caia nunca.
Até que apareceu uma grande nuvem cinzenta no céu daquele mundo, e o rapaz animou-se bastante com aquilo. Era uma nuvem vendaval céu preto trovoada que prometia uma chuva daquelas, o que era uma tremenda novidade e deixou o rapaz imediatamente atento e com os olhos e ouvidos bem abertos. Estava longe ainda, não dava para ter certeza de quão grande era a nuvem e de quanta chuva trazia dentro de si – e, como a coisa toda estava demorando bastante para se aproximar, o que era animação foi virando ansiedade e o rapaz começou a ficar preocupado. Era só o que faltava, depois de tanta espera e tanta promessa, o trovão virar estalinho e a chuva virar vento molhado. Uma brisa gostosa vinha da direção na qual a nuvem surgia, trazendo um frescor agradável e um cheiro bom de terra molhada. O rapaz gostava daquilo, mas não achava que fosse o suficiente, e começou a caminhar na direção da nuvem, com uma ideia absurda na cabeça de que, se chegasse mais perto, a espera ia diminuir e ia ter mais chuva na qual se molhar.
Ficou andando o rapaz por um tempinho, mas a nuvem não parecia estar mais perto – na verdade, ela parecia estar se distanciando, como se um vento inoportuno surgisse sabe-se lá de onde para levá-la embora e fazê-la chover em outra freguesia. Começou a andar mais rápido, quase correr, mas não dava jeito de conseguir se aproximar da nuvem vento contrário relâmpago surdo não posso chover aqui desculpe até outro dia. Foi atrás dela por um bom tempo ainda, cada vez menos esperançoso, até que parou, frustrado e cansado, fechando os olhos enquanto tentava recuperar o fôlego.
De repente, assim mesmo sem aviso e sem sentido, começou a chover. Uma chuvinha bem leve de início, uma chuvinha ventinho frio barulho na janela carícia no rosto que pegou o rapaz de olhos fechados totalmente desprevenido, tanto que ele levou um tempo até perceber que de alguma maneira ele tinha alcançado a nuvem ou a nuvem tinha ido em direção a ele ou ambos ou nem um nem outro enfim não faz diferença. Abriu os olhos, viu encantado a chuva fraca caindo, sorriu com a timidez de quem nem lembrava que uma chuva de vez em quando podia ser tão agradável e bem-vinda. E ficou na chuva, e deixou que a chuva chovesse.
E então, tão de repente quanto tinha chegado, a chuva fraca dobrou-se num barulho de trovão e virou um temporal daqueles de meter medo. Uma chuvarada barulhão luz de relâmpago guarda chuva quebrado rua alagada engarrafamento que surpreendeu muito o rapaz, ao mesmo tempo que o deixou extasiado. Mal acostumado que estava, achava ele que qualquer garoa de quinta-feira à tarde era digna de ser chamada de chuva, de modo que nunca tinha imaginado que uma chuva pudesse ser tão forte, tão bonita e tão poderosa. Ficou totalmente encharcado em questão de instantes, e achou aquilo simplesmente sensacional, fechando de novo os olhos para saborear a sensação.
Pena, para o rapaz, que o temporal foi rápido – e parou tão de repente que, não estivesse o rapaz ensopado da cabeça aos pés, poderia até pensar que nunca tinha chovido. A chuva sumiu num vento gelado calçada molhada passarinho cantando chovi demais nem devia ter chovido chega de chuva adeus boa sorte, e veio um sol forte, um sol de protetor solar fator 50 para cima, um sol daqueles que parece dizer já era, rapaz, aqui não vai chover é nunca mais se depender de mim. Aceitou bem até o rapaz aquele final abrupto; afinal, uma chuva bonita e forte como aquela não podia mesmo ser normal. Ficou triste, mas ao mesmo tempo satisfeito de ter saído para tomar chuva, e resolveu ficar um tempo no sol, para ver se ficava seco e podia então voltar para casa.
Mas, e isso era uma coisa engraçada, ele nunca ficava plenamente seco. Por mais tempo que passasse, sempre parecia que tinha uma dobra da camisa, um espaço entre a meia e o tênis, algum lugar que continua molhado com as águas daquele temporal cada vez mais distante na memória. E dependendo de como o rapaz se mexesse, dependendo de como movesse a cabeça ou balançasse os braços ou olhasse para o horizonte, a descoberta de uma nova região úmida causava um calafrio dolorido, uma sensação debaixo da pele que era fria e quente ao mesmo tempo, uma espécie de dor que não doía mas que mesmo assim dava vontade de chorar.
Ficou um tempo bem grande ali, esperando que algo acontecesse, embora não soubesse àquela altura o que estava esperando no fim das contas. Então decidiu ir embora. Olhou rapidamente para o sol, que continuava ardendo como se fosse o único e eterno dono do céu, e começou a caminhar de volta para o mundo de sol entre nuvens do qual tinha saído. E foi com um susto e com uma correria no coração que viu o fiapo de nuvem cinza, bem longe na fronteira do céu com a terra, tão distante que um pouco mais de desatenção e o rapaz nunca teria reparado. Era parecida com a nuvem que tinha visto antes, a que tinha chovido tão bonito e o deixado todo molhado, mas podia muito bem ser uma nuvem diferente, de uma outra qualidade de chuva: estava muito longe, e ele não conseguia ter certeza. Ficou olhando, e começou a lembrar do vento gostoso, do cheiro de terra molhada e de tudo que tinha vindo depois daquilo.
Ficou na dúvida: ia até lá, ou ficava esperando? Tinha sido uma linda chuva, mas a sensação de estar todo molhado no meio do sol tinha sido muito ruim, e ele ainda lembrava, e ele tinha medo de sentir aquilo de novo. De mais a mais, estava tão longe… Hesitou um tempo, mas na verdade a hesitação era apenas da sua mente: seus pés já estavam andando na direção da tempestade.
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
O tapa
Postado por
Igor Natusch
Sabe quando alguém morre? É algo bem curioso o que acontece quando alguém morre, pessoal. Quando uma pessoa é morta, por incrível que possa parecer, ela fica morta para sempre. Tipo, eternamente, sabe? Quando alguém estava vivo e por algum motivo morre, essa pessoa nunca mais irá viver. O que ela foi, o que ela era e o que poderia ter sido: tudo acabou. Para sempre. Porque ela está morta. Morta.
Não dá para apertar o botão RESET e recomeçar o jogo. É como se você simplesmente morresse de verdade, de forma definitiva e sem chance de mudar. Sabe aquela sensação boa de tomar banho quando a gente se sente sujo e cansado? Para quem morre, isso não existe mais. Afinal de contas, essa pessoa morreu. Você gosta de queijo, por exemplo? Para a pessoa que está morta tanto faz quanto tanto fez se ela gosta ou não de queijo, se ela já gostou de queijo ou se poderia, um dia, ter gostado ou vir a gostar de queijo ou de açúcar ou de banana ou de arroz à grega ou de peixe grelhado ou seja lá do que se queira falar. Dar um beijo, deitar no sol, fazer amor, tirar um cochilo, ouvir música, correr atrás do ônibus, rir de uma piada. Nada disso pode acontecer, nada disso faz mais nenhuma diferença. Porque essa pessoa morreu. Está morta. Mortinha. E nunca mais vai viver. Nunca mais. Nunca.
Imagina um amigo seu morrer assim, para sempre, de forma inapelável e sem poder voltar atrás. Imagina um parente seu morrer desta maneira. Uma pessoa que você ama, seja qual for o seu modo de amor. Uma pessoa importante dessas morrer e você nunca mais vê-la, nunca mais tocá-la ou beijá-la ou amá-la ou mesmo ouvir a voz dela. Nunca mais. Eternamente impossível. Porque ela morreu. Porque mataram ela.
Imagina só isso e depois de tudo isso, depois de saber de forma inapelável que alguém que faz diferença morreu para sempre e nunca mais vai viver nem se as carruagens de Deus rasgarem o céu em um estrondo de trovão, vem alguém e te diz que ela tinha mesmo que morrer. Que ela fez algo errado. Se revoltou demais, perdeu o controle, não aceitou as regras e tentou provocar mudanças nas regras e aí, bom, daí ela morreu. Daí tiveram que matar ela. Porque sei lá, é mais importante que as coisas sigam funcionando exatamente assim, exatamente como são, sem mudarem jamais, de jeito nenhum, não importa quantos tenham que morrer eternamente para que as coisas fiquem assim, congeladas exatamente como estão. Porque quem criou as regras tem o controle, e quem paga aquelas que criaram as regras tem mais controle ainda, e a vontade deles justifica que algumas pessoas morram para sempre de forma a eles continuarem exatamente onde estão.
E imagina que quem te diz isso não é quem criou as regras, quem dá dinheiro para quem criou as regras nem nada disso - e sim alguém na mesma posição que tu, diante da mesma linha de tiro, alguém que pode morrer para sempre eternamente da mesma forma que todos os outros que já não existem e nunca mais hão de existir de novo. Alguém que também pode morrer eternamente para todo o sempre e nunca mais voltar: basta ficar irritado com uma regra que ele não acha justa, exatamente como a pessoa que ela acha que bem feito que morreu, desafiou a lei, fez um crime, tinha mesmo que morrer.
Imagina tudo isso. E me explica, porque para mim não faz sentido algum.
Não dá para apertar o botão RESET e recomeçar o jogo. É como se você simplesmente morresse de verdade, de forma definitiva e sem chance de mudar. Sabe aquela sensação boa de tomar banho quando a gente se sente sujo e cansado? Para quem morre, isso não existe mais. Afinal de contas, essa pessoa morreu. Você gosta de queijo, por exemplo? Para a pessoa que está morta tanto faz quanto tanto fez se ela gosta ou não de queijo, se ela já gostou de queijo ou se poderia, um dia, ter gostado ou vir a gostar de queijo ou de açúcar ou de banana ou de arroz à grega ou de peixe grelhado ou seja lá do que se queira falar. Dar um beijo, deitar no sol, fazer amor, tirar um cochilo, ouvir música, correr atrás do ônibus, rir de uma piada. Nada disso pode acontecer, nada disso faz mais nenhuma diferença. Porque essa pessoa morreu. Está morta. Mortinha. E nunca mais vai viver. Nunca mais. Nunca.
Imagina um amigo seu morrer assim, para sempre, de forma inapelável e sem poder voltar atrás. Imagina um parente seu morrer desta maneira. Uma pessoa que você ama, seja qual for o seu modo de amor. Uma pessoa importante dessas morrer e você nunca mais vê-la, nunca mais tocá-la ou beijá-la ou amá-la ou mesmo ouvir a voz dela. Nunca mais. Eternamente impossível. Porque ela morreu. Porque mataram ela.
Imagina só isso e depois de tudo isso, depois de saber de forma inapelável que alguém que faz diferença morreu para sempre e nunca mais vai viver nem se as carruagens de Deus rasgarem o céu em um estrondo de trovão, vem alguém e te diz que ela tinha mesmo que morrer. Que ela fez algo errado. Se revoltou demais, perdeu o controle, não aceitou as regras e tentou provocar mudanças nas regras e aí, bom, daí ela morreu. Daí tiveram que matar ela. Porque sei lá, é mais importante que as coisas sigam funcionando exatamente assim, exatamente como são, sem mudarem jamais, de jeito nenhum, não importa quantos tenham que morrer eternamente para que as coisas fiquem assim, congeladas exatamente como estão. Porque quem criou as regras tem o controle, e quem paga aquelas que criaram as regras tem mais controle ainda, e a vontade deles justifica que algumas pessoas morram para sempre de forma a eles continuarem exatamente onde estão.
E imagina que quem te diz isso não é quem criou as regras, quem dá dinheiro para quem criou as regras nem nada disso - e sim alguém na mesma posição que tu, diante da mesma linha de tiro, alguém que pode morrer para sempre eternamente da mesma forma que todos os outros que já não existem e nunca mais hão de existir de novo. Alguém que também pode morrer eternamente para todo o sempre e nunca mais voltar: basta ficar irritado com uma regra que ele não acha justa, exatamente como a pessoa que ela acha que bem feito que morreu, desafiou a lei, fez um crime, tinha mesmo que morrer.
Imagina tudo isso. E me explica, porque para mim não faz sentido algum.
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
A troca
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_320" align="alignnone" width="427" caption="Foto: Leon Neal/AFP/Getty Images"][/caption]
"Se Deus aparecesse agora na minha frente e me dissesse 'Alex, eu posso mudar o dia do acidente. Posso fazer com que o Tagliani desvie e não atinja seu carro. Você teria as suas pernas, mas não saberia como seriam esses últimos 11 anos da sua vida. Aceita a troca?', eu teria apenas três palavras pra ele: "No. Grazie, Dio".
Alessandro Zanardi, 45 anos, atleta e medalhista paraolímpico. Piloto de F-Indy, perdeu as duas pernas em 2001, em um acidente no EuroSpeedway de Lausitz, Alemanha. Perdeu 3/4 do sangue de seu corpo, teve várias paradas cardíacas e sobreviveu de forma surpreendente a um acidente potencialmente fatal. Passou por 20 cirurgias. Completou a prova de forma simbólica em 2003, realizando as 13 voltas que faltaram em EuroSpeedway em um veículo adaptado - alcançando um tempo que o teria colocado no quinto lugar no grid da corrida naquele ano. Voltou a correr, manteve a vida familiar, tornou-se praticante de handbike e, no dia 5 de setembro de 2012, onze anos depois de ter as pernas decepadas, tornou-se medalha de ouro na Paraolimpíada de Londres.
"Se Deus aparecesse agora na minha frente e me dissesse 'Alex, eu posso mudar o dia do acidente. Posso fazer com que o Tagliani desvie e não atinja seu carro. Você teria as suas pernas, mas não saberia como seriam esses últimos 11 anos da sua vida. Aceita a troca?', eu teria apenas três palavras pra ele: "No. Grazie, Dio".
Alessandro Zanardi, 45 anos, atleta e medalhista paraolímpico. Piloto de F-Indy, perdeu as duas pernas em 2001, em um acidente no EuroSpeedway de Lausitz, Alemanha. Perdeu 3/4 do sangue de seu corpo, teve várias paradas cardíacas e sobreviveu de forma surpreendente a um acidente potencialmente fatal. Passou por 20 cirurgias. Completou a prova de forma simbólica em 2003, realizando as 13 voltas que faltaram em EuroSpeedway em um veículo adaptado - alcançando um tempo que o teria colocado no quinto lugar no grid da corrida naquele ano. Voltou a correr, manteve a vida familiar, tornou-se praticante de handbike e, no dia 5 de setembro de 2012, onze anos depois de ter as pernas decepadas, tornou-se medalha de ouro na Paraolimpíada de Londres.
domingo, 29 de julho de 2012
A mesma trilha
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_312" align="aligncenter" width="300" caption="Foto: Pearlzenith / Flickr"][/caption]
"Por que estás me seguindo?"
"Não estou te seguindo. Esse é o meu caminho. Pelo jeito, é o mesmo que o teu."
"E como sabes que é meu caminho? O que sabes de mim?"
"Nada sei de ti. Apenas ando por aqui. É meu caminho, como te disse. Pensei que também fosse o teu."
"Se é ou não, é algo que não te diz respeito."
"Tudo bem."
"Não gosto disso. Não gosto que tu andes atrás de mim."
"Se quiseres, posso passar na tua frente. Ou ir a teu lado."
"E por que irias ao meu lado? Não te conheço!"
"Porque vamos pelo mesmo caminho, ora. Podemos fazer companhia um ao outro."
"É para rir. Não quero a companhia de um desconhecido. E não quero mais te ver por perto. Chega de conversa. Vai embora! Desaparece!"
O estranho sumiu. E voltou o homem a seu trajeto.
De vez em quando se voltava, para ver se o estranho tinha retornado, mas não. Estava só, como tinha exigido. E sozinho rumava por uma trilha cada vez mais penosa, cercado pela noite cinza e gelada, acompanhando apenas pela detestável sombra das árvores nuas.
"Por que estás me seguindo?"
"Não estou te seguindo. Esse é o meu caminho. Pelo jeito, é o mesmo que o teu."
"E como sabes que é meu caminho? O que sabes de mim?"
"Nada sei de ti. Apenas ando por aqui. É meu caminho, como te disse. Pensei que também fosse o teu."
"Se é ou não, é algo que não te diz respeito."
"Tudo bem."
"Não gosto disso. Não gosto que tu andes atrás de mim."
"Se quiseres, posso passar na tua frente. Ou ir a teu lado."
"E por que irias ao meu lado? Não te conheço!"
"Porque vamos pelo mesmo caminho, ora. Podemos fazer companhia um ao outro."
"É para rir. Não quero a companhia de um desconhecido. E não quero mais te ver por perto. Chega de conversa. Vai embora! Desaparece!"
O estranho sumiu. E voltou o homem a seu trajeto.
De vez em quando se voltava, para ver se o estranho tinha retornado, mas não. Estava só, como tinha exigido. E sozinho rumava por uma trilha cada vez mais penosa, cercado pela noite cinza e gelada, acompanhando apenas pela detestável sombra das árvores nuas.
segunda-feira, 23 de julho de 2012
A respeito do amor
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_309" align="alignright" width="300" caption="Foto: Glenn Rice"][/caption]
- Quem você ama? – ela tinha perguntado, os olhos azuis vincados de vermelho, o queixo tremendo em um descompasso de raiva e dor. Ela não gritou aquelas palavras: na verdade, elas saíram de modo controlado, quase sereno, como se fossem uma mera formalidade – ou, melhor dizendo, como se sua única função fosse servir de pretexto para uma resposta já esperada, já conhecida, mas que necessitava ser concretizada, dita em voz alta. No fundo, tudo aquilo era por demais óbvio, e ele deveria ter percebido de imediato qual seria a conclusão daquela história. Mas a verdade é que ele não percebeu. Não percebeu nada.
A madrugada estava fria, e ele se viu forçado a fechar o sobretudo antes que o vento da diagonal congelasse seus ossos. Suas mãos estavam enregeladas, mas não o agradava a idéia de pô-las no bolso: parecia algo casual demais, despreocupado demais, uma atitude vazia demais para não ser percebida – não encaixava no contexto, enfim. Como não trazia consigo luvas, contentou-se em esfregar as palmas frias uma contra a outra, na tentativa de mantê-las aquecidas. Chegou a esfregar as mãos no sobretudo por um momento, mas isso trouxe uma lembrança à sua mente, e logo desistiu do gesto. O céu estava limpo, e as estrelas brilhavam belas acima de sua cabeça, mas ele não se deteve para contemplá-las, nem mesmo ergueu os olhos para um vislumbre rápido que fosse. Tinha pressa, embora não se dirigisse a lugar algum em especial, e não tinha tempo para pensar nessas coisas.
Devia ter percebido a armadilha. Diabos, não era isso mesmo que ela sempre fazia? Sempre tinha sido muito cômodo para ela vestir o véu de vítima, por que teria mudado de atitude de uma hora para a outra? Idiota, isso é o que ele era: um idiota completo. Entrou de cabeça no jogo dela, dançou conforme a música, e agora não adiantava mais se lamentar. Era tarde demais.
As ruas estavam desertas. Embora o sobretudo fechado fosse efetivo no sentido de aquecer seu corpo, suas mãos sofriam, e os cabelos se desarrumavam com o vento gelado. Lamentou a pressa com que tivera que sair de casa, e a confusão mental que o impediu de pegar as luvas e colocar o chapéu. De fato, foi tudo tão rápido que nem mesmo tinha certeza de ter fechado a porta corretamente. Ficou imaginando os vizinhos alertados pelo barulho, curiosos se aglomerando na frente de seu apartamento, espremendo-se diante da porta aberta, vendo aquela cena, a bagunça, o sangue... Ah, era melhor não pensar naquelas coisas. Mais tarde, só bem mais tarde, trataria desse assunto. De qualquer modo, não pretendia mesmo voltar para casa, ao menos não antes do amanhecer. Havia algo que precisava fazer antes. Algo que não podia esperar.
Bem, na verdade era tudo perfeitamente explicável. Sim, ele havia bebido um bocado antes de voltar para casa, mas e daí? Um homem tem problemas a resolver, dificuldades que o afligem, estresses e incomodações; será tão absurdo assim tomar uns goles para relaxar, para amortecer o espírito e aliviar a cabeça? E, que diabos, ele nem tinha bebido tanto assim! Sim, estava bem entorpecido, mas tinha encontrado o caminho do lar com suas próprias pernas, não tinha? Ninguém tinha precisado carregá-lo, e ele ainda era dono de si quando abriu a porta e deparou-se com o olhar furioso da esposa. Ele não ia dizer nada, nada! Ia direto para o quarto, bem quietinho, sem falar bobagens e sem criar problemas. E, droga, ele não tinha prometido nunca mais levantar a mão para sua mulher? Então! Qual era o problema? Se ele ainda tirasse dinheiro de casa para pagar suas bebedeiras, mas não! Ele ganhava bem, e nunca tinha faltado um centavo que fosse para as compras, para as prestações do apartamento ou para o que quer que fosse. Diabos, o que mais ela queria? Um homem não tinha direito a embebedar-se de vez em quando?
Fosse como fosse, estava sóbrio agora. Bem sóbrio. E essa situação não o agradava. Tinha que fazer algo a respeito com urgência. Um relógio eletrônico erguia-se um pouco longe no horizonte: quatro e treze da manhã. Diabos, era tarde. Mas ele acharia algum lugar aberto. Precisava achar. Se não achasse, ficaria pensando no que ocorreu, e isso era tudo que não queria, que não podia fazer no momento. Atravessou uma rua vazia, chutou um copo plástico vazio caído no chão, e cruzou a esquina na esperança de encontrar luzes acesas, som de vozes, qualquer indício da fugaz alegria que move os homens. Encontrou apenas outra rua vazia, com a mesma luz difusa das lâmpadas de néon e as mesmas portas cerradas e as mesmas janelas trancadas. Suspirou alto, mas não parou de andar: andar era tudo que restava a ele naquele momento.
- Quem você ama? – foi tudo o que ela perguntou, os olhos faiscando de ódio, o rosto bonito e ainda jovem transformado em algo estranho e ameaçador. Ele não lembrava de ter visto tanta amargura no rosto dela antes – nem mesmo nas manhãs mais cinzentas, sequência das noites em que perdia o controle e ia além das palavras ríspidas habituais. Era mais do que simples raiva ou desespero, expressões que ele conhecia muito bem depois de tantas noites como aquela – era algo novo, algo diferente, algo que o deixou imediatamente alerta e que o fez hesitar na soleira da porta. – Quem você ama? – ela perguntou de novo, e de algum modo fez ainda menos sentido do que da primeira vez. Ele chegou a abrir a boca para perguntar, para tentar entender que diabos ela queria saber, tentar fazer algum sentido sair daquele rosto e daquela pergunta e daquela amargura toda, mas não conseguiu dizer nada, pois foi naquele momento que ele viu. E que tudo ficou definitivamente caótico e fora de controle.
Viu uma luz ao longe, depois de atravessar uma rua negra como a morte e pisar com força em uma poça de água, o que trouxe ao seu corpo já castigado pelo frio o tormento adicional de uma meia molhada. Foi essa luz que finalmente trouxe alguma animação a seu espírito, e uma sombra de sorriso surgiu em seu rosto. Acelerou o passo, quase correu, na verdade – não que fosse necessário, pois o bar estava aberto e não iria fechar tão cedo, pela aparência da coisa. Dois fregueses habituais, daqueles que fogem de casa nas madrugadas e ocupam sempre a mesma mesa, estavam com copos cheios e não pareciam cogitar seriamente a possibilidade de irem embora. No balcão, um homem de barba mal feita contava empolgadamente uma história de cães vadios e latas de lixo a um barman pouco receptivo, que preferia se concentrar em alguns copos que acabara de lavar. Aparentemente, os copos precisavam ser secos, e isso precisava ser feito de maneira muito lenta e bastante escrupulosa. Nem mesmo o pedido do recém chegado freguês no balcão o tirou do momento meditativo, e só com a insistência um tanto agoniada do homem o barman foi retirado de sua distração, se pondo a pegar de modo um tanto desanimado uma garrafa já meio empoeirada no topo da estante. – Não, eu vou levar a garrafa – disse o homem quando o barman fez menção de servi-lo. – É meio caro – disse o barman, olhando de lado, e o homem disse que não fazia diferença. Mesmo porque não fazia mesmo.
Foi um pouco estranho perceber que sua esposa tinha uma faca na mão – uma faca de cozinha enorme e pontuda, que parecia até irreal ao ser empunhada pelas mãos pequenas e de dedos curtos daquela mulher. Foi como se tivesse passado um tempo enorme jogando sozinho, e de repente alguém viesse e dissesse que ele estava jogando errado o tempo todo. Era como de repente não saber mais quais eram as regras, e a sensação o deixou aturdido e contrariado. – Quem você ama? – ela perguntou uma vez mais, mas desta vez ele não viu qual era a expressão no rosto dela, os olhos fixos na arma afiada que balançava de modo inseguro na mão pequena e de dedos curtos que ele conhecia tão bem. Sentiu uma vontade maluca de parar de jogar, de desistir da brincadeira, de entrar em casa e tomar banho e trocar de roupa e jantar a comida quentinha que sua mãe havia preparado. Chegou a pensar de modo difuso em como era triste aquela cena, em como estava tudo errado, em como uma mão tão pequena e de dedos tão curtos não deveria jamais segurar uma faca tão enorme, ainda mais para usá-la contra seu marido. Mas foi um pensamento breve – logo tomado por outro, mais negro e mais terrível, que surgiu em sua mente como uma mancha de piche cobrindo todo o resto.
Não abriu a garrafa imediatamente, e não quis beber no bar, na presença daqueles homens estranhos que não tinham a menor idéia de quem era e do que tinha enfrentado. Saiu rapidamente, murmurando algo sobre o barman poder ficar com o troco, e não olhou para trás. Os passos, embora erráticos, eram firmes, e ele sabia o que queria encontrar, embora não exatamente onde seria possível encontrar o que procurava. Ouvia o som de um cão latindo ao longe, sentia o vento gelado em seu cabelo, mas não dava atenção a essas coisas, preocupado que estava com seus próprios problemas. Quando viu o lugar certo, deserto o suficiente para não esconder testemunhas e escuro o bastante para que não pudesse ver a si mesmo, sentiu-se brevemente tomado por um pouco de paz. Sentou-se com cuidado e certa afetação, como quem cumpre um velho e bem decorado ritual, e finalmente abriu a garrafa, com um movimento rápido de mão.
- Eu não amo ninguém – disse ele, com vontade, com satisfação, com um misto de orgulho e desprezo. A voz saiu quase sóbria, com uma convicção que surpreendeu a ele mesmo. Quem era ela para ameaçá-lo? Quem era essa mulher para tentar quebrar as regras de modo tão ridículo, tão insolente, pueril como um capítulo mal escrito de um livro barato? Ele era o homem da casa, o provedor, o mestre e senhor daquele lar. Não se ajoelharia. Olhou para o rosto transtornado da esposa, surpresa com a reviravolta, e sorriu com todos os dentes, abrindo os braços em um gesto de desafio. – Ninguém – repetiu, e avançou alguns passos, percebendo deliciado que a mulher recuava e gemia e começava a chorar e tremia da cabeça aos pés. Se ela não enxergava, ele a faria ver. Certamente que faria.
O primeiro gole da bebida caiu em sua garganta como uma bênção, e ele o sorveu com prazer e alívio. Foi bebendo gole após gole com sofreguidão, até sua boca arder e sua cabeça doer – e então parou, tossindo e apertando os olhos para fugir da sensação de sufocamento. Quando recuperou o fôlego, voltou a beber. E se manteve bebendo até a garrafa acabar, até perder os sentidos e adormecer sentado ali mesmo, sozinho, naquele canto escuro e anônimo onde ele era ninguém e ninguém o conhecia. De vez em quando, parava para tomar ar, e então via diante de seus olhos o rosto de sua mulher coberto de lágrimas, a mão pequena de dedos curtos levando a faca até o pescoço, e então o vermelho, céus, quanto vermelho, quanto sangue, e tudo tão estranho e tudo tão ridículo e tudo tão novo e assustador. Tudo tão errado, Deus, tão errado. Via tudo isso, e sacudia rápido a cabeça e bebia de novo. Em algum lugar longe, muito longe, o sol começava a surgir no horizonte.
- Quem você ama? – ela tinha perguntado, os olhos azuis vincados de vermelho, o queixo tremendo em um descompasso de raiva e dor. Ela não gritou aquelas palavras: na verdade, elas saíram de modo controlado, quase sereno, como se fossem uma mera formalidade – ou, melhor dizendo, como se sua única função fosse servir de pretexto para uma resposta já esperada, já conhecida, mas que necessitava ser concretizada, dita em voz alta. No fundo, tudo aquilo era por demais óbvio, e ele deveria ter percebido de imediato qual seria a conclusão daquela história. Mas a verdade é que ele não percebeu. Não percebeu nada.
A madrugada estava fria, e ele se viu forçado a fechar o sobretudo antes que o vento da diagonal congelasse seus ossos. Suas mãos estavam enregeladas, mas não o agradava a idéia de pô-las no bolso: parecia algo casual demais, despreocupado demais, uma atitude vazia demais para não ser percebida – não encaixava no contexto, enfim. Como não trazia consigo luvas, contentou-se em esfregar as palmas frias uma contra a outra, na tentativa de mantê-las aquecidas. Chegou a esfregar as mãos no sobretudo por um momento, mas isso trouxe uma lembrança à sua mente, e logo desistiu do gesto. O céu estava limpo, e as estrelas brilhavam belas acima de sua cabeça, mas ele não se deteve para contemplá-las, nem mesmo ergueu os olhos para um vislumbre rápido que fosse. Tinha pressa, embora não se dirigisse a lugar algum em especial, e não tinha tempo para pensar nessas coisas.
Devia ter percebido a armadilha. Diabos, não era isso mesmo que ela sempre fazia? Sempre tinha sido muito cômodo para ela vestir o véu de vítima, por que teria mudado de atitude de uma hora para a outra? Idiota, isso é o que ele era: um idiota completo. Entrou de cabeça no jogo dela, dançou conforme a música, e agora não adiantava mais se lamentar. Era tarde demais.
As ruas estavam desertas. Embora o sobretudo fechado fosse efetivo no sentido de aquecer seu corpo, suas mãos sofriam, e os cabelos se desarrumavam com o vento gelado. Lamentou a pressa com que tivera que sair de casa, e a confusão mental que o impediu de pegar as luvas e colocar o chapéu. De fato, foi tudo tão rápido que nem mesmo tinha certeza de ter fechado a porta corretamente. Ficou imaginando os vizinhos alertados pelo barulho, curiosos se aglomerando na frente de seu apartamento, espremendo-se diante da porta aberta, vendo aquela cena, a bagunça, o sangue... Ah, era melhor não pensar naquelas coisas. Mais tarde, só bem mais tarde, trataria desse assunto. De qualquer modo, não pretendia mesmo voltar para casa, ao menos não antes do amanhecer. Havia algo que precisava fazer antes. Algo que não podia esperar.
Bem, na verdade era tudo perfeitamente explicável. Sim, ele havia bebido um bocado antes de voltar para casa, mas e daí? Um homem tem problemas a resolver, dificuldades que o afligem, estresses e incomodações; será tão absurdo assim tomar uns goles para relaxar, para amortecer o espírito e aliviar a cabeça? E, que diabos, ele nem tinha bebido tanto assim! Sim, estava bem entorpecido, mas tinha encontrado o caminho do lar com suas próprias pernas, não tinha? Ninguém tinha precisado carregá-lo, e ele ainda era dono de si quando abriu a porta e deparou-se com o olhar furioso da esposa. Ele não ia dizer nada, nada! Ia direto para o quarto, bem quietinho, sem falar bobagens e sem criar problemas. E, droga, ele não tinha prometido nunca mais levantar a mão para sua mulher? Então! Qual era o problema? Se ele ainda tirasse dinheiro de casa para pagar suas bebedeiras, mas não! Ele ganhava bem, e nunca tinha faltado um centavo que fosse para as compras, para as prestações do apartamento ou para o que quer que fosse. Diabos, o que mais ela queria? Um homem não tinha direito a embebedar-se de vez em quando?
Fosse como fosse, estava sóbrio agora. Bem sóbrio. E essa situação não o agradava. Tinha que fazer algo a respeito com urgência. Um relógio eletrônico erguia-se um pouco longe no horizonte: quatro e treze da manhã. Diabos, era tarde. Mas ele acharia algum lugar aberto. Precisava achar. Se não achasse, ficaria pensando no que ocorreu, e isso era tudo que não queria, que não podia fazer no momento. Atravessou uma rua vazia, chutou um copo plástico vazio caído no chão, e cruzou a esquina na esperança de encontrar luzes acesas, som de vozes, qualquer indício da fugaz alegria que move os homens. Encontrou apenas outra rua vazia, com a mesma luz difusa das lâmpadas de néon e as mesmas portas cerradas e as mesmas janelas trancadas. Suspirou alto, mas não parou de andar: andar era tudo que restava a ele naquele momento.
- Quem você ama? – foi tudo o que ela perguntou, os olhos faiscando de ódio, o rosto bonito e ainda jovem transformado em algo estranho e ameaçador. Ele não lembrava de ter visto tanta amargura no rosto dela antes – nem mesmo nas manhãs mais cinzentas, sequência das noites em que perdia o controle e ia além das palavras ríspidas habituais. Era mais do que simples raiva ou desespero, expressões que ele conhecia muito bem depois de tantas noites como aquela – era algo novo, algo diferente, algo que o deixou imediatamente alerta e que o fez hesitar na soleira da porta. – Quem você ama? – ela perguntou de novo, e de algum modo fez ainda menos sentido do que da primeira vez. Ele chegou a abrir a boca para perguntar, para tentar entender que diabos ela queria saber, tentar fazer algum sentido sair daquele rosto e daquela pergunta e daquela amargura toda, mas não conseguiu dizer nada, pois foi naquele momento que ele viu. E que tudo ficou definitivamente caótico e fora de controle.
Viu uma luz ao longe, depois de atravessar uma rua negra como a morte e pisar com força em uma poça de água, o que trouxe ao seu corpo já castigado pelo frio o tormento adicional de uma meia molhada. Foi essa luz que finalmente trouxe alguma animação a seu espírito, e uma sombra de sorriso surgiu em seu rosto. Acelerou o passo, quase correu, na verdade – não que fosse necessário, pois o bar estava aberto e não iria fechar tão cedo, pela aparência da coisa. Dois fregueses habituais, daqueles que fogem de casa nas madrugadas e ocupam sempre a mesma mesa, estavam com copos cheios e não pareciam cogitar seriamente a possibilidade de irem embora. No balcão, um homem de barba mal feita contava empolgadamente uma história de cães vadios e latas de lixo a um barman pouco receptivo, que preferia se concentrar em alguns copos que acabara de lavar. Aparentemente, os copos precisavam ser secos, e isso precisava ser feito de maneira muito lenta e bastante escrupulosa. Nem mesmo o pedido do recém chegado freguês no balcão o tirou do momento meditativo, e só com a insistência um tanto agoniada do homem o barman foi retirado de sua distração, se pondo a pegar de modo um tanto desanimado uma garrafa já meio empoeirada no topo da estante. – Não, eu vou levar a garrafa – disse o homem quando o barman fez menção de servi-lo. – É meio caro – disse o barman, olhando de lado, e o homem disse que não fazia diferença. Mesmo porque não fazia mesmo.
Foi um pouco estranho perceber que sua esposa tinha uma faca na mão – uma faca de cozinha enorme e pontuda, que parecia até irreal ao ser empunhada pelas mãos pequenas e de dedos curtos daquela mulher. Foi como se tivesse passado um tempo enorme jogando sozinho, e de repente alguém viesse e dissesse que ele estava jogando errado o tempo todo. Era como de repente não saber mais quais eram as regras, e a sensação o deixou aturdido e contrariado. – Quem você ama? – ela perguntou uma vez mais, mas desta vez ele não viu qual era a expressão no rosto dela, os olhos fixos na arma afiada que balançava de modo inseguro na mão pequena e de dedos curtos que ele conhecia tão bem. Sentiu uma vontade maluca de parar de jogar, de desistir da brincadeira, de entrar em casa e tomar banho e trocar de roupa e jantar a comida quentinha que sua mãe havia preparado. Chegou a pensar de modo difuso em como era triste aquela cena, em como estava tudo errado, em como uma mão tão pequena e de dedos tão curtos não deveria jamais segurar uma faca tão enorme, ainda mais para usá-la contra seu marido. Mas foi um pensamento breve – logo tomado por outro, mais negro e mais terrível, que surgiu em sua mente como uma mancha de piche cobrindo todo o resto.
Não abriu a garrafa imediatamente, e não quis beber no bar, na presença daqueles homens estranhos que não tinham a menor idéia de quem era e do que tinha enfrentado. Saiu rapidamente, murmurando algo sobre o barman poder ficar com o troco, e não olhou para trás. Os passos, embora erráticos, eram firmes, e ele sabia o que queria encontrar, embora não exatamente onde seria possível encontrar o que procurava. Ouvia o som de um cão latindo ao longe, sentia o vento gelado em seu cabelo, mas não dava atenção a essas coisas, preocupado que estava com seus próprios problemas. Quando viu o lugar certo, deserto o suficiente para não esconder testemunhas e escuro o bastante para que não pudesse ver a si mesmo, sentiu-se brevemente tomado por um pouco de paz. Sentou-se com cuidado e certa afetação, como quem cumpre um velho e bem decorado ritual, e finalmente abriu a garrafa, com um movimento rápido de mão.
- Eu não amo ninguém – disse ele, com vontade, com satisfação, com um misto de orgulho e desprezo. A voz saiu quase sóbria, com uma convicção que surpreendeu a ele mesmo. Quem era ela para ameaçá-lo? Quem era essa mulher para tentar quebrar as regras de modo tão ridículo, tão insolente, pueril como um capítulo mal escrito de um livro barato? Ele era o homem da casa, o provedor, o mestre e senhor daquele lar. Não se ajoelharia. Olhou para o rosto transtornado da esposa, surpresa com a reviravolta, e sorriu com todos os dentes, abrindo os braços em um gesto de desafio. – Ninguém – repetiu, e avançou alguns passos, percebendo deliciado que a mulher recuava e gemia e começava a chorar e tremia da cabeça aos pés. Se ela não enxergava, ele a faria ver. Certamente que faria.
O primeiro gole da bebida caiu em sua garganta como uma bênção, e ele o sorveu com prazer e alívio. Foi bebendo gole após gole com sofreguidão, até sua boca arder e sua cabeça doer – e então parou, tossindo e apertando os olhos para fugir da sensação de sufocamento. Quando recuperou o fôlego, voltou a beber. E se manteve bebendo até a garrafa acabar, até perder os sentidos e adormecer sentado ali mesmo, sozinho, naquele canto escuro e anônimo onde ele era ninguém e ninguém o conhecia. De vez em quando, parava para tomar ar, e então via diante de seus olhos o rosto de sua mulher coberto de lágrimas, a mão pequena de dedos curtos levando a faca até o pescoço, e então o vermelho, céus, quanto vermelho, quanto sangue, e tudo tão estranho e tudo tão ridículo e tudo tão novo e assustador. Tudo tão errado, Deus, tão errado. Via tudo isso, e sacudia rápido a cabeça e bebia de novo. Em algum lugar longe, muito longe, o sol começava a surgir no horizonte.
terça-feira, 17 de julho de 2012
Do tempo que achavam que eu era colorado
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_303" align="alignleft" width="225" caption="Foto: Ingo Wilges"][/caption]
Publicado originalmente em 29 de junho de 2007
Como imagino que a essa altura muitos de vocês já saibam, sou gremista. Muito já sorri em nome do Grêmio, muito já xinguei, gritei, desanimei, sofri. Gremismo que eu herdei do meu pai, tricolor convicto, que acompanhou o clube por anos a fio e tinha uma série de itens referentes ao clube – alguns deles eu ainda guardo comigo, inclusive. Resumindo, sou do lado azul, preto e branco do Rio Grande, e assim será até o fim.
Pois bem, tinha um vizinho meu que achava que eu era colorado. Na verdade, não é que ele achasse: ele tinha certeza, absoluta e inquebrantável, de que eu era um torcedor do Internecional. Tratava-se de um senhor já velho e enfraquecido, que por ser provavelmente vítima de algum derrame ou reumatismo caminhava muito devagar e tinha que se segurar no que encontrasse pelo caminho para manter o equilíbrio. Morava num apartamento de térreo (como nosso condomínio não tem elevadores, nem poderia ser diferente), possivelmente sozinho – embora recebesse visitas constantes do filho, que o levava para o que certamente eram sessões de tratamento para qual fosse a moléstia que tinha. Falava meio baixo, arrastando a voz mas tinha um vocabulário razoavelmente rico, sinal de que era alguém estudado e culto. E colorado. Bem colorado.
Sabe-se lá de onde ele tirou a idéia de que eu era colorado também. Um dia, entretido em levar o cachorro da família para passear, cruzei pelo senhor em questão, que caminhava muito lentamente segurando as grades de ferro do jardim externo de seu edifício. Civilizadamente, cumprimento o homem e sigo meu caminho. Minutos depois, enquanto eu voltava pelo caminho de pouco antes, ele - que devia ter avançado menos de cinco metros entre minha ida e meu regresso - olha para mim e diz: “e esse Fernandão que contrataram, será que é bom mesmo?”. Pensei com meus botões que não faria mal algum dar um pouco de conversa para aquele senhor e disse que sim, o Fernandão era uma boa contratação, me parecia um jogador qualificado e por aí vai. Ele ficou muito contente de ouvir minhas considerações superficiais sobre o atleta, e quando me retirei fui cumprimentado com certa reverência, como se fosse um especialista em futebol e não um palpiteiro qualquer. Um evento ligeiramente curioso, mas enfim, vida que segue.
A partir daí, sempre que me via o senhor puxava assunto sobre o Internacional. Até aí tudo bem: mesmo não acompanhando o Inter com tanta dedicação, eu disfarçava, respondia do jeito que podia e íamos levando. Até que um dia aquele vagaroso senhor me cumprimenta como de praxe e diz “e aí, rapaz, e o nosso time?” antes de tecer uma consideração qualquer sobre a derrota colorada daquele fim de semana.
Imediatamente soou o alarme em minha mente, e percebi que o senhor não só achava que eu entendia horrores de futebol, mas que eu era um coloradaço de quatro costados, um entusiasta da camisa vermelha, talvez um frequentador assíduo da coreia, mas de qualquer modo um torcedor fiel e resoluto do Internacional. Na hora, cheguei a abrir a boca para dizer “alto lá, sou gremista” ou qualquer coisa de efeito semelhante, mas algo me deteve. Não sei o que foi, sinceramente – se foi pena de deixar o velho sem graça, se foi a vontade de evitar que eu mesmo ficasse sem graça ou qualquer outra coisa relativa a esses prováveis constrangimentos. O fato foi que eu respondi alguma coisa qualquer, disfarcei meu desconforto do jeito que pude e a conversa seguiu o seu amistoso rumo habitual.
Durante quase dois anos a rotina acabou sendo mais ou menos isso aí: eu saía de casa por algum motivo, encontrava o velho senhor que caminhava devagar e ficava uns dois ou três minutos fazendo o possível para que ele não percebesse que o colorado com o qual ele falava era na verdade um gremista sincero e convicto. Em minha defesa, fique registrado que nunca disse ser colorado ou fiz algo consciente no sentido de reforçar a opinião que o cidadão nutria a meu respeito: apenas respondia as perguntas com cordialidade, discorrendo sobre contratações e técnicos e posições em campeonatos. Nunca soube o nome dele, e tenho certeza que ele nunca me perguntou o meu. Éramos dois quase desconhecidos, unidos apenas pela proximidade das residências e pelo assunto Internacional. À época, o Grêmio lamentavelmente havia embarcado no Trovão Azul e viajado rumo ao Buraco do Amor da segunda divisão, e às vezes até se comentava em nossas conversas algo sobre o tricolor da Azenha – situações onde, evidentemente, eu era bem mais comunicativo e demonstrava muito mais entusiasmo nos comentários. De qualquer modo, duvido que ele, por um momento que seja, tenha achado que eu era outra coisa que não torcedor do Inter – e por muito tempo me vi eventualmente submetido a esse pequeno e inofensivo constrangimento.
Até que um dia o senhor sumiu. Demorou um pouco para eu me dar conta de seu desaparecimento: por acaso, enquanto eu voltava para casa um dia desses, me ocorreu a lembrança do senhor andando devagar que achava que eu era colorado e que eu nunca mais tinha visto, e fiquei me perguntando o que teria acontecido com ele. Na verdade, me pergunto até agora – só o que eu sei é que ele não mora mais no condomínio: o apartamento que era dele agora pertence a um jovem casal, que eu não sei quem são e que passam por mim e, por não me conhecerem, não me cumprimentam. Das duas, uma: ou o já bastante velho senhor tornou-se plenamente incapaz de morar sozinho e foi colocado em alguma clínica ou asilo, ou então morreu sem que sua passagem causasse maior comoção na vizinhança, não chegando assim o fato ao meu conhecimento. Não sei se ele teve a chance de acompanhar seu clube sendo campeão da América e do Mundo, ou se pôde recentemente vibrar com a conquista da Recopa. A verdade, enfim, é que não sei o que foi feito dele, e duvido muito que eu um dia volte a rever o velhinho que andava devagar e via em mim um companheiro na paixão pelo Internacional.
E agora me pergunto: será que eu deveria ter dito a ele que eu era gremista? Teria feito alguma diferença saber que o colorado de barba ruiva com o qual ele conversava na frente do seu prédio era na verdade um torcedor do Grêmio? Ou quem sabe ele até desconfiasse, mas mantivesse a farsa não-anunciada que havia entre nós pelo simples prazer de um dedo de prosa? Não sei, e não vou saber nunca. Mas é engraçado como as pessoas passam pelas nossas vidas e, mesmo que no fundo não tenham maior importância, acabam deixando sua marca, por mais indistinta que seja. Mesmo que eu encarasse as conversas como não mais do que um leve incômodo que não valia a pena desfazer, e que na verdade nunca tenha dado ao velho importância suficiente a ponto de perguntar qual era o seu nome, ele fez diferença – e daqui por diante sempre vou lembrar que, para pelo menos uma pessoa nesse mundo, eu era um colorado. Sabe lá Deus como, mas eu era. Espero que, de algum modo, tenha valido a pena.
Publicado originalmente em 29 de junho de 2007
Como imagino que a essa altura muitos de vocês já saibam, sou gremista. Muito já sorri em nome do Grêmio, muito já xinguei, gritei, desanimei, sofri. Gremismo que eu herdei do meu pai, tricolor convicto, que acompanhou o clube por anos a fio e tinha uma série de itens referentes ao clube – alguns deles eu ainda guardo comigo, inclusive. Resumindo, sou do lado azul, preto e branco do Rio Grande, e assim será até o fim.
Pois bem, tinha um vizinho meu que achava que eu era colorado. Na verdade, não é que ele achasse: ele tinha certeza, absoluta e inquebrantável, de que eu era um torcedor do Internecional. Tratava-se de um senhor já velho e enfraquecido, que por ser provavelmente vítima de algum derrame ou reumatismo caminhava muito devagar e tinha que se segurar no que encontrasse pelo caminho para manter o equilíbrio. Morava num apartamento de térreo (como nosso condomínio não tem elevadores, nem poderia ser diferente), possivelmente sozinho – embora recebesse visitas constantes do filho, que o levava para o que certamente eram sessões de tratamento para qual fosse a moléstia que tinha. Falava meio baixo, arrastando a voz mas tinha um vocabulário razoavelmente rico, sinal de que era alguém estudado e culto. E colorado. Bem colorado.
Sabe-se lá de onde ele tirou a idéia de que eu era colorado também. Um dia, entretido em levar o cachorro da família para passear, cruzei pelo senhor em questão, que caminhava muito lentamente segurando as grades de ferro do jardim externo de seu edifício. Civilizadamente, cumprimento o homem e sigo meu caminho. Minutos depois, enquanto eu voltava pelo caminho de pouco antes, ele - que devia ter avançado menos de cinco metros entre minha ida e meu regresso - olha para mim e diz: “e esse Fernandão que contrataram, será que é bom mesmo?”. Pensei com meus botões que não faria mal algum dar um pouco de conversa para aquele senhor e disse que sim, o Fernandão era uma boa contratação, me parecia um jogador qualificado e por aí vai. Ele ficou muito contente de ouvir minhas considerações superficiais sobre o atleta, e quando me retirei fui cumprimentado com certa reverência, como se fosse um especialista em futebol e não um palpiteiro qualquer. Um evento ligeiramente curioso, mas enfim, vida que segue.
A partir daí, sempre que me via o senhor puxava assunto sobre o Internacional. Até aí tudo bem: mesmo não acompanhando o Inter com tanta dedicação, eu disfarçava, respondia do jeito que podia e íamos levando. Até que um dia aquele vagaroso senhor me cumprimenta como de praxe e diz “e aí, rapaz, e o nosso time?” antes de tecer uma consideração qualquer sobre a derrota colorada daquele fim de semana.
Imediatamente soou o alarme em minha mente, e percebi que o senhor não só achava que eu entendia horrores de futebol, mas que eu era um coloradaço de quatro costados, um entusiasta da camisa vermelha, talvez um frequentador assíduo da coreia, mas de qualquer modo um torcedor fiel e resoluto do Internacional. Na hora, cheguei a abrir a boca para dizer “alto lá, sou gremista” ou qualquer coisa de efeito semelhante, mas algo me deteve. Não sei o que foi, sinceramente – se foi pena de deixar o velho sem graça, se foi a vontade de evitar que eu mesmo ficasse sem graça ou qualquer outra coisa relativa a esses prováveis constrangimentos. O fato foi que eu respondi alguma coisa qualquer, disfarcei meu desconforto do jeito que pude e a conversa seguiu o seu amistoso rumo habitual.
Durante quase dois anos a rotina acabou sendo mais ou menos isso aí: eu saía de casa por algum motivo, encontrava o velho senhor que caminhava devagar e ficava uns dois ou três minutos fazendo o possível para que ele não percebesse que o colorado com o qual ele falava era na verdade um gremista sincero e convicto. Em minha defesa, fique registrado que nunca disse ser colorado ou fiz algo consciente no sentido de reforçar a opinião que o cidadão nutria a meu respeito: apenas respondia as perguntas com cordialidade, discorrendo sobre contratações e técnicos e posições em campeonatos. Nunca soube o nome dele, e tenho certeza que ele nunca me perguntou o meu. Éramos dois quase desconhecidos, unidos apenas pela proximidade das residências e pelo assunto Internacional. À época, o Grêmio lamentavelmente havia embarcado no Trovão Azul e viajado rumo ao Buraco do Amor da segunda divisão, e às vezes até se comentava em nossas conversas algo sobre o tricolor da Azenha – situações onde, evidentemente, eu era bem mais comunicativo e demonstrava muito mais entusiasmo nos comentários. De qualquer modo, duvido que ele, por um momento que seja, tenha achado que eu era outra coisa que não torcedor do Inter – e por muito tempo me vi eventualmente submetido a esse pequeno e inofensivo constrangimento.
Até que um dia o senhor sumiu. Demorou um pouco para eu me dar conta de seu desaparecimento: por acaso, enquanto eu voltava para casa um dia desses, me ocorreu a lembrança do senhor andando devagar que achava que eu era colorado e que eu nunca mais tinha visto, e fiquei me perguntando o que teria acontecido com ele. Na verdade, me pergunto até agora – só o que eu sei é que ele não mora mais no condomínio: o apartamento que era dele agora pertence a um jovem casal, que eu não sei quem são e que passam por mim e, por não me conhecerem, não me cumprimentam. Das duas, uma: ou o já bastante velho senhor tornou-se plenamente incapaz de morar sozinho e foi colocado em alguma clínica ou asilo, ou então morreu sem que sua passagem causasse maior comoção na vizinhança, não chegando assim o fato ao meu conhecimento. Não sei se ele teve a chance de acompanhar seu clube sendo campeão da América e do Mundo, ou se pôde recentemente vibrar com a conquista da Recopa. A verdade, enfim, é que não sei o que foi feito dele, e duvido muito que eu um dia volte a rever o velhinho que andava devagar e via em mim um companheiro na paixão pelo Internacional.
E agora me pergunto: será que eu deveria ter dito a ele que eu era gremista? Teria feito alguma diferença saber que o colorado de barba ruiva com o qual ele conversava na frente do seu prédio era na verdade um torcedor do Grêmio? Ou quem sabe ele até desconfiasse, mas mantivesse a farsa não-anunciada que havia entre nós pelo simples prazer de um dedo de prosa? Não sei, e não vou saber nunca. Mas é engraçado como as pessoas passam pelas nossas vidas e, mesmo que no fundo não tenham maior importância, acabam deixando sua marca, por mais indistinta que seja. Mesmo que eu encarasse as conversas como não mais do que um leve incômodo que não valia a pena desfazer, e que na verdade nunca tenha dado ao velho importância suficiente a ponto de perguntar qual era o seu nome, ele fez diferença – e daqui por diante sempre vou lembrar que, para pelo menos uma pessoa nesse mundo, eu era um colorado. Sabe lá Deus como, mas eu era. Espero que, de algum modo, tenha valido a pena.
terça-feira, 3 de julho de 2012
No one ever thought this one would survive
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_298" align="alignleft" width="200" caption="Foto: Joel Knutson"][/caption]
É fato: ninguém imaginava que aquele moleque fosse sobreviver. Nasceu fraco e errado, moveu-se de forma indecisa pelos primeiros dias, parecia que ia cair de cara no chão a cada passo. Sempre calado. Sempre em dúvida, como quem não entende como as coisas funcionam no mundo. Não que não tenhamos tentado explicar: muitas e muitas vezes mostramos como as coisas eram, que era preciso fazer isso e aquilo, ser desse jeito e desse jeito, dizer isso, fazer aquilo, pensar pouco, andar. Em frente.
Mas não andava, o moleque. Ficava ali no canto, sentado, sozinho. Não fazia barulho. Imagina isso, um moleque que não faz barulho? Não tem como dar certo. Sei lá, parecia sempre meio assustado. Um moleque que tinha medo de tudo e em nada se encaixava. Era ridículo até, às vezes. E seguia tropeçando, seguia sem saber onde ir, o que dizer. Sem saber mentir.
Pensando bem, talvez fosse esse o problema. O moleque não sabia mentir. Até tentava, mas se enrolava todo, ficava confuso, tropeçava nas palavras e reações como quem tropeça nos próprios pés. Ficava pouco convincente. Fácil de desmascarar. Dava vontade de olhar para outro lado, sabe? Fingir que não estava vendo aquele moleque todo atrapalhado, incapaz de fingir, de se ajustar. Era dolorido de ver. E ele percebia que não estava dando certo, levantava e ia lá para o canto de novo. Ficava sozinho, meio cabisbaixo, murmurando alguma coisa que nunca entendi o que fosse. Talvez uma música, sei lá. Meio desafinado. Sozinho, ele e ele mesmo.
Não tinha como dar certo. E mesmo assim o moleque foi crescendo, ficando mais velho, virando adulto. Quer dizer, adulto não, que isso ele nunca foi. Não dá para chamar de adulto alguém incapaz de assumir responsabilidades. De ter um bom emprego, de ter amigos, ficar elegante, bonito. De ter várias garotas. Fazer sucesso. Crescer. Ter coisas. Como é que vai se chamar de adulto alguém que não consegue nada disso? Imaturo, isso sim. Nunca deixou de ser moleque e nunca vai deixar. Sempre com medo, sempre impressionado com as coisas do mundo. Não tem como.
Mesmo assim, sabe-se lá como, está aí. Vivo. Achamos todos que a qualquer momento, em qualquer dia desses, estaríamos em fila para colocar rosas na sua sepultura, dizendo que rapaz insistente, sempre tão perdido na vida, nunca se encaixou mas vá lá, que descanse, foi melhor assim, amém. Mas ele seguiu tropeçando, mancando, mentindo mal, desistindo de mentir. Seguiu. Sempre andando uma batida para trás - e depois, sabe lá Deus como, dando alguns passos para a frente, como quem recupera o ritmo só para se confundir de novo, alguns compassos adiante. E mesmo assim a música sai. E mesmo assim o moleque sobrevive.
Confesso que isso me confunde.
É fato: ninguém imaginava que aquele moleque fosse sobreviver. Nasceu fraco e errado, moveu-se de forma indecisa pelos primeiros dias, parecia que ia cair de cara no chão a cada passo. Sempre calado. Sempre em dúvida, como quem não entende como as coisas funcionam no mundo. Não que não tenhamos tentado explicar: muitas e muitas vezes mostramos como as coisas eram, que era preciso fazer isso e aquilo, ser desse jeito e desse jeito, dizer isso, fazer aquilo, pensar pouco, andar. Em frente.
Mas não andava, o moleque. Ficava ali no canto, sentado, sozinho. Não fazia barulho. Imagina isso, um moleque que não faz barulho? Não tem como dar certo. Sei lá, parecia sempre meio assustado. Um moleque que tinha medo de tudo e em nada se encaixava. Era ridículo até, às vezes. E seguia tropeçando, seguia sem saber onde ir, o que dizer. Sem saber mentir.
Pensando bem, talvez fosse esse o problema. O moleque não sabia mentir. Até tentava, mas se enrolava todo, ficava confuso, tropeçava nas palavras e reações como quem tropeça nos próprios pés. Ficava pouco convincente. Fácil de desmascarar. Dava vontade de olhar para outro lado, sabe? Fingir que não estava vendo aquele moleque todo atrapalhado, incapaz de fingir, de se ajustar. Era dolorido de ver. E ele percebia que não estava dando certo, levantava e ia lá para o canto de novo. Ficava sozinho, meio cabisbaixo, murmurando alguma coisa que nunca entendi o que fosse. Talvez uma música, sei lá. Meio desafinado. Sozinho, ele e ele mesmo.
Não tinha como dar certo. E mesmo assim o moleque foi crescendo, ficando mais velho, virando adulto. Quer dizer, adulto não, que isso ele nunca foi. Não dá para chamar de adulto alguém incapaz de assumir responsabilidades. De ter um bom emprego, de ter amigos, ficar elegante, bonito. De ter várias garotas. Fazer sucesso. Crescer. Ter coisas. Como é que vai se chamar de adulto alguém que não consegue nada disso? Imaturo, isso sim. Nunca deixou de ser moleque e nunca vai deixar. Sempre com medo, sempre impressionado com as coisas do mundo. Não tem como.
Mesmo assim, sabe-se lá como, está aí. Vivo. Achamos todos que a qualquer momento, em qualquer dia desses, estaríamos em fila para colocar rosas na sua sepultura, dizendo que rapaz insistente, sempre tão perdido na vida, nunca se encaixou mas vá lá, que descanse, foi melhor assim, amém. Mas ele seguiu tropeçando, mancando, mentindo mal, desistindo de mentir. Seguiu. Sempre andando uma batida para trás - e depois, sabe lá Deus como, dando alguns passos para a frente, como quem recupera o ritmo só para se confundir de novo, alguns compassos adiante. E mesmo assim a música sai. E mesmo assim o moleque sobrevive.
Confesso que isso me confunde.
quarta-feira, 27 de junho de 2012
A coleta
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_290" align="alignleft" width="300" caption="Foto: Alexandre Pereira"][/caption]
A gente não imagina as lições, os milagres silenciosos, as situações cheias de vida e nobreza que ocorrem em torno de uma lata de lixo.
Como da vez em que eu esperava do lado de fora de um café do centro da grande cidade, sem vontade de aguardar sentado pela chegada da pessoa que me acompanharia em espressos e conversas em um comecinho de tarde. O sol era agrádavel, a temperatura amena, e eu fiquei de pé ali na travessa, mãos nos bolsos, uma música nos ouvidos, apreciando as pessoas que passavam e pensando nas vidas e histórias por trás de cada uma delas. Passavam em profusão, as histórias que nunca conhecerei, apressadas em ir e voltar do trabalho, do estudo, dos amigos, amantes, compromissos, vivências. Alguma se revelaria, disso eu sabia. Sempre acontece.
E aconteceu. Veio a vida nos passos de um homem de chinelos de dedo e roupas surradas, arrastando um carrinho de mão cheio de papelão e garrafas plásticas. Veio meio cansado já, arrastando os pés, mas empurrando o peso de forma convicta rumo ao próximo passo e ao próximo e mais um e mais um e mais um. E foi indo até ficar ao lado da pequena lata de lixo no meio da rua exclusiva para pedestres, até deter seu passo diante da pequena cesta e, curioso, olhar e cutucar dentro dela em busca de algo.
Achei que seria uma lata de refrigerante vazia. Acabou sendo um copo pela metade de iogurte de morango.
Olhou, olhou de novo, cheirou rapidamente, provou.
Bebeu.
E logo atrás dele vinha sua companheira, igualmente pobre e suja, andando de forma igualmente devagar e firme. Trazia na mão alguns pedaços de material reciclado, que colocou em um saco de estopa antes branco, agora cinza escurecido.
Nada disseram um ao outro. Apenas se olharam rapidamente. O homem fez um gesto de cabeça, estendeu o copo de iogurte achado em meio ao lixo. Com uma naturalidade que até mesmo agora, transformada em mera lembrança, ainda me impressiona, a mulher tomou o copo para si. Bebeu um longo gole. Fez menção de devolvê-lo ao homem que o havia encontrado. Não, já bebi, li os lábios do homem dizerem.
E saíram os dois lado a lado, a mulher com uma mão na cintura do homem, a outra segurando o copo de iogurte. Juntos. E fiquei eu ali parado na rua em frente ao café, mãos nos bolsos, pensando naquelas duas vidas que existiram tão brevemente diante dos meus olhos. Pensando em como os que nada têm, muitas vezes, carregam consigo mais do que se possa imaginar. Mesmo que, no fim das contas, carreguem apenas um ao outro no coração da cidade cinza.
A gente não imagina as lições, os milagres silenciosos, as situações cheias de vida e nobreza que ocorrem em torno de uma lata de lixo.
Como da vez em que eu esperava do lado de fora de um café do centro da grande cidade, sem vontade de aguardar sentado pela chegada da pessoa que me acompanharia em espressos e conversas em um comecinho de tarde. O sol era agrádavel, a temperatura amena, e eu fiquei de pé ali na travessa, mãos nos bolsos, uma música nos ouvidos, apreciando as pessoas que passavam e pensando nas vidas e histórias por trás de cada uma delas. Passavam em profusão, as histórias que nunca conhecerei, apressadas em ir e voltar do trabalho, do estudo, dos amigos, amantes, compromissos, vivências. Alguma se revelaria, disso eu sabia. Sempre acontece.
E aconteceu. Veio a vida nos passos de um homem de chinelos de dedo e roupas surradas, arrastando um carrinho de mão cheio de papelão e garrafas plásticas. Veio meio cansado já, arrastando os pés, mas empurrando o peso de forma convicta rumo ao próximo passo e ao próximo e mais um e mais um e mais um. E foi indo até ficar ao lado da pequena lata de lixo no meio da rua exclusiva para pedestres, até deter seu passo diante da pequena cesta e, curioso, olhar e cutucar dentro dela em busca de algo.
Achei que seria uma lata de refrigerante vazia. Acabou sendo um copo pela metade de iogurte de morango.
Olhou, olhou de novo, cheirou rapidamente, provou.
Bebeu.
E logo atrás dele vinha sua companheira, igualmente pobre e suja, andando de forma igualmente devagar e firme. Trazia na mão alguns pedaços de material reciclado, que colocou em um saco de estopa antes branco, agora cinza escurecido.
Nada disseram um ao outro. Apenas se olharam rapidamente. O homem fez um gesto de cabeça, estendeu o copo de iogurte achado em meio ao lixo. Com uma naturalidade que até mesmo agora, transformada em mera lembrança, ainda me impressiona, a mulher tomou o copo para si. Bebeu um longo gole. Fez menção de devolvê-lo ao homem que o havia encontrado. Não, já bebi, li os lábios do homem dizerem.
E saíram os dois lado a lado, a mulher com uma mão na cintura do homem, a outra segurando o copo de iogurte. Juntos. E fiquei eu ali parado na rua em frente ao café, mãos nos bolsos, pensando naquelas duas vidas que existiram tão brevemente diante dos meus olhos. Pensando em como os que nada têm, muitas vezes, carregam consigo mais do que se possa imaginar. Mesmo que, no fim das contas, carreguem apenas um ao outro no coração da cidade cinza.
quinta-feira, 21 de junho de 2012
Dois passarinhos e as causas perdidas
Postado por
Igor Natusch
[caption id="attachment_284" align="alignleft" width="300" caption="Foto: zoetnet / flickr"][/caption]
Publicado originalmente em 03 de junho de 2008
Há várias semanas, encontrei um passarinho caído no meio-fio, morrendo. Eu estava na parada de ônibus, esperando para ir para casa – devia ser umas seis e meia de um sábado ou domingo, e estava chovendo um chuva fraquinha, daquelas que mais incomodam do que molham de fato. Estava lá, sozinho, distraído com meu mp3 player e meus pensamentos, quando vi com o canto do olho um movimento no meio das folhas secas caídas na sarjeta. Sou curioso, sempre fui; e quando me abaixei para ver o que era, pude ver que era um passarinho bem pequeno, todo molhado e tremendo de frio. Parecia ser bem novo, talvez um bichinho que tinha caído do ninho e não tinha condições de voltar sozinho para lá. Olhei para a árvore logo acima de nós: pelo menos uns cinco ou seis metros de altura nos separavam dos galhos mais baixos, de modo que qualquer tentativa de colocar a criaturinha de volta no ninho, estivesse ele onde estivesse, seria uma perda de tempo.
O bichinho estava, portanto, condenado – e talvez seja excesso de sentimentalismo meu, mas acho que ele mesmo já tinha percebido isso muito claramente. Soltava uns sons meio lamentosos e tinha um ar de desânimo muito particular, levemente ofendido, como se julgasse a si mesmo vítima de uma brincadeira muito sem graça. Não estava exatamente ferido, mas não tinha a menor chance de sair sozinho daquela situação em que estava – e, depois de breve reflexão, percebi que eu mesmo não podia fazer nada para ajudá-lo. Desliguei o aparelho de mp3, me abaixei um pouco mais e fiquei olhando para o bichinho, pensando em algumas coisas - e sei lá por quê, me lembrei de uma coisa que aconteceu quando eu estava na quarta ou quinta série, e na qual não pensava há muitos e muitos anos.
Era um dia de muito sol, e eu e alguns amigos estávamos brincando no colégio onde estudávamos. Acho que a aula tinha acabado mais cedo, não lembro: eu sei que estávamos livres, sem ter o que fazer, e ficamos naquelas brincadeiras típicas de moleques de nove ou dez anos de idade. Alguns funcionários estavam reformando o telhado de um dos pavilhões onde tínhamos aula, e retirando coisas do forro para poderem prosseguir com seu trabalho, quando um deles achou um ninho entre a serragem e as telhas. No ninho, um pássaro magro, de olhos ainda fechados, com a boca escancarada e gritando por comida. Não sei que tipo de passarinho era, mas lembro claramente da imagem do bicho indefeso, sem uma única pena no corpo, pedindo um alimento que nunca ia chegar.
Ficamos, obviamente, com muita pena do pobre bicho, e um de nós perguntou para o homem que segurava a telha com o ninho se tinha um jeito de devolver o bichinho para sua mãe. Com a visão simples de vida dos homens rudes, ele nos desencorajou: a mãe não conseguiria mais encontrar o filhote e ele não teria como comer, então estava perdido e não havia o que pudesse ser feito por ele. Ficamos tristes, claro, mas aceitamos com certa resignação as palavras do adulto que sentenciava a morte do passarinho – menos um de nós, que decidiu que não ia deixar o bicho morrer de jeito nenhum. Lembro que o nome do menino era Christian – um moleque pobre, cheio de irmãos, que não se destacava de modo especial na nossa turma e que andava conosco mais por não ter com quem andar do que por qualquer outra coisa. Fosse como fosse, tomou o ninho nas mãos e colocou-se na tarefa de salvar a vida do passarinho condenado: fez alguns afagos na cabeça do bicho, amassou minhocas para que ele comesse e até mesmo subiu em uma árvore, procurando um galho firme para colocar o ninho antes de ir embora. O homem que falou conosco tentou desmotivá-lo ao esforço inútil, mas logo desistiu – não sei se percebeu que o menino teria que aprender sozinho sua lição ou se apenas estava ocupado demais com as próprias tarefas para continuar envolvido com aquela história.
Lembro que fiquei olhando aquilo com certo distanciamento – talvez vocês não acreditem, mas sempre fui uma pessoa meio realista demais, desde muito jovem, e alguma coisa me dizia já naquele momento que o esforço do meu amigo seria inútil. Acho que ajudei ele um pouco, mas sem muito entusiasmo – se bem me lembro, os outros moleques presentes também não viam aquilo como algo muito divertido, para ser honesto. Mas o menino estava determinado de uma maneira que eu nunca tinha visto; e quando finalmente o sol começou a cair e fomos embora, ele disse que voltaria ao ninho, e que ia ajudar o bichinho a não morrer de fome. Acho que no outro dia o tal passarinho não estava mais lá; não sei se caiu do ninho, se foi devorado por algum outro bicho ou qualquer coisa do tipo. Seja como tenha sido, sumiu, o que encerrou o assunto. O tal Christian saiu do colégio em circunstâncias que não recordo e seguiu sua vida em algum lugar, de algum modo que eu não sei como foi; eu cresci, e agora estava lá, mais de quinze anos depois, agachado no meio-fio olhando para um passarinho que ia morrer, do mesmo modo que aquele outro tinha morrido, lá longe no passado.
Poderia dizer aqui que pensei na finitude da vida, em como tudo é frágil e dura tão pouco tempo e como no fundo nada disso faz diferença no grande plano que foi traçado (ou não) para nós e por aí vai. Mas seria mentira, porque na hora não pensei em nada disso: pensei, isso sim, em como devia ser desagradável morrer no meio da sujeira, molhado e longe de casa, e em como o pobre bicho deveria estar infeliz com aquilo tudo. Salvá-lo eu não podia; mas dar uma ajudinha a ele estava ao meu alcance e não me custaria nada. Meti a mão no bicho (que protestou mas sem muito entusiasmo), tirei ele daquele amontoado de folhas secas e restos de lixo e o coloquei num lugar um pouco mais seco – um canto coberto por algumas plantas e pedaços de madeira, onde a chuva não pingava diretamente nele. Desejei mentalmente boa sorte para o passarinho, limpei as mãos nas calças, virei as costas e fui pegar meu ônibus, sem olhar para trás. Não sei o que foi feito dele, mas posso imaginar como a história terminou.
Não sei exatamente por que resolvi escrever isso aqui. O fato em si já ocorreu faz algum tempo, já é notícia velha na minha vida, e passei um bom tempo sem pensar nele – só o recordei hoje, depois de um dia corrido de trabalho e de algumas conversas via internet. Não sei se a história tem uma moral, para ser honesto; mas, relembrando o que aconteceu e o que pensei durante o acontecimento, acho que finalmente entendi, muitos anos depois, o que levou meu amigo a agir como agiu naquela tarde ensolarada que hoje só existe na minha memória. Tolos fomos nós, de achar que ele queria salvar o passarinho; no fundo, talvez até de modo inconsciente, ele queria apenas dar uma ajuda para o bichinho. Talvez, nesse mundo de causas perdidas e de pequenas e grandes tragédias, isso seja tudo o que nos resta – dar uma mão para quem está por baixo, para que não seja tão ruim a sua jornada rumo ao momento final que espera por todos nós. Talvez o mundo fosse um pouquinho melhor se parássemos de querer salvá-lo com alguma fórmula mágica e passássemos apenas a dar uma ajudinha uns aos outros, para que no fim das contas o caminho de todo mundo ficasse menos chuvoso e pudéssemos, todos, ter um cantinho seco para morrer.
Não sei, não sei. Ando pensando em coisas estranhas ultimamente.
Publicado originalmente em 03 de junho de 2008
Há várias semanas, encontrei um passarinho caído no meio-fio, morrendo. Eu estava na parada de ônibus, esperando para ir para casa – devia ser umas seis e meia de um sábado ou domingo, e estava chovendo um chuva fraquinha, daquelas que mais incomodam do que molham de fato. Estava lá, sozinho, distraído com meu mp3 player e meus pensamentos, quando vi com o canto do olho um movimento no meio das folhas secas caídas na sarjeta. Sou curioso, sempre fui; e quando me abaixei para ver o que era, pude ver que era um passarinho bem pequeno, todo molhado e tremendo de frio. Parecia ser bem novo, talvez um bichinho que tinha caído do ninho e não tinha condições de voltar sozinho para lá. Olhei para a árvore logo acima de nós: pelo menos uns cinco ou seis metros de altura nos separavam dos galhos mais baixos, de modo que qualquer tentativa de colocar a criaturinha de volta no ninho, estivesse ele onde estivesse, seria uma perda de tempo.
O bichinho estava, portanto, condenado – e talvez seja excesso de sentimentalismo meu, mas acho que ele mesmo já tinha percebido isso muito claramente. Soltava uns sons meio lamentosos e tinha um ar de desânimo muito particular, levemente ofendido, como se julgasse a si mesmo vítima de uma brincadeira muito sem graça. Não estava exatamente ferido, mas não tinha a menor chance de sair sozinho daquela situação em que estava – e, depois de breve reflexão, percebi que eu mesmo não podia fazer nada para ajudá-lo. Desliguei o aparelho de mp3, me abaixei um pouco mais e fiquei olhando para o bichinho, pensando em algumas coisas - e sei lá por quê, me lembrei de uma coisa que aconteceu quando eu estava na quarta ou quinta série, e na qual não pensava há muitos e muitos anos.
Era um dia de muito sol, e eu e alguns amigos estávamos brincando no colégio onde estudávamos. Acho que a aula tinha acabado mais cedo, não lembro: eu sei que estávamos livres, sem ter o que fazer, e ficamos naquelas brincadeiras típicas de moleques de nove ou dez anos de idade. Alguns funcionários estavam reformando o telhado de um dos pavilhões onde tínhamos aula, e retirando coisas do forro para poderem prosseguir com seu trabalho, quando um deles achou um ninho entre a serragem e as telhas. No ninho, um pássaro magro, de olhos ainda fechados, com a boca escancarada e gritando por comida. Não sei que tipo de passarinho era, mas lembro claramente da imagem do bicho indefeso, sem uma única pena no corpo, pedindo um alimento que nunca ia chegar.
Ficamos, obviamente, com muita pena do pobre bicho, e um de nós perguntou para o homem que segurava a telha com o ninho se tinha um jeito de devolver o bichinho para sua mãe. Com a visão simples de vida dos homens rudes, ele nos desencorajou: a mãe não conseguiria mais encontrar o filhote e ele não teria como comer, então estava perdido e não havia o que pudesse ser feito por ele. Ficamos tristes, claro, mas aceitamos com certa resignação as palavras do adulto que sentenciava a morte do passarinho – menos um de nós, que decidiu que não ia deixar o bicho morrer de jeito nenhum. Lembro que o nome do menino era Christian – um moleque pobre, cheio de irmãos, que não se destacava de modo especial na nossa turma e que andava conosco mais por não ter com quem andar do que por qualquer outra coisa. Fosse como fosse, tomou o ninho nas mãos e colocou-se na tarefa de salvar a vida do passarinho condenado: fez alguns afagos na cabeça do bicho, amassou minhocas para que ele comesse e até mesmo subiu em uma árvore, procurando um galho firme para colocar o ninho antes de ir embora. O homem que falou conosco tentou desmotivá-lo ao esforço inútil, mas logo desistiu – não sei se percebeu que o menino teria que aprender sozinho sua lição ou se apenas estava ocupado demais com as próprias tarefas para continuar envolvido com aquela história.
Lembro que fiquei olhando aquilo com certo distanciamento – talvez vocês não acreditem, mas sempre fui uma pessoa meio realista demais, desde muito jovem, e alguma coisa me dizia já naquele momento que o esforço do meu amigo seria inútil. Acho que ajudei ele um pouco, mas sem muito entusiasmo – se bem me lembro, os outros moleques presentes também não viam aquilo como algo muito divertido, para ser honesto. Mas o menino estava determinado de uma maneira que eu nunca tinha visto; e quando finalmente o sol começou a cair e fomos embora, ele disse que voltaria ao ninho, e que ia ajudar o bichinho a não morrer de fome. Acho que no outro dia o tal passarinho não estava mais lá; não sei se caiu do ninho, se foi devorado por algum outro bicho ou qualquer coisa do tipo. Seja como tenha sido, sumiu, o que encerrou o assunto. O tal Christian saiu do colégio em circunstâncias que não recordo e seguiu sua vida em algum lugar, de algum modo que eu não sei como foi; eu cresci, e agora estava lá, mais de quinze anos depois, agachado no meio-fio olhando para um passarinho que ia morrer, do mesmo modo que aquele outro tinha morrido, lá longe no passado.
Poderia dizer aqui que pensei na finitude da vida, em como tudo é frágil e dura tão pouco tempo e como no fundo nada disso faz diferença no grande plano que foi traçado (ou não) para nós e por aí vai. Mas seria mentira, porque na hora não pensei em nada disso: pensei, isso sim, em como devia ser desagradável morrer no meio da sujeira, molhado e longe de casa, e em como o pobre bicho deveria estar infeliz com aquilo tudo. Salvá-lo eu não podia; mas dar uma ajudinha a ele estava ao meu alcance e não me custaria nada. Meti a mão no bicho (que protestou mas sem muito entusiasmo), tirei ele daquele amontoado de folhas secas e restos de lixo e o coloquei num lugar um pouco mais seco – um canto coberto por algumas plantas e pedaços de madeira, onde a chuva não pingava diretamente nele. Desejei mentalmente boa sorte para o passarinho, limpei as mãos nas calças, virei as costas e fui pegar meu ônibus, sem olhar para trás. Não sei o que foi feito dele, mas posso imaginar como a história terminou.
Não sei exatamente por que resolvi escrever isso aqui. O fato em si já ocorreu faz algum tempo, já é notícia velha na minha vida, e passei um bom tempo sem pensar nele – só o recordei hoje, depois de um dia corrido de trabalho e de algumas conversas via internet. Não sei se a história tem uma moral, para ser honesto; mas, relembrando o que aconteceu e o que pensei durante o acontecimento, acho que finalmente entendi, muitos anos depois, o que levou meu amigo a agir como agiu naquela tarde ensolarada que hoje só existe na minha memória. Tolos fomos nós, de achar que ele queria salvar o passarinho; no fundo, talvez até de modo inconsciente, ele queria apenas dar uma ajuda para o bichinho. Talvez, nesse mundo de causas perdidas e de pequenas e grandes tragédias, isso seja tudo o que nos resta – dar uma mão para quem está por baixo, para que não seja tão ruim a sua jornada rumo ao momento final que espera por todos nós. Talvez o mundo fosse um pouquinho melhor se parássemos de querer salvá-lo com alguma fórmula mágica e passássemos apenas a dar uma ajudinha uns aos outros, para que no fim das contas o caminho de todo mundo ficasse menos chuvoso e pudéssemos, todos, ter um cantinho seco para morrer.
Não sei, não sei. Ando pensando em coisas estranhas ultimamente.
quinta-feira, 14 de junho de 2012
O tremor
Postado por
Igor Natusch
Percebeu-se velho em um relance, uma fração de segundo, reflexo quase não visto em uma janela empoeirada do prédio de sua vida. Ou teria sido uma percepção lenta, um arrastar-se pelos segundos dos séculos, caminhada que se faz com olhos no fim da estrada, sem reparar na paisagem? Tanto faz, no fundo. Era velho, e percebeu-se velho, sentiu-se velho como a poeira dos séculos, detentor e proprietário de toda a idade do mundo.
Foi velho durante muitos e muitos anos. Uma velhice imutável, de quem perde o apreço pelo passar dos instantes, de quem vive um segundo como o interminável rastejar do ponteiro do relógio rumo ao próximo segundo, raquítica parede de tijolos que nada protege e condenada ao desabamento final. Era um velho sentado à cadeira desconfortável de madeira áspera, enfastiado de ver o tempo passar lento como uma tartaruga rumo ao outro extremo do lugar nenhum. Grão após grão de areia, clepsidra inútil em cima da mesa vazia, ampulheta que nada conserva senão a areia dentro de si. E o prédio de sua vida era cada vez mais precário, paredes decrépitas, frágil refúgio prestes a desfazer-se em escombros no retorno ao solo.
Não sairia. Havia erguido aquele prédio e, mesmo com todos os defeitos e problemas de estrutura, aquele prédio era seu. Ali ficaria. Um, dez, mil, cem mil anos.
Até que um dia, em meio à interminável torrente de instantes de sua velhice, ouviu o som inconfundível do desmoronamento. Sentiu a fuligem caindo sobre seu corpo, viu o piso rachado, as paredes tremendo. Respirou uma vez, mais uma e mais uma, impassível na cadeira, sem mover um único músculo do corpo. Ali ficaria, já havia dito. E um tremor mais forte ocorreu, a mesa balançou sobre as próprias pernas e a ampulheta caiu ao chão, quebrando em vários pedaços. Em seguida vieram as paredes, cobrindo tudo em pó e estrondo, e então a escuridão fez-se total.
Demorou bastante até que ele conseguisse se erguer do meio do concreto e dos detritos. Estava um pouco ferido, sentia frio e levou tempo até que conseguisse limpar toda a poeira de cima de si. Mas ainda vivia. Ergueu-se devagar, de forma a contemplar melhor a confusão que tomava conta de tudo ao redor. Ainda não havia amanhecido, mas a luz da lua crescente oferecia claridade suficiente para que visse a montanha de escombros. Era um tremendo estrago.
Será muito trabalho, pensou. Mas sabia que não havia outra coisa a fazer ou algum lugar para onde ir. Respirou fundo, pegou o primeiro tijolo, apoiou sobre ele um pedaço de pedra. E era jovem de novo, jovem como a manhã que surgia, dedicado que estava à construção de um novo edifício rumo ao céu.
quarta-feira, 6 de junho de 2012
Relato de um sonho sobre o Fim do Mundo
Postado por
Igor Natusch
Era o Fim do Mundo. Nao sei explicar como ou por quê; lembro apenas que era o Fim do Mundo e que todos sabiam que o Mundo acabaria, embora ninguém estivesse muito certo de como a coisa toda ia acabar acontecendo. Era um clima estranho, o que antecedia o Fim do Mundo - as pessoas não pareciam nervosas ou tomadas de medo, apenas preparavam-se para o evento inevitável, como quem viaja de longe para encontrar parentes no natal. Pessoas andavam por todos os lados, mas não havia sinais visíveis de pânico, pressa ou desespero. Não era uma festa, mas também não era algo assim tão trágico; era simplesmente o Fim do Mundo, uma data que ninguém tinha planejado vivenciar, mas que todos pareciam encarar com a tranquilidade de quem sabe que não há muito que se possa fazer a respeito.
Minha família inteira havia se reunido para o Fim do Mundo. Meu irmão havia vindo, junto com a esposa; minha irmã e o namorado também estavam presentes. Tínhamos todos acabado de voltar de uma longa caminhada; conversávamos em voz baixa, sorrindo uns para os outros, alegres com reminiscências. Entre nossos pés, andavam os cães. Minha mãe tinha preparado alguma coisa no forno para comermos, e parecia satisfeita e orgulhosa quando nos recebeu. Não recordo exatamente do prato que ela serviu - era algo com pedaços de carne e batatas, além de alguns temperos coloridos, rodelas vermelhas, raízes esverdeadas. Estava muito saboroso. Lembro que alguém, acho que minha irmã, comentou algo sobre os bolinhos de batata da minha falecida avó materna, prato sempre especialmente apreciado pela família quando ela ainda vivia. Rimos todos com essa lembrança, o que nos levou a lembrar não apenas dela, mas também do meu pai e de outros familiares que já não estavam mais entre nós. Foram lembranças suaves, sem nenhum traço de tristeza, típicas de quem sabe estar próximo o instante do reencontro.
Anoitecia. Pelas janelas vizinhas, eu podia ver que as outras casas acendiam as luzes, famílias igualmente reunidas para passarem juntas o Fim do Mundo. Seria aquela a noite, todos sabiam. E logo fez-se um curioso silêncio, repleto de pura expectativa, o silêncio de quem espera de forma calma mas ansiosa para que se abram as cortinas do espetáculo.
Lembro que esperamos por muito tempo. Trocávamos brevemente algumas palavras comentando alguma coisa banal e logo retomávamos o silêncio. Fomos todos para a sala dos fundos, cuja janela dava de frente para um horizonte amplo e aberto. O céu estava cinzento, nuvens finas encobrindo a visão da lua e das estrelas.
De repente, começou. As nuvens foram se desfazendo, levadas embora por uma suave brisa. O céu foi clareando, o cintilar das estrelas emoldurando uma enorme e imponente lua cheia. Era como se, mais do que as nuvens que nublavam o horizonte, o vento dissipasse também algo muito maior e mais profundo, algo pesado e carregado, que obscurecia nossa visão há tanto tempo que havia se tornado onipresente e nem éramos mais capazes de reparar em sua presença. O céu ia ficando mais claro, cada vez mais claro, e as estrelas saltavam aos olhos mais e mais, formando desenhos e tramas. Constelações multicoloridas enchiam o céu de um brilho inacreditável, e eu só conseguia pensar Meu Deus, o que é isso, que coisa linda, então é assim que o mundo acaba, obrigado por isso tudo, obrigado, obrigado, obrigado. E não acabava nunca, e surgiam mais e mais estrelas, a própria lua parecia imensa imensa imensa como se nunca fosse acabar de tão grande e mesmo assim ela quase desaparecia atrás de tanta luz cósmica vindo de todos os lados. A janela era uma janela para o espetáculo de todas as coisas. Éramos testemunhas privilegiadas, e se aquele era o Fim do Mundo então era bom e belo e justo e encantador que o mundo acabasse daquele jeito, brilhando e brilhando até que todas as coisas fossem uma única e interminável fonte de pura luz.
Olhei então para baixo, para o solo, e vi animais surgindo do chão de terra batida, quase sem sinais de vegetação. Eram cobras imensas, que escalavam as paredes das construções ao redor, e eu e meu irmão precisamos fechar rapidamente os vidros da janela para evitar que entrassem em casa. Alguns morcegos cruzaram gritando pelo céu, e vi que o chão começava a rachar, levantando pequenas nuvens de pó. E das rachaduras saíam mãos, crânios, esqueletos. Erguiam-se vagarosamente, espanando o pó dos séculos de cima de si, e mesmo assim não parecia algo assustador, não era como se levantassem do chão em nome da vingança ou da carnificina. O céu seguia resplandecendo com incontáveis luzes, e era mais como se os mortos quisessem simplesmente assistir o espetáculo junto conosco, como se todos os seres humanos, os vivos e os mortos, merecessem testemunhar aquele momento de redentora beleza universal. Assim sentia eu, e me sentia sinceramente comovido, pensando em todos os injustiçados em vida que tinham naquele momento a chance de estarem ao nosso lado no que quer que estivesse por vir.
Pouco durou meu devaneio, no entanto. Um vento terrível surgiu, levantando uma cortina de poeira, e nuvens pesadas cobriram completamente a visão encantadora das estrelas e da lua. Era cinza espesso, cortado por raios incessantes, o prenúncio de uma tempestade capaz de levar tudo e todos em seu trajeto. As primeiras gotas, enormes como bolas de pingue-pongue, estouraram contra os vidros das janelas, e então percebi que nada resistiria, que aquele era todo o Céu pronto para desabar sobre nós. Era a Morte chegando, percebi. E era Morte intensa, e era Morte arrebatadora, e era uma Morte que fascinava e seduzia e parecia certa e quase convidativa. Nada éramos e nada podíamos, diante da Morte. Tempestade de todos os milênios, que vinha com a força do Universo para lavar tudo e nada deixar para trás. Era a tempestade do Fim do Mundo, armada durante séculos sem fim e que finalmente tinha chegado. Para todos nós.
Pensei rapidamente duas coisas, ao perceber que estava prestes a despertar. Como é belo o Fim do Mundo, pensei, e Preciso recordar tudo isso, pensei também. Porque algo me dizia, bem do fundo da minha alma, que ali estava algo que eu precisava contar, e que as pessoas que não tinham visto tudo aquilo precisavam saber, precisavam entender e ter algum tipo de presságio de tudo que viria. Preciso recordar tudo isso, pensei. E o Fim do Mundo fez-se sol, e meus olhos perceberam a si mesmos detrás das pálpebras, de volta ao mundo que ainda deve aguardar um pouco antes de encontrar seu Fim.
Minha família inteira havia se reunido para o Fim do Mundo. Meu irmão havia vindo, junto com a esposa; minha irmã e o namorado também estavam presentes. Tínhamos todos acabado de voltar de uma longa caminhada; conversávamos em voz baixa, sorrindo uns para os outros, alegres com reminiscências. Entre nossos pés, andavam os cães. Minha mãe tinha preparado alguma coisa no forno para comermos, e parecia satisfeita e orgulhosa quando nos recebeu. Não recordo exatamente do prato que ela serviu - era algo com pedaços de carne e batatas, além de alguns temperos coloridos, rodelas vermelhas, raízes esverdeadas. Estava muito saboroso. Lembro que alguém, acho que minha irmã, comentou algo sobre os bolinhos de batata da minha falecida avó materna, prato sempre especialmente apreciado pela família quando ela ainda vivia. Rimos todos com essa lembrança, o que nos levou a lembrar não apenas dela, mas também do meu pai e de outros familiares que já não estavam mais entre nós. Foram lembranças suaves, sem nenhum traço de tristeza, típicas de quem sabe estar próximo o instante do reencontro.
Anoitecia. Pelas janelas vizinhas, eu podia ver que as outras casas acendiam as luzes, famílias igualmente reunidas para passarem juntas o Fim do Mundo. Seria aquela a noite, todos sabiam. E logo fez-se um curioso silêncio, repleto de pura expectativa, o silêncio de quem espera de forma calma mas ansiosa para que se abram as cortinas do espetáculo.
Lembro que esperamos por muito tempo. Trocávamos brevemente algumas palavras comentando alguma coisa banal e logo retomávamos o silêncio. Fomos todos para a sala dos fundos, cuja janela dava de frente para um horizonte amplo e aberto. O céu estava cinzento, nuvens finas encobrindo a visão da lua e das estrelas.
De repente, começou. As nuvens foram se desfazendo, levadas embora por uma suave brisa. O céu foi clareando, o cintilar das estrelas emoldurando uma enorme e imponente lua cheia. Era como se, mais do que as nuvens que nublavam o horizonte, o vento dissipasse também algo muito maior e mais profundo, algo pesado e carregado, que obscurecia nossa visão há tanto tempo que havia se tornado onipresente e nem éramos mais capazes de reparar em sua presença. O céu ia ficando mais claro, cada vez mais claro, e as estrelas saltavam aos olhos mais e mais, formando desenhos e tramas. Constelações multicoloridas enchiam o céu de um brilho inacreditável, e eu só conseguia pensar Meu Deus, o que é isso, que coisa linda, então é assim que o mundo acaba, obrigado por isso tudo, obrigado, obrigado, obrigado. E não acabava nunca, e surgiam mais e mais estrelas, a própria lua parecia imensa imensa imensa como se nunca fosse acabar de tão grande e mesmo assim ela quase desaparecia atrás de tanta luz cósmica vindo de todos os lados. A janela era uma janela para o espetáculo de todas as coisas. Éramos testemunhas privilegiadas, e se aquele era o Fim do Mundo então era bom e belo e justo e encantador que o mundo acabasse daquele jeito, brilhando e brilhando até que todas as coisas fossem uma única e interminável fonte de pura luz.
Olhei então para baixo, para o solo, e vi animais surgindo do chão de terra batida, quase sem sinais de vegetação. Eram cobras imensas, que escalavam as paredes das construções ao redor, e eu e meu irmão precisamos fechar rapidamente os vidros da janela para evitar que entrassem em casa. Alguns morcegos cruzaram gritando pelo céu, e vi que o chão começava a rachar, levantando pequenas nuvens de pó. E das rachaduras saíam mãos, crânios, esqueletos. Erguiam-se vagarosamente, espanando o pó dos séculos de cima de si, e mesmo assim não parecia algo assustador, não era como se levantassem do chão em nome da vingança ou da carnificina. O céu seguia resplandecendo com incontáveis luzes, e era mais como se os mortos quisessem simplesmente assistir o espetáculo junto conosco, como se todos os seres humanos, os vivos e os mortos, merecessem testemunhar aquele momento de redentora beleza universal. Assim sentia eu, e me sentia sinceramente comovido, pensando em todos os injustiçados em vida que tinham naquele momento a chance de estarem ao nosso lado no que quer que estivesse por vir.
Pouco durou meu devaneio, no entanto. Um vento terrível surgiu, levantando uma cortina de poeira, e nuvens pesadas cobriram completamente a visão encantadora das estrelas e da lua. Era cinza espesso, cortado por raios incessantes, o prenúncio de uma tempestade capaz de levar tudo e todos em seu trajeto. As primeiras gotas, enormes como bolas de pingue-pongue, estouraram contra os vidros das janelas, e então percebi que nada resistiria, que aquele era todo o Céu pronto para desabar sobre nós. Era a Morte chegando, percebi. E era Morte intensa, e era Morte arrebatadora, e era uma Morte que fascinava e seduzia e parecia certa e quase convidativa. Nada éramos e nada podíamos, diante da Morte. Tempestade de todos os milênios, que vinha com a força do Universo para lavar tudo e nada deixar para trás. Era a tempestade do Fim do Mundo, armada durante séculos sem fim e que finalmente tinha chegado. Para todos nós.
Pensei rapidamente duas coisas, ao perceber que estava prestes a despertar. Como é belo o Fim do Mundo, pensei, e Preciso recordar tudo isso, pensei também. Porque algo me dizia, bem do fundo da minha alma, que ali estava algo que eu precisava contar, e que as pessoas que não tinham visto tudo aquilo precisavam saber, precisavam entender e ter algum tipo de presságio de tudo que viria. Preciso recordar tudo isso, pensei. E o Fim do Mundo fez-se sol, e meus olhos perceberam a si mesmos detrás das pálpebras, de volta ao mundo que ainda deve aguardar um pouco antes de encontrar seu Fim.
domingo, 27 de maio de 2012
O hiato
Postado por
Igor Natusch
Do infinito viemos, ao infinito retornaremos. O tempo, ou essa precária sucessão de números empilhados um sobre os outros que nos acostumamos a chamar de tempo, só faz sentido para nós mesmos, nesse breve hiato de som e confusão entre a quietude que foi e a calma que será. É um sentido pobre, porém, fruto do súbito terror da consciência diante do absurdo desaparecimento de todas as coisas. Nada fica, diz o Mundo. Algo deve ficar, teimamos em resposta. Que algo fique, que alguma coisa sobreviva pelo trajeto, que permaneça pelo menos o símbolo, registro dos lampejos de luz em meio à aparente escuridão total. Assim, pelo engenho de nossa mente e pela precisão de nossa matemática, foi criado o calendário. Bela e frágil gaiola que, em sua ingenuidade de brinquedo infantil, pretende capturar o que passa e impedir que se vá de volta ao infinito que foi e será. Um invento engenhoso, mas que jamais funcionou.
Mesmo assim, insistimos. E com nossa obsessão por contar segundos, acabamos temendo e negando o tempo que insiste em surgir em meio aos dígitos. Odiamos a memória que some, a ruga que surge, o presente que no milésimo de segundo seguinte já é passado. Nossas contas são falhas; nossos relógios giram de forma estúpida enquanto as coisas passam, passam, vão e nunca voltam, sem dar aos ponteiros a mínima atenção. Mas tamanho foi nosso esforço, tantas são as engrenagens do monstro que devora intervalos de vida que se tornou impossível desmontá-lo. Somos, portanto, escravos da nossa própria invenção.
Pudéssemos, faríamos do instante um prisioneiro. Daríamos um jeito de congelar a juventude passageira, o gozo do que se foi e o sorriso que não volta mais. Pararíamos o mundo e o guardaríamos como um troféu, sem saber direito o que fazer com ele, contentes demais com a aparente conquista para entender de que, uma vez mais, ela não nos prestaria para nada. E a Verdade, confusa com tantos números e cálculos para entender o que deveria ser tão simples, deitaria na relva e se poria a contemplar as estrelas, logo esquecendo da tolice dos homens.
Do infinito viemos, ao infinito retornaremos. O tempo, ou essa precária sucessão de números empilhados um sobre os outros que nos acostumamos a chamar de tempo, só faz sentido para nós mesmos, nesse breve hiato de som e confusão entre a quietude que foi e a calma que será.
Mesmo assim, insistimos. E com nossa obsessão por contar segundos, acabamos temendo e negando o tempo que insiste em surgir em meio aos dígitos. Odiamos a memória que some, a ruga que surge, o presente que no milésimo de segundo seguinte já é passado. Nossas contas são falhas; nossos relógios giram de forma estúpida enquanto as coisas passam, passam, vão e nunca voltam, sem dar aos ponteiros a mínima atenção. Mas tamanho foi nosso esforço, tantas são as engrenagens do monstro que devora intervalos de vida que se tornou impossível desmontá-lo. Somos, portanto, escravos da nossa própria invenção.
Pudéssemos, faríamos do instante um prisioneiro. Daríamos um jeito de congelar a juventude passageira, o gozo do que se foi e o sorriso que não volta mais. Pararíamos o mundo e o guardaríamos como um troféu, sem saber direito o que fazer com ele, contentes demais com a aparente conquista para entender de que, uma vez mais, ela não nos prestaria para nada. E a Verdade, confusa com tantos números e cálculos para entender o que deveria ser tão simples, deitaria na relva e se poria a contemplar as estrelas, logo esquecendo da tolice dos homens.
Do infinito viemos, ao infinito retornaremos. O tempo, ou essa precária sucessão de números empilhados um sobre os outros que nos acostumamos a chamar de tempo, só faz sentido para nós mesmos, nesse breve hiato de som e confusão entre a quietude que foi e a calma que será.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
O caminho dos que andam com pressa
Postado por
Igor Natusch
Publicado originalmente em 31 de maio de 2009
Sexta-feira, mais ou menos seis da tarde, esquina da Paulista com a Augusta, coração de São Paulo. Eu estava esperando por uma amiga, me preparando para umas cervejas e um pouco de conversa sobre a vida difícil dos gaúchos no coração de São Paulo. Tinha conseguido uma carona, então tinha chegado mais cedo, e matava tempo ouvindo música e vendo o movimento enquanto esperava ela chegar. Estava tranquilo, feliz de finalmente poder sair em uma semana de tempo ruim e de poucas coisas para fazer, e me sentia leve e sem maiores preocupações – tanto que em determinado momento me peguei fazendo um discreto “air guitar” no meio da rua, que é algo que eu realmente só faço quando estou muito distraído e relaxado. Deve ser algo extraordinário, um gaúcho de Porto Alegre fazendo “air guitar” em plena Avenida Paulista, mas enfim, não é disso que eu ia falar. Eu ia falar do cidadão humilde, baixote, usando um terno de tom marrom claro e com uma enorme Bíblia na mão, que apareceu em determinado momento no meio daquela confusão de pessoas que iam e vinham, numa das esquinas mais emblemáticas de uma cidade que, cada vez mais eu percebo, desafia categorização.
[caption id="attachment_255" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Leandro Kanno"][/caption]
Não vi de onde surgiu o homem, para ser honesto. Quando o percebi, estava próximo de mim, distribuindo para algumas pessoas pequenos panfletos de cunho religioso. Esperei que ele viesse a mim, e recebi o papel com um “obrigado” e um breve gesto de cabeça, ao qual o homem retribuiu com um sorriso de boca fechada, discreto mas dotado de considerável simpatia. Tenho ainda comigo o papel que ele me deu: uma pequena história sobre o encontro do fogo, da água e da oportunidade, seguida de uma pergunta do tipo “você gostaria de aceitar Jesus Cristo como seu salvador pessoal?” – coisa simples, feita para pessoas simples, talvez as mais propensas a abraçar os conceitos de fé de uma igreja evangélica. Distribuiu para mim e para algumas outras pessoas o pequeno panfleto, e depois posicionou-se no meio do passeio público, oferecendo aos que andavam o pequeno pedaço de papel que a mim havia dado pouco antes, tendo sempre o enorme volume da Bíblia repousando debaixo do braço.
Fiquei observando a cena. Era, acima de tudo, um contraste interessante: o homem parado, distribuindo pequenos panfletos com a Palavra que havia adotado como sua, enquanto a seu redor as pessoas passavam rápidas, velozes, apressadas, quase sempre indiferentes. Poucos foram os que vi pegarem o pequeno papel que a mão do homem oferecia, e talvez um ou dois tenham agradecido, no máximo. Os demais passavam reto pelo homem, sem sequer dar a ele a dignidade de um olhar, de um momento de atenção, preocupados que estavam com suas próprias vidas, problemas e pensamentos.
Acho que aquilo, de certo modo, abalou um pouco o homem. Acredito que, para ele, aqueles papéis eram algo muito sério, um tipo de presente que distribuía a desconhecidos, sem distinção de cor, gênero ou aparência, e para ele era desagradável ver que sua oferta era recebida com desinteresse, como se fosse apenas um incômodo, ou nem mesmo isso chegasse a ser. Na verdade, creio que ele faria a pregação de qualquer jeito – mas, confrontado com a falta de fé dos homens e mulheres que o cercavam, resolveu que era hora de tentar outra coisa, e de usar sua própria fé como modo de ser percebido ou, pelo menos, de quebrar aquele ruído repleto de silêncio com o som da sua voz e da mensagem que trazia dentro de si.
E pôs-se o pequeno e humilde homem a pregar ali, na esquina da Paulista com a Augusta, em plena hora do rush, andando de um lado a outro enquanto falava. Começou em tom um pouco baixo, que eu mal percebia por trás do som do meu mp3 player ligado, mas logo se empolgou, e começou a bradar a palavra de seu Deus com tal intensidade que nem o mais empedernido ateu poderia ignorar. Acabei cedendo a tanta emoção, desligando a música e emprestando meus ouvidos ao homem por alguns minutos.
Não saberia reproduzir com detalhes o que o homem falou – mas duas frases dele me causaram alguma impressão, indo além da pregação empolgada, mas que para mim sinceramente soava rasa e pouco comovente. Disse o homem em dado instante que os que por aquela rua passavam deveriam acautelar-se, e refletir sobre o rumo que davam a suas vidas. “Para onde vocês estão indo essa noite”, quase gritava, “para a alegria breve, para a depravação, ou para honrar a palavra de Deus? Quem vocês buscarão, o filho de Deus ou a companhia do Seu maior inimigo?”. Logo depois, disse o homem, com tom severo: “cada um escolhe seu caminho, e um deles traz a Vida, mas no outro só há a dor e a tristeza eterna”. Disse obviamente outras coisas, mas delas não lembro – e sua voz não tremia, antes ficava mais alta e empolgada à medida que os minutos iam passavam e sua pregação alcançava o clímax, exortando todos a juntarem-se a Jesus enquanto havia tempo e nem tudo estava perdido.
Enquanto ouvia essas e outras coisas, observava também as pessoas que passavam, e foi fácil perceber que ainda eram poucos os que davam ao homem mais do que um instante de atenção. Os que o observavam geralmente o faziam movidos pelo desagrado, não raro fazendo caretas e comentários jocosos sobre a situação. Próximos de mim, quatro jovens adolescentes, de talvez dezesseis anos ou um pouco mais, usando roupas coloridas e chamativas, conversavam entre si enquanto fumavam um cigarro de maconha – o que imagino que considerassem como um motivo de orgulho, ápice de sua revolta e rebeldia adolescente. Eram eles os mais debochados, os que mais abertamente atacavam o homem que estava envolvido naquela batalha de fé. Um deles jogou um papel de bala, outro aproximou-se dele e gritou algo que não ouvi, mas que não devia ser exatamente encorajador – e um deles chegou a oferecer ao homem a erva que fumava, com um olhar malicioso e um sorriso de desprezo estampado no rosto. E o homem, pelo menos externamente, não se abalou: contra os ataques dos fariseus sem fé, seguiu gritando aos quatro ventos a sua verdade, a sua crença, o que talvez julgasse ele ser ainda maior do que ele próprio.
Mais ou menos nessa altura apareceu minha amiga, que mais tarde me disse ter ouvido já do metrô a pregação que tomava conta da esquina. E me juntei a ela para irmos embora dali, não sem antes dar um último olhar ao homem que continuou na sua profissão de fé, provavelmente por muito tempo depois de eu estar presente para testemunhá-lo.
À primeira vista, eu mesmo me admirei um pouco de ter sentido simpatia pelo homem, e um certo desagrado de vê-lo ser alvo do desinteresse e, às vezes, da hostilidade daquelas pessoas. Não que eu tenha sido religiosamente tocado pela cena; não sou ateu, mas tenho sérias ressalvas às seitas e igrejas que produzem a fé sem reflexão, e digo sem reservas que a palavra do homem pouco ou nenhum efeito teve sobre mim, sendo incapaz de me provocar maior comoção ou mesmo interesse. Nesse sentido, não sou nem um pouco melhor do que as pessoas que passavam por ele sem olhá-lo ou destinavam a ele palavras e gestos de zombaria – pois sou um infiel como elas, alguém a quem a Palavra daquele homem, em si mesma, foi e possivelmente seja para sempre incapaz de tocar. Mas, se pouca afeição as religiões constituídas me provocam, sempre vejo com respeito e simpatia a fé individual, mesmo porque muitas vezes é para o seu portador tudo que há de mais valioso – e, no caso em questão, a fé daquele homem me fez refletir em coisas que não são exatamente produtos de qualquer religiosidade, mas ainda assim me provocaram certa impressão.
Acho que, de certo modo, me identifiquei com a posição dele – uma pessoa que se detém, que fica parada enquanto o mundo insiste em se mover, sem descanso e muitas vezes sem objetivo algum que não o próprio movimento. Comentei isso com minha amiga mais tarde, durante uma das mundanas rodadas de cerveja no Charm da Augusta: como o mundo insiste em ser rápido e incessante, e como é libertador conseguir não entrar nessa correria, como é apaziguador poder viver e observar um pouco as coisas, sem simplesmente passar voando por elas. Tinha uma razão meio torta, o homem – para onde iam com tanta pressa, no fim das contas, todas aquelas pessoas? O que as aguardava, o que iam buscar que era tão urgente, tão necessário, tão inadiável? Haverá para cada uma delas um motivo, um caminho a trilhar, ou estão muitas delas simplesmente andando, porque andando estão há tanto tempo que a idéia do que alcançar já se perdeu e as pessoas andam simplesmente porque andar se tornou em si mesmo a causa e consequência de tudo? As pessoas andam, riem, choram, bebem, amam, vivem e morrem todos os dias – mas quantas delas tem de fato algo que as anime, algum tipo de fé ou convicção na qual se segurar, e quantas no fundo fazem o que quer que estejam fazendo apenas para preencher esse vazio, essa falta de fé, talvez especialmente de fé em si mesmas? O que, no fim das contas, move tanta gente – e, em última análise, o que move a mim mesmo? O que eu quero, no fim das contas?
Parado ali, no meio daquela esquina, aquele homem pequeno e humilde tinha um objetivo. Um objetivo talvez questionável em eficiência, em conveniênca ou mesmo em princípio – mas ainda assim algo que o levava a parar, algo que para ele é um norte, um caminho a seguir. E não deixa de ser um pouco triste que eu, pessoa sem maior apreço pelas religiões e que definitivamente não compartilho da imensa maioria de suas crenças e métodos, tenha sido talvez o único a ver aquilo com alguma consideração, e ainda assim tirando ali um pensamento que certamente não era o que ele gostaria que eu tivesse. De qualquer modo, embora eu saiba que ele muito provavelmente jamais lerá esse texto, gosto de imaginar que serviria para ele de alegria e consolo saber que, por vias tortas, suas palavras atingiram a mente de alguém. Da minha parte, vou tentar seguir sem pressa, olhando as pessoas pelas esquinas da vida – mesmo porque, sinceramente, não acho que eu seja capaz de agir de outro jeito, e ainda há tanta coisa para ver e para contar.
A foto, que aqui uso de forma meramente ilustrativa, é de Leandro Kanno. Espero que ele não se importe com esse empréstimo; obviamente, retirarei a imagem do blog caso assim deseje. De qualquer modo, agradeço pela ótima imagem, que bem ilustra o palco desta pequena história e observação.
Sexta-feira, mais ou menos seis da tarde, esquina da Paulista com a Augusta, coração de São Paulo. Eu estava esperando por uma amiga, me preparando para umas cervejas e um pouco de conversa sobre a vida difícil dos gaúchos no coração de São Paulo. Tinha conseguido uma carona, então tinha chegado mais cedo, e matava tempo ouvindo música e vendo o movimento enquanto esperava ela chegar. Estava tranquilo, feliz de finalmente poder sair em uma semana de tempo ruim e de poucas coisas para fazer, e me sentia leve e sem maiores preocupações – tanto que em determinado momento me peguei fazendo um discreto “air guitar” no meio da rua, que é algo que eu realmente só faço quando estou muito distraído e relaxado. Deve ser algo extraordinário, um gaúcho de Porto Alegre fazendo “air guitar” em plena Avenida Paulista, mas enfim, não é disso que eu ia falar. Eu ia falar do cidadão humilde, baixote, usando um terno de tom marrom claro e com uma enorme Bíblia na mão, que apareceu em determinado momento no meio daquela confusão de pessoas que iam e vinham, numa das esquinas mais emblemáticas de uma cidade que, cada vez mais eu percebo, desafia categorização.
[caption id="attachment_255" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Leandro Kanno"][/caption]
Não vi de onde surgiu o homem, para ser honesto. Quando o percebi, estava próximo de mim, distribuindo para algumas pessoas pequenos panfletos de cunho religioso. Esperei que ele viesse a mim, e recebi o papel com um “obrigado” e um breve gesto de cabeça, ao qual o homem retribuiu com um sorriso de boca fechada, discreto mas dotado de considerável simpatia. Tenho ainda comigo o papel que ele me deu: uma pequena história sobre o encontro do fogo, da água e da oportunidade, seguida de uma pergunta do tipo “você gostaria de aceitar Jesus Cristo como seu salvador pessoal?” – coisa simples, feita para pessoas simples, talvez as mais propensas a abraçar os conceitos de fé de uma igreja evangélica. Distribuiu para mim e para algumas outras pessoas o pequeno panfleto, e depois posicionou-se no meio do passeio público, oferecendo aos que andavam o pequeno pedaço de papel que a mim havia dado pouco antes, tendo sempre o enorme volume da Bíblia repousando debaixo do braço.
Fiquei observando a cena. Era, acima de tudo, um contraste interessante: o homem parado, distribuindo pequenos panfletos com a Palavra que havia adotado como sua, enquanto a seu redor as pessoas passavam rápidas, velozes, apressadas, quase sempre indiferentes. Poucos foram os que vi pegarem o pequeno papel que a mão do homem oferecia, e talvez um ou dois tenham agradecido, no máximo. Os demais passavam reto pelo homem, sem sequer dar a ele a dignidade de um olhar, de um momento de atenção, preocupados que estavam com suas próprias vidas, problemas e pensamentos.
Acho que aquilo, de certo modo, abalou um pouco o homem. Acredito que, para ele, aqueles papéis eram algo muito sério, um tipo de presente que distribuía a desconhecidos, sem distinção de cor, gênero ou aparência, e para ele era desagradável ver que sua oferta era recebida com desinteresse, como se fosse apenas um incômodo, ou nem mesmo isso chegasse a ser. Na verdade, creio que ele faria a pregação de qualquer jeito – mas, confrontado com a falta de fé dos homens e mulheres que o cercavam, resolveu que era hora de tentar outra coisa, e de usar sua própria fé como modo de ser percebido ou, pelo menos, de quebrar aquele ruído repleto de silêncio com o som da sua voz e da mensagem que trazia dentro de si.
E pôs-se o pequeno e humilde homem a pregar ali, na esquina da Paulista com a Augusta, em plena hora do rush, andando de um lado a outro enquanto falava. Começou em tom um pouco baixo, que eu mal percebia por trás do som do meu mp3 player ligado, mas logo se empolgou, e começou a bradar a palavra de seu Deus com tal intensidade que nem o mais empedernido ateu poderia ignorar. Acabei cedendo a tanta emoção, desligando a música e emprestando meus ouvidos ao homem por alguns minutos.
Não saberia reproduzir com detalhes o que o homem falou – mas duas frases dele me causaram alguma impressão, indo além da pregação empolgada, mas que para mim sinceramente soava rasa e pouco comovente. Disse o homem em dado instante que os que por aquela rua passavam deveriam acautelar-se, e refletir sobre o rumo que davam a suas vidas. “Para onde vocês estão indo essa noite”, quase gritava, “para a alegria breve, para a depravação, ou para honrar a palavra de Deus? Quem vocês buscarão, o filho de Deus ou a companhia do Seu maior inimigo?”. Logo depois, disse o homem, com tom severo: “cada um escolhe seu caminho, e um deles traz a Vida, mas no outro só há a dor e a tristeza eterna”. Disse obviamente outras coisas, mas delas não lembro – e sua voz não tremia, antes ficava mais alta e empolgada à medida que os minutos iam passavam e sua pregação alcançava o clímax, exortando todos a juntarem-se a Jesus enquanto havia tempo e nem tudo estava perdido.
Enquanto ouvia essas e outras coisas, observava também as pessoas que passavam, e foi fácil perceber que ainda eram poucos os que davam ao homem mais do que um instante de atenção. Os que o observavam geralmente o faziam movidos pelo desagrado, não raro fazendo caretas e comentários jocosos sobre a situação. Próximos de mim, quatro jovens adolescentes, de talvez dezesseis anos ou um pouco mais, usando roupas coloridas e chamativas, conversavam entre si enquanto fumavam um cigarro de maconha – o que imagino que considerassem como um motivo de orgulho, ápice de sua revolta e rebeldia adolescente. Eram eles os mais debochados, os que mais abertamente atacavam o homem que estava envolvido naquela batalha de fé. Um deles jogou um papel de bala, outro aproximou-se dele e gritou algo que não ouvi, mas que não devia ser exatamente encorajador – e um deles chegou a oferecer ao homem a erva que fumava, com um olhar malicioso e um sorriso de desprezo estampado no rosto. E o homem, pelo menos externamente, não se abalou: contra os ataques dos fariseus sem fé, seguiu gritando aos quatro ventos a sua verdade, a sua crença, o que talvez julgasse ele ser ainda maior do que ele próprio.
Mais ou menos nessa altura apareceu minha amiga, que mais tarde me disse ter ouvido já do metrô a pregação que tomava conta da esquina. E me juntei a ela para irmos embora dali, não sem antes dar um último olhar ao homem que continuou na sua profissão de fé, provavelmente por muito tempo depois de eu estar presente para testemunhá-lo.
À primeira vista, eu mesmo me admirei um pouco de ter sentido simpatia pelo homem, e um certo desagrado de vê-lo ser alvo do desinteresse e, às vezes, da hostilidade daquelas pessoas. Não que eu tenha sido religiosamente tocado pela cena; não sou ateu, mas tenho sérias ressalvas às seitas e igrejas que produzem a fé sem reflexão, e digo sem reservas que a palavra do homem pouco ou nenhum efeito teve sobre mim, sendo incapaz de me provocar maior comoção ou mesmo interesse. Nesse sentido, não sou nem um pouco melhor do que as pessoas que passavam por ele sem olhá-lo ou destinavam a ele palavras e gestos de zombaria – pois sou um infiel como elas, alguém a quem a Palavra daquele homem, em si mesma, foi e possivelmente seja para sempre incapaz de tocar. Mas, se pouca afeição as religiões constituídas me provocam, sempre vejo com respeito e simpatia a fé individual, mesmo porque muitas vezes é para o seu portador tudo que há de mais valioso – e, no caso em questão, a fé daquele homem me fez refletir em coisas que não são exatamente produtos de qualquer religiosidade, mas ainda assim me provocaram certa impressão.
Acho que, de certo modo, me identifiquei com a posição dele – uma pessoa que se detém, que fica parada enquanto o mundo insiste em se mover, sem descanso e muitas vezes sem objetivo algum que não o próprio movimento. Comentei isso com minha amiga mais tarde, durante uma das mundanas rodadas de cerveja no Charm da Augusta: como o mundo insiste em ser rápido e incessante, e como é libertador conseguir não entrar nessa correria, como é apaziguador poder viver e observar um pouco as coisas, sem simplesmente passar voando por elas. Tinha uma razão meio torta, o homem – para onde iam com tanta pressa, no fim das contas, todas aquelas pessoas? O que as aguardava, o que iam buscar que era tão urgente, tão necessário, tão inadiável? Haverá para cada uma delas um motivo, um caminho a trilhar, ou estão muitas delas simplesmente andando, porque andando estão há tanto tempo que a idéia do que alcançar já se perdeu e as pessoas andam simplesmente porque andar se tornou em si mesmo a causa e consequência de tudo? As pessoas andam, riem, choram, bebem, amam, vivem e morrem todos os dias – mas quantas delas tem de fato algo que as anime, algum tipo de fé ou convicção na qual se segurar, e quantas no fundo fazem o que quer que estejam fazendo apenas para preencher esse vazio, essa falta de fé, talvez especialmente de fé em si mesmas? O que, no fim das contas, move tanta gente – e, em última análise, o que move a mim mesmo? O que eu quero, no fim das contas?
Parado ali, no meio daquela esquina, aquele homem pequeno e humilde tinha um objetivo. Um objetivo talvez questionável em eficiência, em conveniênca ou mesmo em princípio – mas ainda assim algo que o levava a parar, algo que para ele é um norte, um caminho a seguir. E não deixa de ser um pouco triste que eu, pessoa sem maior apreço pelas religiões e que definitivamente não compartilho da imensa maioria de suas crenças e métodos, tenha sido talvez o único a ver aquilo com alguma consideração, e ainda assim tirando ali um pensamento que certamente não era o que ele gostaria que eu tivesse. De qualquer modo, embora eu saiba que ele muito provavelmente jamais lerá esse texto, gosto de imaginar que serviria para ele de alegria e consolo saber que, por vias tortas, suas palavras atingiram a mente de alguém. Da minha parte, vou tentar seguir sem pressa, olhando as pessoas pelas esquinas da vida – mesmo porque, sinceramente, não acho que eu seja capaz de agir de outro jeito, e ainda há tanta coisa para ver e para contar.
A foto, que aqui uso de forma meramente ilustrativa, é de Leandro Kanno. Espero que ele não se importe com esse empréstimo; obviamente, retirarei a imagem do blog caso assim deseje. De qualquer modo, agradeço pela ótima imagem, que bem ilustra o palco desta pequena história e observação.
terça-feira, 15 de maio de 2012
Demissão
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Igor Natusch
Oito horas por dia. Cinco dias por semana. Quatro semanas por mês. Doze meses por ano. Por uma vida inteira - quantos anos? Anos e anos de sair cedo, voltar tarde, andar no estômago de bestas feitas de parafusos e alimentadas de óleo e indiferença. Ir por onde veio, vir por onde voltará, bater no mesmo ponto, no mesmo ritmo, de novo e de novo. Construir castelos de cartas. Esquecer o sono, o sonho, o afago, a dança. Dizer bom dia como quem diz estou morto. Morto. Andar morto entre os mortos, arrastar-se pelas horas mortas, sedento de vida - vida que foi-se embora, não mais existe, cansou-se de nós e nos desertou. Onde está? Certamente não nas chaminés que vomitam cinza, cobrindo o azul do céu, nos roubando mesmo o brilho difuso da estrela distante, ela também já morta. Nada mais brilha. Desço do veículo que me transporta como quem desembarca para o holocausto, subo as escadas como quem ruma ao cadafalso. Arrasto-me pelos segundos intermináveis em nome de breves intervalos de ilusória e estúpida salvação. Quando interrompido o martírio, engulo algo. Mandíbulas. Abdomens. Sabor não há. Nada crio, nada invento. Reproduzo e padeço. Esqueço. Onde me escondi? Quem sou eu? Tenho um nome - que diferença faz? Sou um entre incontáveis, anulado na multidão, engrenagem na grande máquina feita de carne para esmagar almas.
Tenho ódio dentro de mim. Ódio espesso como pó de ferro, recendendo a enxofre, que sufoca a garganta e enche os olhos de lágrimas. Ódio das paredes cinzentas, do chão cinzento, dos céus tingidos de cinza. Ódio que clama por cor, qualquer cor. Ódio do relógio e sua prisão de fina precisão, segundo após segundo em perfeita e sincronizada expectativa pela minha morte. Odeio a morte na vida. E não quero morrer. Recuso a condenação a morrer dia após dia, indo e vindo pelos mesmos caminhos, pelas mesmas vias horríveis de cinzento absurdo. Tenho ódio de cada fim-de-semana e cada feriado. Odeio o descanso. Odeio precisar descansar. Exijo que me devolvam o prazer de dormir, o prazer de acordar, a satisfação de aquecer-se do frio debaixo do sol. Antes do advento do inferno, meus dias eram quase eternos - eu os quero de volta. Devolvam-me o prazer de vencer as distâncias. Levem consigo a pressa e a eficiência, as quais nunca pedi e que jamais foram parte de mim. Exijo, de forma incondicional, o direito de voltar a falhar. Sou Humano, e odeio a Máquina. Que seja destruído, maldito engenho feito de milhões de vidas que foram sem jamais terem sido. Anseio desesperado pelo colapso de tudo. Que nada reste, nem mesmo os escombros. Que me esqueçam.
Me demito de tudo. Se é pelo dinheiro, que fiquem com ele. Engulam cada centavo. De todo o lucro, não quero nem mesmo a lembrança.
Estou fora.
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Cultivo
Postado por
Igor Natusch
Tenho saudade do tempo em que plantávamos feijões em pedaços de algodão. Era uma experiência estranha e riquíssima: ver o grão duro, tegumento e endosperma que de repente explodem em broto, vão virando raiz e depois caule e depois folha e depois planta inteira. Meus olhos de criança adoravam o processo, e não foram poucas as vezes em que roubei alguns grãos da feijoada de domingo antes que fossem para a panela, pelo singelo prazer de ver surgir deles aquele risco quase milagroso de vida. Cuidava deles com considerável dedicação, procurava manter o algodão sempre úmido, sem exagerar na água, dando sol de vez em quanto. As mudas morriam depois de algumas poucas semanas, mas não me permitia qualquer tipo de luto; era hora de outro feijão e outro germinar. Certa feita, cheguei a dar a alguns daqueles brotos uma sobrevida: plantei-os em um pedacinho de terra na casa de minha vó. Cresceram como eu jamais teria imaginado possível na minha ingenuidade de tão poucos anos de idade - passaram de um palmo de altura, as folhas saltaram, os caules ganharam em firmeza e espessura. Foram devoradas por caramujos e gafanhotos, aquelas mudas leguminosas, mas tiveram vida mais longa que suas irmãs, e gosto de pensar que gostaram da terra, do sol e de viver e morrer ao ar livre.
Será que as crianças ainda plantam feijões em pedaços de algodão? Me ocorreu a dúvida agora, tarde da noite, como um estalo. Desde que meu interesse infantil começou a transformar-se na explosão da adolescência, nunca mais vi ninguém plantar feijões em algodão. Será que ninguém mais faz isso? Terá morrido comigo e com os meus essa tão nobre prática? Será que as crianças ainda têm a chance de ver uma vida nascendo, mesmo que tão pequena e frágil, e se importarem minimamente com ela durante seu breve e inevitável ciclo de surgir, crescer, murchar e morrer? Ou isso ficou no passado, desapareceu na névoa do fim da infância, virou coisa de gente velha - ou ainda pior, de criança velha?
Era só o que me faltava: depois de adulto, ter que plantar um feijão em um pedaço de algodão, só para provar a mim mesmo que isso ainda é possível.
Será que as crianças ainda plantam feijões em pedaços de algodão? Me ocorreu a dúvida agora, tarde da noite, como um estalo. Desde que meu interesse infantil começou a transformar-se na explosão da adolescência, nunca mais vi ninguém plantar feijões em algodão. Será que ninguém mais faz isso? Terá morrido comigo e com os meus essa tão nobre prática? Será que as crianças ainda têm a chance de ver uma vida nascendo, mesmo que tão pequena e frágil, e se importarem minimamente com ela durante seu breve e inevitável ciclo de surgir, crescer, murchar e morrer? Ou isso ficou no passado, desapareceu na névoa do fim da infância, virou coisa de gente velha - ou ainda pior, de criança velha?
Era só o que me faltava: depois de adulto, ter que plantar um feijão em um pedaço de algodão, só para provar a mim mesmo que isso ainda é possível.
quarta-feira, 9 de maio de 2012
Teixeirinha rumo ao Largo da Ordem
Postado por
Igor Natusch
Curitiba. Se bem lembro, era sexta-feira. Uma tarde de um céu indeciso, ora disposto a ficar nublado, ora tentado a deixar-se dominar pelo sol de verão. Não fazia calor, no entanto - pelo menos não aquele calor doloroso que impede os deslocamentos e nos obriga ao ar condicionado, se é que me faço entender. Era, em suma, uma tarde boa para caminhar a esmo, despreocupado, de olhos abertos no desconhecido de uma cidade ainda pouco familiar. E assim fiz, visitante de poucos dias e sem compromissos que era, descendo de ônibus no Passeio Público e permitindo que meus pés me levassem onde lhes parecesse mais adequado.
Me levaram à Rua Quinze de Novembro, agradável calçadão que me pareceu uma das artérias principais do centro de uma Curitiba bem mais interessante e agradável do que costumavam me dizer. Fui e voltei por aqueles caminhos, satisfeito com a grande quantidade de coisas, lugares e pessoas, mais preocupado em observar e sentir do que em memorizar. Andei até o fim do caminho, chegando até uma praça chamada General Osório, mas, por algum motivo, não me animei a conhecê-la naquele dia, preferindo dar meia-volta rumo a um atalho para o Largo da Ordem, que eu já conhecia mas muito me agradaria rever. Segui firme nesse propósito até a esquina da Quinze de Novembro com a Monsenhor Celso, onde a música de um casal de artistas de rua fez com que eu interrompesse a marcha.
[caption id="attachment_233" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Raissa Portela / Canal Fotografia"][/caption]
Nathan e Natacha, chamavam-se. Tocavam uma música bastante simples, uma canção de amor não correspondido crua nos versos e na estrutura. Ambos cantavam, e ambos tinham as mãos ocupadas: Nathan com o violão coberto de pequenos adesivos, Natacha com a caixinha de doações. Os escritos em torno dela eram uma atração à parte - e por meio deles tive a confirmação de minha suspeita, nascida assim que me detive para observá-los: eram um casal de músicos cegos. "Sou 100% deficiente visual, este é o meu trabalho", "obrigado por sua ajuda", "Deus te abencoe por nos ajudar". Avisos escritos em caligrafia nada sofisticada, tinta preta sobre madeira clara, passando uma mensagem tão direta e sem enfeites quanto a música que tocavam.
O público não era numeroso, talvez uma dúzia de incautos, mas ousaria dizer que boa parte daquela plateia era consideravelmente fiel. Um deles, especialmente comunicativo, parecia assumir de modo improvisado as vezes de empresário da dupla, incentivando de forma bem-humorada a audiência a depositar valores na caixinha dos músicos. Pude ver quando esse fã empolgado dirigiu-se a um dos presentes e pediu que ele o emprestasse uma nota de cinco reais. A justificativa: "vou pedir para eles tocarem um Teixeirinha para nós". Certamente peguei a história pela metade, uma vez que a sequência de acontecimentos não faz muito sentido - mas o fato é que a nota de cinco reais surgiu, foi depositada na caixa e, com algumas breves palavras aos músicos, o cidadão pediu que tocassem um tema de Teixeirinha, seja lá qual fosse.
Me dói um pouco admitir que não faço a menor ideia de qual música Nathan e Natacha tocaram naquele momento. Nunca tive maior conhecimento do legado musical de Teixeirinha, e aquela canção eu certamente nunca tinha ouvido antes, de maneira que aquela interpretação acabou sendo uma insólita e inesperada premiê. Infelizmente, ouvi a canção de modo descuidado e não recordo absolutamente nada da letra - lembro apenas que era uma história triste de alguém que via sua antiga amada com outro homem em um baile, ou qualquer coisa parecida com isso. Era, de qualquer modo, uma canção repleta de simples e dolorida sabedoria sobre o amor e a vida - e todo o inusitado de ouvi-la em uma esquina desconhecida de Curitiba, interpretada por um casal de músicos cegos, só fez com que ela ganhasse uma dimensão curiosa e toda particular.
Fico pensando nas milhares de questões que me ocorreram naquele instante, enquanto ouvia os dois músicos cegos tocando uma música de Teixeirinha que eu talvez nunca saiba com certeza qual é. De onde vieram? Desde quando se conhecem? São casados de fato? Moram juntos? Ou são apenas parceiros musicais? Quando formaram a dupla? Quanto tempo levam se deslocando de seja lá onde moram até o coração da metrópole? Quanto conseguem ganhar tocando nas ruas? Dá para viver? Perguntas que me ocorreram na hora e que optei por silenciar. Por vários motivos, mas especialmente porque seria uma tremenda indelicadeza da minha parte interrompê-los assim, no meio de uma apresentação, para importuná-los com minhas concretas e ridículas dúvidas de jornalista. Preferi, então, ficar com as respostas que a música dos dois me trazia, apreciando aquela manifestação de pura vida no coração da grande cidade.
Não sei se um dia voltarei a vê-los. Ouvi a música até o final, juntei-me aos sinceros aplausos do pequeno público e depositei algumas moedas na caixinha antes de virar minhas costas e partir. Sumiram rápido na minha memória, os versos daquela até então desconhecida canção de Teixeirinha - mas tenho aprendido que o que a gente precisa mesmo lembrar acaba ficando, permanece gravado naquele ponto indeterminado onde as memórias do que se sentiu erguem-se acima de todo factual inútil. Vou lembrar daqueles dois cantando aquela música triste, e acho que isso vai me bastar. Uma interpretação sincera e apaixonada de uma bela música, que eu posso nem lembrar direito como era, mas que na minha alma e na minha experiência já se tornou eterna.
NOTA: a foto, como creditado acima, não me pertence. É um belo trabalho de Raissa Portela, publicado no site Canal Fotografia. Tentei contatá-la para pedir autorização de uso e não tive sucesso. Mesmo assim, optei por colocá-la, para dar uma visão mais clara de quem são Nathan e Natacha. Caso a autora da foto assim prefira, retirarei do ar sem problema algum. Agradeço, de qualquer forma, pelo empréstimo e pelo excelente registro.
Me levaram à Rua Quinze de Novembro, agradável calçadão que me pareceu uma das artérias principais do centro de uma Curitiba bem mais interessante e agradável do que costumavam me dizer. Fui e voltei por aqueles caminhos, satisfeito com a grande quantidade de coisas, lugares e pessoas, mais preocupado em observar e sentir do que em memorizar. Andei até o fim do caminho, chegando até uma praça chamada General Osório, mas, por algum motivo, não me animei a conhecê-la naquele dia, preferindo dar meia-volta rumo a um atalho para o Largo da Ordem, que eu já conhecia mas muito me agradaria rever. Segui firme nesse propósito até a esquina da Quinze de Novembro com a Monsenhor Celso, onde a música de um casal de artistas de rua fez com que eu interrompesse a marcha.
[caption id="attachment_233" align="alignnone" width="800" caption="Foto: Raissa Portela / Canal Fotografia"][/caption]
Nathan e Natacha, chamavam-se. Tocavam uma música bastante simples, uma canção de amor não correspondido crua nos versos e na estrutura. Ambos cantavam, e ambos tinham as mãos ocupadas: Nathan com o violão coberto de pequenos adesivos, Natacha com a caixinha de doações. Os escritos em torno dela eram uma atração à parte - e por meio deles tive a confirmação de minha suspeita, nascida assim que me detive para observá-los: eram um casal de músicos cegos. "Sou 100% deficiente visual, este é o meu trabalho", "obrigado por sua ajuda", "Deus te abencoe por nos ajudar". Avisos escritos em caligrafia nada sofisticada, tinta preta sobre madeira clara, passando uma mensagem tão direta e sem enfeites quanto a música que tocavam.
O público não era numeroso, talvez uma dúzia de incautos, mas ousaria dizer que boa parte daquela plateia era consideravelmente fiel. Um deles, especialmente comunicativo, parecia assumir de modo improvisado as vezes de empresário da dupla, incentivando de forma bem-humorada a audiência a depositar valores na caixinha dos músicos. Pude ver quando esse fã empolgado dirigiu-se a um dos presentes e pediu que ele o emprestasse uma nota de cinco reais. A justificativa: "vou pedir para eles tocarem um Teixeirinha para nós". Certamente peguei a história pela metade, uma vez que a sequência de acontecimentos não faz muito sentido - mas o fato é que a nota de cinco reais surgiu, foi depositada na caixa e, com algumas breves palavras aos músicos, o cidadão pediu que tocassem um tema de Teixeirinha, seja lá qual fosse.
Me dói um pouco admitir que não faço a menor ideia de qual música Nathan e Natacha tocaram naquele momento. Nunca tive maior conhecimento do legado musical de Teixeirinha, e aquela canção eu certamente nunca tinha ouvido antes, de maneira que aquela interpretação acabou sendo uma insólita e inesperada premiê. Infelizmente, ouvi a canção de modo descuidado e não recordo absolutamente nada da letra - lembro apenas que era uma história triste de alguém que via sua antiga amada com outro homem em um baile, ou qualquer coisa parecida com isso. Era, de qualquer modo, uma canção repleta de simples e dolorida sabedoria sobre o amor e a vida - e todo o inusitado de ouvi-la em uma esquina desconhecida de Curitiba, interpretada por um casal de músicos cegos, só fez com que ela ganhasse uma dimensão curiosa e toda particular.
Fico pensando nas milhares de questões que me ocorreram naquele instante, enquanto ouvia os dois músicos cegos tocando uma música de Teixeirinha que eu talvez nunca saiba com certeza qual é. De onde vieram? Desde quando se conhecem? São casados de fato? Moram juntos? Ou são apenas parceiros musicais? Quando formaram a dupla? Quanto tempo levam se deslocando de seja lá onde moram até o coração da metrópole? Quanto conseguem ganhar tocando nas ruas? Dá para viver? Perguntas que me ocorreram na hora e que optei por silenciar. Por vários motivos, mas especialmente porque seria uma tremenda indelicadeza da minha parte interrompê-los assim, no meio de uma apresentação, para importuná-los com minhas concretas e ridículas dúvidas de jornalista. Preferi, então, ficar com as respostas que a música dos dois me trazia, apreciando aquela manifestação de pura vida no coração da grande cidade.
Não sei se um dia voltarei a vê-los. Ouvi a música até o final, juntei-me aos sinceros aplausos do pequeno público e depositei algumas moedas na caixinha antes de virar minhas costas e partir. Sumiram rápido na minha memória, os versos daquela até então desconhecida canção de Teixeirinha - mas tenho aprendido que o que a gente precisa mesmo lembrar acaba ficando, permanece gravado naquele ponto indeterminado onde as memórias do que se sentiu erguem-se acima de todo factual inútil. Vou lembrar daqueles dois cantando aquela música triste, e acho que isso vai me bastar. Uma interpretação sincera e apaixonada de uma bela música, que eu posso nem lembrar direito como era, mas que na minha alma e na minha experiência já se tornou eterna.
NOTA: a foto, como creditado acima, não me pertence. É um belo trabalho de Raissa Portela, publicado no site Canal Fotografia. Tentei contatá-la para pedir autorização de uso e não tive sucesso. Mesmo assim, optei por colocá-la, para dar uma visão mais clara de quem são Nathan e Natacha. Caso a autora da foto assim prefira, retirarei do ar sem problema algum. Agradeço, de qualquer forma, pelo empréstimo e pelo excelente registro.